2

O museu das grandes novidades

Isola, Christiana Moraes.

Em um conto clássico e muito conhecido, A sereníssima república, Machado de Assis conta a história de uma fabular república, no conto habitada por aranhas, lugar onde a lei e a interpretação das leis, entre as quais as eleitorais, vão mudando de acordo com as conveniências. O Bruxo do Cosme Velho estava empenhado em fazer a crítica das artimanhas de um Brasil que muda suas regras a cada eleição para que nada mude em termos de poder político. O grande mestre, a seu modo de contradição de paradoxos em termos de realismo alegórico, punha o dedo na ferida do eterno sertão/centrão municipal de nossas vastas solidões interioranas. Certa feita, em um debate nos anos de chumbo da ditadura na Faculdade de História da USP, uma bem-intencionada jovem estudante perguntou a Nelson Werneck Sodré: “General, qual o grande acontecimento da história do Brasil?”. O velho historiador de pronto respondeu: “O grande acontecimento da história do Brasil ainda não aconteceu”.

Assistir vitórias eleitorais do centrão em eleições municipais compõe o relicário do nosso eterno museu de grandes novidades. Nestas cidades a eleição de prefeito polariza entre duas candidaturas e raramente uma terceira via se impõe. Talvez o protótipo mais elaborado de administração pública seja a Sucupira — recentemente transportado para o governo federal — da novela do genial Dias Gomes. As célebres declarações a Deus, à família, à cidade natal na sessão da câmara dos deputados no impeachment de Dilma Rousseff aflorou, a quem não sabia, o fundo da alma dos porões da política brasileira realmente existente. Mesmo o amor declarado de Jair Bolsonaro ao torturador Brilhante Ustra — golpe de retórica que inaugurou a arrancada à presidência da república — deve ser visto como parte do todo da geleia geral brasileira. Apesar de segredo das coisas sabidas, dez entre dez analistas constatam, alguns com espanto, que o centrão acabou de obter na recente eleição uma importantíssima vitória — avançou casas das solidões interioranas dos grotões para os grandes centros urbanos e cidades médias. Por que tanto espanto? Como isso pôde acontecer e qual o seu significado?

A esta altura do campeonato, a leitora e o leitor devem estar cansados de números, estatísticas e tabelas, expostos instrumentalmente à mancheia e com o condão de justificar vitória ou derrota de todos os ideólogos do espectro político, um curioso jogo de ambiguidade contorcionista perde-ganha — a depender dos parâmetros analíticos do escriba —, e vice-versa. O sistema político brasileiro é tão caótico que sempre é possível manipular derrotas e vitórias. Privarei a leitora e o leitor da rotina, preferindo adotar uma embocadura qualitativa e histórica. De todo modo, por demais saliente faço questão de citar apenas dois índices. Em primeiro lugar, a taxa de reeleição de prefeitos cresceu muito em 2020. Conforme dados da Justiça Eleitoral, 62,9% dos prefeitos reconquistaram o mandato, enquanto em 2016 o índice tinha sido bem mais baixo, 46,4%. Em segundo lugar, somatório de votos do arco político-ideológico enlaçado por extrema direita, direita tradicional e direita neoliberal — centrão expandido (adiante explico o que entendo sobre essa expressão) — cobre algo em torno de 75% dos votos válidos no primeiro turno.

Em contraponto aos números da direita, o modesto resultado numérico obtido pela esquerda, por outro lado, não deve escamotear que ela se mostrou competitiva em algumas grandes e médias cidades mostrando o próprio rosto, permitindo o lenitivo de uma discreta, mas alvissareira, comemoração. Candidaturas como a de Guilherme Boulos em São Paulo (SP), Manuela D’Ávila em Porto Alegre (RS), Margarida Salomão em Juiz de Fora (MG), mais a apertada vitória de Edmilson Rodrigues, em Belém (PA) demonstraram haver potência e horizonte para os ideais emancipatórios. No caso da relação entre o PT e os demais partidos de esquerda, o resultado sinalizou que esse partido continua o partido mais importante, no entanto parece que começou uma fase em que se impõe a necessidade de mais cooperação entre as diversas tendências e compartilhamento de espaço de poder entre os partidos. Uma cultura de frente, nas ruas e no campo institucional, relativamente escassa no Brasil, precisa sobrepujar urgentemente o espírito de clube fechado.

O Brasil organiza religiosamente eleições em 5.570 municípios a todo santo quatro anos, exceto, o que confirma a regra, no período do Estado Novo (1937–1945). Em todas essas eleições, esteja à frente do executivo federal a direita, a esquerda ou os militares, o aglomerado hoje denominado de “centrão” e antes de outros codinomes sempre cravejou maioria de prefeitos de vereadores, dado importantíssimo na composição das bancadas federais daí a dois anos e na engenharia política das eleições de governadores, mas bem menos na eleição do futuro presidente da república. No caso das eleições presidenciais, embora a contabilidade de prefeitos e vereadores não deva ser liminarmente subestimada, ela influi menos, pois na escolha do presidente sempre houve a brecha de um candidato/a portador de uma mensagem superar as estruturas, ou seja, superar o coeficiente de conservantismo do sistema político brasileiro, este imenso aparelho de prefeitos, vereadores, deputados estaduais e federais representativos das cidades pequenas e médias. As variações desse resultado, e existem ao calor das conjunturas econômicas e sociais de maré vazante ou maré montante, se dão mais pela margem de erro que pela produção de um salto qualitativo.

Raymundo Faoro, no clássico livro Os donos do poder, chamou essas estruturas por outro nome — o patronato político brasileiro, no que tinha uma dose de razão, embora tenha posto unilateralmente a nossa trágica herança nas bases patrimoniais do Estado português em eterna “viagem redonda” de recomeço do começo, negligenciando a escravidão e a transformação capitalista pela via, paradoxal, mas real, de um capitalismo selvagem.1 Não é correto, soberbamente, chamar tais estruturas de “atrasadas”, pois elas compõem uma totalidade amalgamada, funcionalizada e — permita-me o leitor o paradoxo — dialética. Por tudo isso, a via de concretização da burguesia brasileira, e também do sistema político, sempre se deu pelos movimentos combinados de reiteração e atualização da oligarquia. Nada avant la lettre mais neoliberal que o sistema político brasileiro.

Florestan Fernandes, em A revolução burguesa no Brasil e outros textos prolíficos, apanha bem a questão ao afirmar, em remissão subterraneamente hegeliana, que, em nosso país, a passagem do escravismo ao capitalismo se deu pela transformação do antigo senhor em senhor-cidadão.2 Essa passagem gerou a paradoxal assunção de uma “sociedade civil contra a nação” (ou seja, a maioria) e o bordão, certamente problemático em termos universais, mas politicamente útil, de “civilizar a sociedade civil”.3

Os plenos direitos políticos de cidadania no Brasil foram restringidos na duração de quase toda a república.4 Sem me demorar em assunto tão vasto, basta lembrar que o Partido Comunista, depois de um breve lapso de vida legal entre 1945 e 1948, só reaviou a legalidade em 1985, de maneira que o espaço da dissidência ou se dava nas margens do protesto popular, ou por dentro, através dos rebentos desagarrados da própria oligarquia, cujo exemplo mais clássico é a celebre “procuração imaginária” do “mandato escravista” de Joaquim Nabuco.

Um dos resultados paradoxais do nosso sistema político é que não faltam partidos conduzidos pelas oligarquias autodenominados de “progressista”, “republicano”, “democrata”, “social-democrata”, “socialista” etc. Belas marcas de fantasia. Por esse motivo, entendo por centrão o que denomino como uma combinação de “centrão restrito” e “centrão expandido”.

As fronteiras do centrão são móveis, mutantes, e seus tentáculos transformistas. Todo o campo conservador é centrão, da extrema direta aos neoliberais. Inclui o núcleo duro dos partidos de direita e centro direita conservadora (os três mais importantes hoje são DEM, PSD e Progressistas, não por acaso partidos cujo DNA remonta à ditadura), mas pode se estender sem penitência até o avariado “partido orgânico” da burguesia paulista — perdão pela chanchada involuntária —, o PSDB. Enfim, são as forças que criaram o Estado brasileiro em toda a sua profundidade, um aparelho sob a ordem unida da burguesia interna e externa que inclui tanto os partidos da ordem como os estamentos militar e jurídico. A esquerda ocupa governos, mas até hoje é um objeto estranho, forâneo, ao Estado. Há um engano na literatura sobre o centrão, especialmente numa leitura vulgarizada do conceito de presidencialismo de coalização, de atribuir a fidelidade desse agrupamento ao jogo de toma lá dá cá das emendas orçamentárias. Certamente, este é o caso do “centrão restrito” e da formação das tropas de choque dos governos (cujo inigualável Roberto Jefferson, presidente eterno do PTB, é o grande paradigma). Mas o grande sismógrafo do comportamento do centrão, caso ampliado o agrupamento a todo o espectro conservador, são a burguesa interna e externa. O presidente detém o apoio do espectro conservador (centrão ampliado) nas conjunturas de coesão de todas as frações burguesas, ao passo que nas conjunturas de divisão das frações burguesas, o presidente, acossado, precisa ir à caça do varejo no congresso, em geral para impedir o impeachment — Collor e Dilma aí estão vivos para contar a história.

Os partidos do centrão não são partidos de massas, mas máquinas eleitorais azeitadas ávidas de acesso ao fundo público para alimentar e expandir as estruturas. A formação de grandes partidos de massas sempre foi cerceada no Brasil. Os estudos sobre partidos no Brasil, de Afonso Arinos de Melo Franco5 e Vamireh Chacon,6 observaram, por exemplo, que os primeiros ensaios de partidos de massas entre nós foram a rápida experiência de legalidade do Partido Comunista nos pós-guerra — mencionada em parágrafo anterior — e da Ação Integralista nos anos 1930.

De passagem, vale aduzir que a forma partido de massas apareceu na Alemanha em finais do século XIX, na figura do Partido Socialdemocrata, e depois, com sinal ideológico trocado, os partidos fascistas mimetizaram as formas de arregimentação e mobilização da esquerda. A experiência mais duradoura de partido de massas e nascido para representar as vozes dos debaixo, represadas pelo sistema político no Brasil, sem dúvida, é a do PT. Curiosamente, nasceu avesso a alianças e radicalmente crítico da “Era Vargas” — que depois reviu nas experiências de governo —, motivo pelo qual (esse aspecto é pouco explicado pela historiografia), muito além de um desvio obreirista, o partido atraiu uma corrente de intelectuais que se autodesignavam independentes, de experiências ancestrais ligadas à esquerda socialista, mas desalinhados das tradições do trabalhismo e do comunismo, a exemplo de Sérgio Buarque e Antonio Candido. Um dos componentes ocultos do Espírito do Sion — nome do conhecido Colégio que abrigou a reunião de fundação do PT —, relembrando a démarche de André Singer,7 não se resumiu apenas ao espírito evangelizador das Comunidades Católicas de Base, de um sindicalismo das fábricas recém-radicalizado ou a esquerda revolucionária, mas também a uma intelectualidade reformista, independente e uma crítica radical que gravitou à margem da política institucional boa parte do século XX. Mas deixemos esse retrato na parede do passado.

Voltando ao que interessa, o Nordeste, certamente, é o território regional no qual as alianças amplas por dentro do sistema político foram recentemente mais alargadas. Embora sejam um corpo estranho ao centrão, tanto restrito como expandido, os partidos de esquerda (PT, Psol e PCdoB), como no caso da ascensão dos governadores de esquerda no Nordeste, só conseguiram maioria no poder operando amplas coligações com a oligarquia. No caso da centro-esquerda (PSB e PDT) sucede uma situação diferente, vez do PT e PCdoB, ambas as legendes são dominadas por duas famílias, Campos (PE) e Ferreira Gomes (CE), por assim dizer, oligarquias de esquerda. O cineasta Kleber Mendonça Filho, arguto intelectual, em entrevista recente a Lilia Schwarcz, relata a presença na cena pública de uma “certa elite de esquerda no nordeste”, paradoxal em uma região tão oligarquizada.8 Mais paradoxal ainda, recordemos, quando Kleber retrata o prefeito de Bacurau, o canalha Tony Jr., como o perfeito protótipo do prefeito de interior no sertão. Trata-se de um dado da práxis política brasileira, mas mais comum no Nordeste: não seria estranho a um Tony Jr. compor, em determinadas circunstâncias bem concretas, o campo de alianças estaduais na base de um governo progressista. Mencionei anteriormente a “procuração imaginária” dos escravos no século XIX a Joaquim Nabuco, evidentemente uma fantasia mobilizadora da incipiente classe dos homens livres dos sobrados. Em conjunturas especiais, a mensagem de renovação de uma liderança, mesmo na condição de uma interpretação genérica, infundiu alegria popular e trouxe esperança de mudança no Nordeste. Talvez a mais sintética representação estética desse fenômeno político seja o filme Maranhão 66, de Glauber Rocha, que mostra uma imensa massa popular em praça pública e o discurso repleto de esperança de José Sarney na sua posse de governador eleito em 1965. Flávio Dino não infundiria mais esperança.

A renovação de Sarney era fake, mas houve três impulsos verdadeiros de renovação política do Nordeste:

  1. a Frente Popular do Recife e depois Pernambuco de 1960, de longe a mais importante experiência de frente popular da história brasileira;
  2. a experiência de Ciro Gomes como governador do Ceará em 1990;
  3. e a ascensão dos governadores progressistas a partir de 2002, no encalço da ascensão de Lula à presidência da república.

São experiências muito distintas em tempos históricos muito diferentes. Das três, a mais densa é a da Frente Popular nos anos 1960, abortada violentamente pelo Golpe de 1964. Há muita literatura sobre o assunto, mas basta dizer que a confluência em um mesmo território de personagens (que brigavam muito entre si, mas também se alinhavam) como Miguel Arraes, Celso Furtado, Paulo Freire, Francisco Julião e Gregório Bezerra produziu um belo processo político emancipatório. Por um breve tempo, na eleição da chapa Cid Sampaio-Pelópidas da Silveira (1958) no governo do Estado, um usineiro e o prefeito popular do Recife, parecia haver uma possibilidade tênue de aliança orgânica. Mas ela logo se desfez. A burguesia nordestina, usineira, algodoeira, industrial e financeira — no fundo, faces da expansão e reprodução do mesmo capital regional agrário — temeu a revolução popular mas, mal sabia, como demonstra soberbamente Francisco de Oliveira no clássico Elegia para uma religião, que estava criando as bases de seu próprio haraquiri, facilitando a concentração industrial no sudeste e a penetração definitiva do capital monopolista externo numa região que ainda estava formando seu próprio capital.9

Até hoje pergunta-se sobre a fortaleza do mito Miguel Arraes. Escreve-se rios de tintas sobre o acordo fordista entre os trabalhadores, a burguesia e o Estado que deu origem, depois da Segunda Guerra Mundial, ao projeto de capitalismo democrático do Welfare State na Europa Ocidental. É preciso estudar o primeiro esboço de um compromisso de classe em Pernambuco, que foi o famoso “Acordo do Campo” (1963), o primeiro acordo de papel passado no país entre trabalhadores rurais e usineiros, arbitrado pelo governador Arraes, elevando os salários e melhorando as condições da Zona da Mata. A seu modo periférico, estava-se formulando um tipo de regulação o, senão fordista, ao menos em direção ao que seria o capitalismo de um “capitalismo democrático”, no qual os direitos de cidadania estão parte constitutiva. Deu no que deu, mas o mito estabeleceu-se. Mas as eleições municipais de Recife, que pôs na condição de adversários dois jovens que reivindicam o mesmo legado, João Campos (PSB) e Marília Arraes (PT), parece demonstrar a força do mito criado, mas também — a ver —, seu exaurimento.

O caso de Ciro Gomes é totalmente diferente e por isso serei telegráfico. Ele ascende apadrinhado por Tasso Jereissati, que também foi eleito em 1986 com um discurso de modernização do Ceará, e representa o momento de uma burguesia cearense que busca afirmar-se e investe no seu Estado. Era um momento em que se perguntava se ainda havia um nordeste, se fazia sentido ainda trabalhar o conceito de região, diante de várias realidades microrregionais e metropolitanas, de que o trabalho seminal é o paper de Tania Bacelar Nordeste, nordestes: que nordeste?10

O terceiro impulso é a recém-finda “Era Lula”, no qual o conceito de região voltou a fazer sentido pleno a partir dos programas de transferência de renda, de muito impacto no Nordeste, mas principalmente pelo investimento público. No plano político, chegou-se a imaginar um “Nordeste Vermelho”. Para mim, nunca houve um cinturão vermelho no Nordeste. Houve, isto sim, por circunstâncias que não se repetem, importantes vitórias eleitorais na região de governadores progressistas, e de Lula (2006), Dilma (2010 e 2014) e Haddad (2018). A tal “onda vermelha”, como toda onda, era de conjuntura e não estrutura. Não por acaso, todos os governadores do bloco progressista nordestino — em que pese uma resiliência dos Ferreira Gomes no Ceará — saíram da eleição colhendo derrotas e resultados muito aquém do esperado nas capitais e cidades médias (São Luís, Natal, João Pessoa, Salvador, Campina Grande, Vitória da Conquista, Feira de Santana, Petrolina, Caruaru etc.), o que pode um acurado balanço.

Gramsci tematizou na Itália um transformismo cujo modus operandi consistia em decapitar a cabeça do setor popular cooptando suas lideranças no parlamento. Aqui no Brasil, inovamos em tempos recentes. O setor progressista finge que tenta cooptar a oligarquia, tanto no parlamento como também no executivo. Francisco de Oliveira chamou o fenômeno de “hegemonia às avessas”, ou seja, um processo cuja direção intelectual e moral é simbolicamente progressista, mas o alicerce do poder político mantém-se no essencial garantindo os dedos e até sem perder os anéis.11

O centrão está sempre de olho nos cordéis do poder, não por algum ritual protocolo secreto ou teoria da conspiração, mas por longa história de comando político-prático. Um encadeamento de fatos significativos, aparentemente fortuitos, vem passando relativamente desapercebido dos analistas. Embora estivesse desde sempre em posições estratégicas de mando no congresso nacional, a eleição de Eduardo Cunha em 01/02/2015, seguido de Rodrigo Maia (14/06/2016), conquanto em conjunturas diferentes e ambos sejam personagens distintos, permitiu o protagonismo da crise política no congresso pelo centrão e a direita neoliberal, ou seja, do campo conservador, sem contraponto à altura dos partidos de esquerda e centro-esquerda, em tese mais portadores da mensagem que das estruturas.

Na recente crise, o bloco conservador passou a ditar a pauta, o rito e o ritmo de votações históricas — especialmente o impeachment de Dilma Rousseff. Afora reformas importantes, como a trabalhista e da previdência, o campo conservador, aproveitando a onda da antipolítica, tomou a dianteira nas iniciativas de mudanças na legislação eleitoral, verdadeiras microrreformas políticas, todas em benefício próprio. O relator era ninguém menos que Rodrigo Maia.

A vocação histórica dos conservadores no parlamento, num processo de crise, é sempre a construção da nova ordem como restauração, diga-se de passagem, nem só no Brasil, mas na própria história universal do processo das revoluções burguesas. A particularidade brasileira é que a dinâmica das restaurações sempre realiza sua incontrastável viagem redonda — mas hasta cuando?

Já foi assim na constituinte de 1988, quando reapareceram as molas mestras do centrão contemporâneo. Foi a famosa “reação do plenário” dos deputados do “baixo clero”, conduzida — quem se lembra? — por Roberto [é dando que se recebe] Cardoso Alves (PTB-SP). A tal reação, como resultado, derrubou as mais importantes propostas progressistas aprovadas anteriormente na Comissão de Sistematização do Congresso Constituinte. As propostas alteravam o papel da propriedade da terra, dos militares, dos meios de comunicação, o sistema político e cinco anos de mandato para o presidente Sarney. Hoje não é diferente. Como antes, foi aprovada em meados de 2015 a chamada, à época, “microrreforma eleitoral”, já vigente nas eleições municipais de 2016, que diminuiu o tempo de campanha e de propaganda eleitoral gratuita nos meios de comunicação de 90 para 45 dias e redistribuiu o tempo de rádio e TV. Por sua vez, o STF julgou que o financiamento das campanhas só pode ser feito por pessoas físicas (limitadas a 10% do rendimento declarado no ano anterior ao pleito) e via fundo público partidário. As novas regras, adicionadas ao fim das coligações proporcionais e o retorno da cláusula de barreira (PEC aprovada em 2017), finalmente passaram a vigorar plenamente nas presentes eleições.

Qual a importância desse assunto, aparentemente chato e lateral na dinâmica da crise? Sumariamente, um aumento exponencial da oligarquização e autocratização, do cesarismo e do bonapartismo históricos, no âmbito do sistema político brasileiro. Explico-me. As medidas da microrreforma política combinadas pelo congresso e STF, nem seria diferente, desataram um processo de reorganização do sistema erguido pela transição transada da “Nova República” e a constituição de 1988. Os pivôs políticos do sistema, de 1994 (estabilidade do Plano Real) até o impeachment golpista de Dilma, foram o PSDB e o PT. Segundo boa parte da ciência política mainstream, revivescendo velhas ilusões dualistas que não vem ao caso abordar neste espaço, passaram anos escrevendo que PT e PSDB, grosso modo, constituíam dois partidos “modernos”, ligados à burguesia paulista e à antiga classe operária fordista do ABC, a quem cabia a tarefa pseudoilustrada e “iluminista” de dirigir com o pragmatismo das alianças e subordinar a cauda do “atraso” (as várias expressões do centrão).

No mundo da república ideal, o PT e o PSDB operariam na confortável posição de partidos-guia, ou seja, o partido de governo, que influencia mais diretamente na condução da política econômica, das relações internacionais e na elaboração das políticas sociais. Por sua vez, o centrão carrega o piano, na presteza de serviços congressuais de que se incumbem os partidos-pivôs (o PFL no governo FHC e o PMDB, bem como outros partidos, nos governos Lula e Dilma), equidistados a realizar o jogo sujo de composição das maiorias congressuais, e Lula e FHC seriam os maquiavélicos condottieres do sistema político. De uns tempos para cá, a cauda começou a balançar o cachorro.

Vale a pena observar que, em vez da viagem “virtuosa” do PT e do PSDB, distintos e complementares na “modernidade”, como se fossem faces de uma mesma virtuosa moeda na utopia de constituição de uma nação “civilizada” e “cosmopolita”, a dura face da realidade sobreveio no sistema na forma de uma aguda crise de representação dos representantes junto aos representados, cujo primeiro sintoma foram as mobilizações de junho de 2013, e continuaram com a assunção da Lava Jato, a onda antipolítica, que gerou a crença mágica nos discursos dos outsiders, brecha por onde entrou o discurso salvacionista de Bolsonaro. Não é exagerado chamar esse processo de conjunto, nos termos de Gramsci, de crise orgânica (Florestan Fernandes, certamente, chamaria pelo oximoro de crise de hegemonia do domínio autocrático-burguês) — uma aguda crise de hegemonia não apenas do sistema político, mas de todo o carcomido tecido social.12 Desculpem-me entoar o velho chavão, mas abriu-se no país uma situação de epidêmicos sintomas mórbidos (donde o séquito de irrealidades cotidianas e bizarrices de todo santo dia na vida de um brasileiro), em que o velho insiste em sobreviver e o novo ainda não amanheceu.

Noves fora a aguda crise social, econômica e cultural, no âmbito específico do sistema político, que trabalha conforme suas próprias regras e hábitos, a “cauda” começou a balançar o cachorro pelas artimanhas de seguidas microrreformas políticas, aparentes pequenos ajustes de parafuso, mas que de fato contribuem para autocratizar e bonapartizar exponencialmente o sistema político brasileiro. Recentemente, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, declarou candidamente que o Brasil começa a fazer uma “transição para o voto facultativo”, desconsiderando olimpicamente que a experiência prática do voto obrigatório entre nós alargou pelas margens a representatividade do sistema político para além das clientelas e interesses organizados.13 Caso se imponha de vez o liberalismo tosco do voto facultativo, o recrutamento do eleitor pelas estruturas seguirá ativo, mas será quase impossível escutar a voz dissonante das massas desorganizadas, as quais sobrarão os recursos da desobediência civil ou dos protestos espasmódicos sem juízo.

Em interessante reportagem, publicada poucos dias antes da eleição municipal, os jornalistas João Pedro Pitombo e Guilherme Garcia constataram um movimento de migração de vereadores na janela partidária de mudança de partido, ocorrida entre março e abril deste ano, de partidos menores rumo aos principais partidos conservadores, especialmente o centrão.14 DEM, PSD, PP, MDB e Republicanos estão entre as legendas que mais ganharam vereadores. São partidos municipalizados, mais fácil de cumprir os cálculos do quociente eleitoral, acesso à distribuição de recursos do fundo partidário e perspectiva de liberação de emendas parlamentares. Não por acaso, o indefectível Gilberto Kassab, presidente do PSD, definiu, em recente entrevista, a nova legislação de “saudável” por proibir “coligações proporcionais”.15 Voto facultativo, mais a condição de constituir o eixo do novo sistema de partidos pós aplicação da cláusula de barreira, será o mundo dos sonhos realizados do centrão. Reparem, a propósito, a prova materialista de comer o pudim, como dizia Engels, na próxima janela partidária, em 2022, na migração de deputados de partidos ameaçados pela cláusula rumo aos grandes partidos do centrão.

Entre março, abril e maio deste ano, o Brasil estava formalmente em quarentena, a pandemia circulava a pleno vapor e os devotos do bolsonarismo convocavam manifestações golpistas contra o congresso e o STF. No ápice da crise interpoderes, precisamente na sexta-feira, dia 22 de maio, o presidente Bolsonaro anunciou a decisão, em reunião de gabinete dos “ministros da casa”, de enviar tropas para intervir no STF. “Apesar da extrema gravidade do anúncio, o general Luiz Eduardo Ramos recebeu bem a intenção do presidente de partir para um confronto de desfecho catastrófico (…) A certa altura, o general Heleno tentou contemporizar e disse ao presidente: — Não é o momento para isso”.16

Finalmente, o governo Bolsonaro começou a tomar sua forma atual, cuja adesão do centrão à base do governo, sob as bênçãos dos militares do palácio, Luiz Eduardo Ramos, Augusto Heleno e Braga Neto, significa dado de crucial importância.17 Governos que tentam estabelecer novas ordens só adquirem contornos mais nítidos depois de certo tempo. Sempre há um grau de indeterminação. Como o centrão não nasceu para ser placa de direção de rumos na estrada, é mais um aglomerado de partidos-pivôs que um partido-guia, começa a reocupar espaços no aparelho de Estado, o que poderia provisoriamente definir como um governo eleito de comando militar (não confundir com regime militar, ditadura ou tutela de alto comando, embora seja possível evoluir para isso em outra conjuntura), suscetível ao personalismo ou bonapartismo de seu chefe. Conserva, como disse o velho Samuel P. Huntington (Political Order in Changing Societies) em 1968, o conteúdo das “ordens pretorianas” de países de autocracia burguesa na periferia do capitalismo (em 1968 Huntington mencionava explicitamente países da África e América Latina, especialmente o Brasil, naquela época recém-vítima de um golpe militar).18

Não é, como recitam alguns analistas apressados, um governo fascista, nem muito menos um Estado fascista. Ainda há uma longa jornada por dentro das instituições do Estado a cumprir para que tal desiderato da extrema direita aconteça. Por outro lado, o governo tem, é claro, forte associação de base com um movimento de massas de feição neofascista originário das redes sociais e da segunda fase dos movimentos de junho de 2013.

Em maio, fracassou uma primeira tentativa golpista do governo Bolsonaro, especialmente por receio, da parte dos militares da ativa, de embarcar numa aventura voluntarista.19 Em virtude do malogro, Bolsonaro teve de operar a formalização de um acordo com centrão. De fato, o governo sempre teve o apoio do centrão nas votações mais importantes no congresso, mas o apoio era ad hoc. Ainda perdurava em setores do governo e nas redes sociais bolsonaristas o discurso, muito forte nos primeiros meses do governo, de consolidar maioria através das chamadas “bancadas temáticas” ou corporativas (agronegócio, evangélica, da bala etc.).

Agora, passada a eleição e consolidada a adesão do centrão no congresso que, a preço de hoje (11/12/2020), terá candidato a presidente da câmara dos deputados Arthur Lira, vem ao caso lembrar a origem conservadora do centrão na velha Arena da ditadura para observar que as raízes do pacto são antigas. Sem dúvida, o primeiro item do pacto é a própria sobrevivência do governo, matando no peito qualquer proposta de impeachment. Cabe lembrar, no entanto, que Arthur Lira é um candidato do centrão restrito, não do centrão expandido (este foi o caso da gestão de Rodrigo Maia, nos derradeiros dias). Por trás da aliança das botas com os chamados grotões, é preciso lembrar, sempre se encontra à espreita a ordem burguesa. Serão duras as provações de 2021.