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O brilho ofuscante da lacração

Tom Vieira. Manchete.

Há alguns dias, ao abrir minhas redes sociais, percebi a reprodução incessante de um texto denunciando a desumanização e a objetificação das mulheres que orbitam Dan Bilzerian. Conhecido entre seus seguidores como “rei do Instagram”, D.B. é homenageado diariamente pelas milhões de curtidas e comentários. Uma breve olhada em seu perfil dispensa qualquer dúvida. Rodeado por corpos seminus, armas de fogo, dinheiro em espécie, e exibindo obsessivamente sua máquina de músculos, D.B. sintetiza os símbolos mais invejados de uma masculinidade grotesca.

Denunciando o sexismo e o machismo evidentes por trás das postagens de Dan, incontáveis mulheres — e alguns homens — passaram a divulgar sua imagem, associando-o ao que há de mais nefasto. Condenaram não somente o próprio, mas todas as pessoas que acompanhavam suas postagens. Diante da impossibilidade de aniquilá-lo fisicamente, os “canceladores” se ocuparam em tentar destruir sua imagem com lacrações.

A lacração é um terreno cheio de armadilhas. Àqueles para quem o termo “lacrar” causa certo estranhamento, explico-o: diz-se que alguém “lacrou” quando fez ou disse algo de maneira tão peremptória, que não pode nem ser refutado. Existem duas formas de lacração, podendo tanto sacralizar — no sentido de tornar irrefutável — quanto anular automaticamente o que foi dito ou feito — o que entendemos pelo ato de “cancelar” alguém. Sempre atua nos extremos. Quem lacra responde a alguém, rebate a uma crítica, reage a um posicionamento polêmico. Uma forma brutal de encerrar a discussão.

A título de esclarecimento da variante menos “violenta”, exemplifico: a inofensiva “fada sensata”, aquela que age sobre uma forjada “sensatez” de uma mitologia perigosamente lúdica e incontestável, normalmente pronunciada por uma voz feminina, e sua versão testosterônica de quem “lança a braba”, atitude que se coloca de forma igualmente categórica. Neste terreno, valoriza-se mais o ganhador do que o perdedor. O surgimento dessas tipologias na gramática da rede apresenta-se, portanto, como evidências sutis de uma tendência generalizada de polarização.

Já o cancelamento, popularizado pela expressão “cultura do cancelamento”, remete a uma forma de linchamento virtual que pretende difamar, arruinar, ostracizar o alvo “cancelado”. Em um contexto virtual, os cancelamentos se manifestam como uma espécie de “avalanche” de comentários — ordenados, inflamados, simplórios — sobre determinado assunto ou sobre alguém. Nesse balaio, vemos a busca por justiça confundir-se com um ímpeto justiceiro. Esse novo tipo de lacre não legitima a correspondência “selada”, mas condena-a mesmo antes de ser aberta.

Basta uma fagulha taxativa para começar o incêndio. Aí, não sobra espaço para dúvidas. Já sabemos quem está ou não do lado da verdade. É a morte do diálogo e das nuances. A morte dos “mas” e dos “porém”. Troca-se o “e” pelo “ou”. Todos esperam, no quarto de despejo da internet, o que Antônio Prata chamou de obituário dos cancelados. O rótulo é fatal. O mundo se divide entre lacradores e lacrados. O combustível? Aqueles que aplaudem cegamente o espetáculo mudo. O show acabou, que venha o próximo. Uma espécie de comportamento que visa pregar listas infindáveis de pessoas emudecidas na praça da cidade, sentenciadas ao apedrejamento moderno que é o cancelamento.

A razão lacradora, ao se interseccionar com o feminismo, pode trazer efeitos catastróficos. Um deles é que os problemas emergenciais da realidade são ofuscados. O combate efetivo do problema, aos poucos, se distancia. Os conflitos, a muito custo identificados e assumidos, permanecem sem o desdobramento que lhes poderia corresponder.

Após esse movimento virtual, inúmeros casos de violência contra a mulher cometidos por D.B. foram trazidos à luz. Quem sabe, com a viralização dessas denúncias, alguma justiça real possa ser aplicada. Não sei. O que sei é que só conseguimos enxergar as injustiças cometidas uma vez que ele ainda estava lá, uma vez que ele ainda não tinha sido cancelado.

Bem entendido, também não vale cancelar o cancelamento. Não dispenso a importância de entender essa forma de ativismo virtual como uma possibilidade de regulação social. Diante da selvageria da internet e da burocratização dos processos judiciais, uma forma paralela de justiça encontrou nova maneira de se expressar.

O que questiono aqui, portanto, é a efetividade do ciberativismo conduzido sob a ótica do cancelamento: selecionar quem representa o pior da masculinidade para manifestar tudo o que se mostra como restos de um mundo moralmente elevado. Um mundo que já superou a objetificação e a mercantilização do corpo feminino, e agora caminha triunfante no rumo da purificação moral, condenando à vala comum os imorais e pervertidos. Critiquemos a natureza misógina de D.B., mas com muito cuidado para não nos posicionarmos em um lado diametralmente oposto, em um moralismo purificador e exterminador das expressões dissonantes.

Personagens como D.B. passam a ocupar um espaço do qual não são merecedores, e cancelá-los torna-se mais importante do que discutir possibilidades de combatê-los. Os mecanismos de dominação do corpo da mulher se aperfeiçoam a cada ano e, portanto, as formas de combatê-los exigem maior elaboração. O caráter ginasiano da exposição mostra-se tão frágil e ineficaz diante das complexas ferramentas do mundo hiperconectado que o número de seguidores de D.B. aumentou após uma onda de posts acusando-o das maiores barbaridades. Vivemos em um sistema que inventa e reinventa formas cada vez mais sofisticadas de moldar a subjetividade feminina. Não é possível que nos atenhamos a métodos tão precários e improdutivos de combate.

A educação masculina é brutalizante: valoriza a maquinação do corpo, a performance sexual, a apatia emocional e o acúmulo de riquezas; nesse sentido, Dan se encaixa perfeitamente nas expectativas de um sistema que estimula o consumo e a competição. Dan não é uma ilha desvirtuada dentro do Shangri-lá da internet. Dan é, infelizmente, a correspondência perfeita de um sistema doente. Apontá-lo como exceção apenas nos exime da responsabilidade de pensar o problema em termos estruturais, limitando-o à ação individual e de baixo alcance. Dar unfollow coloca a questão embaixo do grosso tapete das soluções-fáceis-e-rápidas, onde os cancelados se encontram e brindam à impunidade.

Apesar de o cancelamento ser a via mais instintiva e medular de punir alguém, no fim, acaba sendo uma faca de dois gumes. Afinal, a causa também perde. Aos poucos, seguimos aproximando-nos cada vez mais da “guerra de todos contra todos”. Enquanto eles mostram apenas as duas margens opostas do rio, sigamos Guimarães Rosa e agarremo-nos à terceira. Valorizemos os entretons. Contra um Partido de Trolls que se sustenta na esterilidade dos binarismos, restam-nos os meandros da razão. Se nem ela conseguimos reivindicar, a guerra já está perdida.