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Laicidade ou fundamentalismo contra a ideia de cristofobia

Em sua alocução virtual na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 22 de setembro de 2020, gravada em Brasília num vídeo voltado para os 35% de brasileiros que o apoiam em qualquer circunstância, o presidente Jair Bolsonaro expressou preocupação com algo que chamou de “cristofobia”. Numa época de irracionalismo espantoso, em que a literalidade de textos bíblicos estabelece “verdades” contra o conhecimento científico, o “terraplanismo” é defendido por pessoas que talvez tenham dado a volta ao mundo de avião, e um velho astrólogo com pose de filósofo torna-se ideólogo de lideranças políticas, qualquer novidade enunciada com convicção ganha ares de coisa séria. Além de dar azo a especulações, o neologismo “cristofobia” fornece rótulos como “cristófobo”, ou “cristofóbico”, à lista de epítetos como “comunista”, “socialista”, ou “herege”, com os quais a extrema direita brinda quaisquer adversários. É claro que indivíduos conscientemente comunistas, socialistas, ateus e agnósticos, ou simples fiéis que não se constrangem com dogmas, tendem a rir dessas qualificações. Elas, afinal, são negativas apenas para quem as verbaliza, com ignorância e intenção malévola.

Malgrado o aspecto quase histriônico das inverdades que dominaram o discurso como réplica a notícias sobre o Brasil em chamas — incêndio no Pantanal, multiplicação de queimadas na Amazônia, as então quase 150 mil mortes e 4,5 milhões de contágios do Covid-19 —, o alerta contra um fenômeno cuja etimologia denota “aversão a Cristo”, feito por quem o fez, recomenda que se examine o que representa. Especialmente porque a atenção para tal fobia foi chamada numa fala cujo público-alvo não podiam ser os representantes de Estados naquele recinto, que jamais engoliriam explicações autoglorificadoras para problemas nacionais tão visíveis. Seu texto somente pode ter sido escrito para o povo brasileiro em casa, diante da televisão, perplexo e indignado ou bovinamente crédulo, que vota nas eleições.

Uma brevíssima retrospectiva

Em setembro de 2019, quando da primeira intervenção na Assembleia Geral da ONU, a tônica presidencial era diferente. O texto, redigido nos Estados Unidos, com participação de auxiliares de Donald Trump, tinha como destinatários os chefes de Estado e de governo estrangeiros, que se haviam manifestado contra as queimadas e a reversão das políticas ambientais brasileiras. O viés era o mesmo, assim como a apresentação grosseira, mas a substância, voltada para o exterior, não trazia surpresas. Referência àquilo que um ano depois seria chamado de “cristofobia” não houve. Se algo se pensou nessa linha, vinha embutido na parte relativa a direitos humanos. Falava de “perseguição religiosa” e aludia a “ataques covardes que vitimaram fiéis congregados em igrejas, sinagogas e mesquitas”, expressando preocupação com “a violência contra missionários e minorias religiosas, em diferentes regiões do mundo”. O trecho terminava declarando: “É inadmissível que, em pleno Século XXI, com tantos instrumentos, tratados e organismos com a finalidade de resguardar direitos de todo tipo e de toda sorte, ainda haja milhões de cristãos e pessoas de outras religiões que perdem sua vida ou sua liberdade em razão de sua fé.”1

Por menos que essa declaração refletisse prioridade num país onde a discriminação sempre foi de cristãos contra as religiões de matriz africana, tendo em conta que a promoção dos direitos humanos faz parte dos propósitos das Nações Unidas, as frases de Bolsonaro não geravam inquietação. Observadores atentos, no entanto, não terão deixado de notar que o presidente Trump, que falara antes como anfitrião, também condenara perseguições religiosas contra cristãos. Intrigado pelas observações desses dois presidentes, procurei averiguar se algum relatório temático no Conselho de Direitos Humanos havia acusado a existência de novos movimentos sistêmicos anticristãos. O que consegui apurar não foi mais que o registro habitual de incidentes praticados por indivíduos ou grupos ligados a organizações terroristas, ou por muçulmanos inflamados por alguma ação ou publicação considerada blasfema. Isso não impedia que associações religiosas produzissem outros relatórios de ações voltadas contra cristãos. O secretário de Estado Mike Pompeo, por sua vez, havia criado, em 2019, um comitê de peritos, todos conservadores, para orientá-lo sobre a defesa dos “direitos inalienáveis” que teriam forjado os Estados Unidos. A liberdade de religião, causa que levou os peregrinos ingleses a embarcarem com suas famílias no Mayflower rumo à América, no século XVII, é um deles.

Numa cidade como Nova York, onde os atentados de 2001 contra o World Trade Center são relembrados patrioticamente pouco antes da abertura da Assembleia Geral da ONU, a expressão de preocupação do presidente Bolsonaro em 2019, como a do presidente Trump, soava como dirigida aos extremistas islâmicos. Estes eram unanimemente repudiados, sem que isso representasse novidade, nem refletisse “islamofobia”, primeiro neologismo utilizado a propósito de uma religião específica. A referência a fiéis que rezavam em sinagogas e mesquitas, por sua vez, condenava convenientemente os incidentes selvagens contra judeus e muçulmanos inocentes, praticados por “lobos solitários” autoqualificados como brancos e cristãos, até na Nova Zelândia. Nada se notava, portanto, que atraísse atenção especial. Estranho foi, em 2020, o apelo de um presidente brasileiro que nunca havia pensado em direitos humanos, lacônico e fora de contexto, “a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia”. O apelo se explicava, suponho, pela afirmação final, muito reiterada no âmbito doméstico: “O Brasil é um país cristão e conservador e tem na família sua base”.2

Islamofobia e cristianofobia

Depois de inspirar a luta pela independência das populações muçulmanas como amálgama nacionalista, foi com a revolução iraniana de 1979 que o islã, como teologia política, adquiriu sentido contra-hegemônico. Entretanto, malgrado episódios como a invasão da embaixada americana e longa detenção dos diplomatas, os xiitas iranianos não eram “fundamentalistas”. Além de influenciados no começo pela esquerda secular, com participação ativa de mulheres nas manifestações de rua, essa qualificação terminológica lastreada na experiência corânica é inadequada para um regime que desde cedo dispôs de um Parlamento, eleito por voto popular.

Precedido por partidos políticos na oposição, como a Irmandade Muçulmana do Egito, que só foi chegar ao poder depois da “Primavera Árabe” de 2012–14, o fundamentalismo muçulmano, inspirado na vida e nos costumes do tempo de Maomé (século VII d.C.), emergiu no cenário internacional na década de 1980. Primeiro se manifestou na luta dos talibãs no Afeganistão contra as forças de ocupação soviéticas. Mas foi na Argélia que adquiriu as feições terroristas que o caracterizam até hoje. Lá o FISFront Islamique du Salut — ganhara eleições democráticas, mas fora impedido de assumir o poder, em função de seu programa, que previa abolição do sistema eleitoral. Marcadas por execuções de estrangeiros e argelinos não sectários, com violência brutal contra mulheres e meninas sem véu, a ação dos fous de Dieu (loucos de Deus) se tornaria padrão em organizações como a Al-Qaeda e o DAESH (Estado Islâmico), e se espalharia depois por vários continentes. Foi com esse pano de fundo, a que se acrescentariam as guerras “étnicas”, com sustentação ortodoxa, católica e muçulmana, na ex-Iugoslávia e no Cáucaso, que se realizou a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, em Viena, em 1993. Mas o fundamentalismo islâmico não se limitou a áreas em conflito. Cresceu de tal maneira que, já em 1994, a Conferência do Cairo sobre População e Desenvolvimento se realizou sob ameaça de atentados pelos extremistas egípcios. O terrorismo dito “jihadista” teve seu momento de visibilidade culminante na destruição catastrófica das torres do World Trade Center, símbolo do capitalismo ocidental, em Nova York, em 11 de setembro de 2001, pelo desvio suicida de aviões comerciais lotados, acompanhada de atentado igual contra o Pentágono, em Washington.

Enquanto esses fatos de inspiração religiosa ocorriam no cenário internacional, na esfera cultural do Ocidente ganhava força a noção acadêmica de pós-modernidade, com rejeição ao universalismo iluminista, visto como eurocêntrico, e a afirmação das identidades diferentes, ou “minorias”. Foi dessas tendências dialéticas, em que a asserção das diferenças cobrava políticas de direitos específicos, e as discriminações étnicas eram agravadas pela atuação de agentes extremistas, que emergiu a síntese do multiculturalismo para as tensões sociais. E foi nesse contexto de idealização do mosaico de peças variadas como panaceia neoliberal, não como epifenômeno da globalização capitalista, que se realizou a Conferência de Durban sobre discriminação racial, Racismo, xenofobia e intolerância correlata.

Para os temas por ela tratados, a Conferência de Durban de 2001 trouxe à ONU e aos esforços antirracistas tantas inovações quanto a Conferência de Viena, de 1993, aos direitos humanos em geral. Impulsionada pela prática de movimentos sociais, Durban oficializou expressões como “afrodescendentes” para os indivíduos pretos e pardos, antes classificados em separado, ou em conjunto como “negros”, equiparou as discriminações contra muçulmanos e estrangeiros ao racismo, e consagrou o termo “islamofobia”. No artigo 150 de seu Programa de Ação, a Conferência apelava a todos os Estados para “a necessidade de combaterem, em todo o mundo, o antissemitismo, o antiarabismo e a islamofobia”, adotando medidas “contra a emergência de movimentos baseados em racismo e ideias discriminatórias sobre essas comunidades”.3

Depois do 11 de Setembro, quando a reação militar do governo de George W. Bush na “Guerra ao Terror” entrou em operação, engendrando e tentando justificar violações acintosas de direitos humanos, o conceito de islamofobia, não sem razão, generalizou-se. As organizações antirracistas, porém, exageraram, enquadrando na islamofobia qualquer posição “politicamente incorreta”, interpretada como contrária aos muçulmanos. Tal foi o caso, por exemplo, nas discussões francesas sobre a legislação que proibiu o véu muçulmano (e demais símbolos religiosos) nas escolas públicas, ou na oposição a concessões sociais exageradas a imigrantes, como habitações separadas para as esposas de polígamos. Intensificou-se, então, a fragmentação de identidades e invenção de fobias, que se iria refletir no documento final da Conferência de Revisão de Durban, em Genebra, em 2009. Diz ele, em seu parágrafo 12, que a conferência:

Deplora o aumento e o número de incidentes de intolerância religiosa e violência, inclusive por islamofobia, antissemitismo, ciristianofobia e antiarabismo, manifestados em particular pela atribuição de estereótipos derrogatórios e pela estigmatização de pessoas baseadas em sua religião ou crença; e, nessa linha, insta todos os Estados membros das Nações Unidas a implementarem o parágrafo 150 da Declaração e Programa de Ação de Durban.4

Inseriu-se, assim, na listagem identitária das Nações Unidas, por iniciativa ocidental, o neologismo “cristianofobia”, horror ao cristianismo ou aos cristãos, não à pessoa de Cristo, como correspondente especular da islamofobia, contrária ao islã, não à pessoa de Maomé.

A cristianofobia é monitorada na ONU como manifestação de “racismo ou intolerância correlata”. Enquadra-se no mandato do relator ou relatora para as formas contemporâneas de racismo, estabelecido pela antiga Comissão dos Direitos Humanos em 1994, depois convertida em Conselho, nos seguintes termos:

4. Examinar (…) incidentes de formas contemporâneas de racismo e discriminação racial, qualquer tipo de discriminação contra negros, árabes e muçulmanos, xenofobia, negrofobia, antissemitismo e intolerância correlata, assim como medidas governamentais para as superar, e apresentar relatório sobre esses assuntos … ;

5. intercambiar ideias com os mecanismos relevantes e órgãos de tratados do sistema das Nações Unidas, inclusive o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD), com vistas a aumentar sua eficácia e cooperação mútua.5

O CERD, órgão de acompanhamento da Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial, de 1965, trata do assunto, no entendimento de que religião é elemento importante na conformação das etnias, e a discriminação por “origem étnica” está prevista na definição da discriminação racial do Artigo 1º da Convenção. O cerceamento à liberdade de religião ou culto é matéria do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, monitorado pelo Comitê dos Direitos Humanos, órgão de controle, como o CERD, composto por peritos, que, apesar do nome parecido, não se confunde com o Conselho de Direitos Humanos, composto por Estados. Vem, aliás, do Comitê de Direitos Humanos a interpretação universalista de que a liberdade de religião e de culto, prevista no Artigo 18 do Pacto de Direitos Civis e Políticos, de 1966, além de proibir medidas coercitivas contra qualquer fé, abarca naturalmente o direito de não ter religião.

Diante desses dados, é desde logo possível observar o equívoco dos que encaram “cristofobia” como sinônimo da “cristianofobia” registrada em documentos da ONU. Ou que encaram a “cristofobia” mencionada por Bolsonaro como uma nova provocação politicamente incorreta, inspirada em “homofobia” e outros barbarismos comuns usados por militantes e pela imprensa: “gordofobia”, “transfobia”, “LGBTfobia” etc.6

Cristofobia como problema diferente

Ao que tudo parece indicar, “cristofobia” é termo inventado cuidadosamente pela extrema direita internacionalizada, e pouco tem a ver com o preconceito anticristão de seguidores de outras religiões. Significando “horror a Cristo”, ou seja, aversão a Jesus designado por seu título divino, que significa “messias”, “redentor” ou simplesmente “ungido”. Por menos que o reconheçam como encarnação de Deus, os muçulmanos, a rigor, não são cristófobos, uma vez que o Corão, ditado por Alá, homenageia Jesus como profeta, antecessor de Maomé, “selo dos profetas”, na mesma linha semita que remonta aos ancestrais do Velho Testamento. A fobia tampouco se aplicaria ao governo da China, malgrado perseguições aos católicos que ainda possa haver — e que terão baseado parcialmente a referência de Trump a “perseguições religiosas” na mesma assembleia7 — já que Pequim acaba de renovar acordo de 2018 com a Santa Sé, permitindo a ela participação na escolha dos bispos antes designados exclusivamente pelo governo chinês.

Para a extrema direita atual, ligada aos evangélicos e católicos tradicionalistas, na Europa e no Brasil, cristofóbicos são sobretudo os compatriotas ou, melhor, os conacionais, de esquerda e centro-esquerda, liminarmente rotulados como “comunistas ateus”. Estes, conforme o reducionismo que iguala comunismo a bolchevismo e stalinismo, rejeitariam a espiritualidade e proibiriam a religião, sendo responsáveis pela laicidade do Estado. São, portanto, essas pessoas que, no apelo de Bolsonaro, impediriam o exercício da liberdade religiosa, devendo ser combatidas como empecilho ao restabelecimento do cristianismo como religião dominante.

Pelo que o chanceler atual deixou entrever em explicação após o discurso presidencial de 22 de setembro, o apelo brasileiro na ONU teria duplo sentido. De um lado, chamava atenção para as perseguições contra cristãos, terríveis em diversos países, segundo estudo realizado por instituição do Reino Unido que ele não soube precisar. De outro lado, trouxe à baila o tema da cristofobia, a respeito do qual assinalou:

Acho que há uma consciência insuficiente ao redor do mundo sobre a cristofobia. Inclusive em países que já foram de maioria cristã, e onde, às vezes, a fé cristã é denegrida, atacada, quando outras fés não o são. (…). No nosso caso, país majoritariamente cristão, 90% cristão, que tem no cristianismo parte de sua essência e identidade, nos sentimos na responsabilidade de chamar atenção especialmente para isso.8

Para quem deseja aprofundar o conhecimento sobre episódios e políticas de perseguição contra cristãos fora do Ocidente, muitos dos quais em Estados aliados das potências ocidentais, até para operações bélicas em países muçulmanos, há uma massa ponderável de relatórios disponíveis na internet. Todos os incidentes constituem manifestações de cristianofobia para as quais a ONU deve estar informada. Quanto à “cristofobia”, termo cultivado pela ideologia da extrema direita, a Câmara dos Deputados federal realizou em Brasília, em 2019, uma sessão plenária para tratar do assunto. Foram protagonistas da sessão parlamentares bolsonaristas e seguidores vários de Olavo de Carvalho, principal divulgador no Brasil das teorias que atribuem ao “globalismo” e a um “marxismo cultural” por elas inventados a execução do projeto utópico comunista de revolução proletária mundial. Formuladas com o objetivo de semear o pânico e justificar o esmagamento de ideais democráticos, tais visões de conspiração englobam num socialismo fantasmagórico tudo que não seja extrema direita, desde a aliança vencedora da Segunda Guerra Mundial ao liberalismo que concedeu voto às mulheres e disseminou a ideia de direitos humanos. Acabam atribuindo a seus “inimigos” uma competência global extraordinária.

A par da ameaça que tal paranoia representa para nossas instituições, iniciada pela doutrinação atualmente imposta ao Itamaraty e a membros de nossas forças armadas, assim como à democracia brasileira com liberdade de religião e de expressão, seu grande mérito tem sido a curiosidade que desperta para grandes filósofos do século XX, todos libertários e anti-stalinistas. Talvez tenha sido pensando nisso, a par de anseios naturais de autoprojeção, que o diplomata que ora exerce a titularidade do Ministério das Relações Exteriores criou um sítio de nome pretensiosamente esotérico, “Metapolítica 17”, com subtítulo “contra o globalismo”, para divulgar elucubrações sinistras, comparadas por Maria Hermínia Tavares às gravuras labirínticas de cárceres, do veneziano Piranesi, no século XVIII.9

Visão ideológica da cristofobia

No blog pessoal em que costuma dar vazão a seus desvarios de erudição canhestra, o chanceler de Bolsonaro, que tenta fornecer algum lustro às posições do governo, publicou, em julho de 2019, um confuso artigo em que já louvava “o crescente e oportuno debate sobre o tema da liberdade religiosa”.10 Depois de recordar batidíssimas teorias antropológicas sobre o homem das cavernas para reafirmá-las contra uma simplificação absurda, de sua própria lavra, dos pensamentos de Marx e Freud, o autor concentra as energias em críticas ao marxismo como responsável pela destruição da família, da linguagem e da religião. Numa sopa em que mistura “a ideologia globalista reinante” com conflitos não causados por religião, e com o iluminismo que “começou a dessacralizar ou ‘desencantar’ o mundo”, refere-se a “guerras napoleônicas”, à “guerra do Paraguai”, à “guerra civil americana”, à Venezuela de Maduro e ao “Foro de São Paulo”. Acusa a violência destrutiva da esquerda para, em seguida, defender a violência da direita, afirmando: “A direita reconhece as contradições humanas e procura combater a violência sem hipocrisia, sem destruir o sentido da existência” — sentido que, por sinal, ele não se dá ao trabalho de explicar. Nessa mixórdia verborrágica, descreve sua conversão de ateu a católico tradicionalista, assinalando seu marianismo como um “sentimento pessoal”.

Com dificuldades intelectivas quase intransponíveis, pulando obstáculos e descartando declarações de rejeição ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso — iniciados pelo Papa João XXIII na década de 1960 —, o leitor perseverante encontrará, quase no fim da sopa, o que parece ser a intenção do cozinheiro: defender o cristianismo perseguido em terras cristãs. Somente aí a escrita se apresenta translúcida:

Como culpar aqueles países de maioria não cristã onde os cristãos são oprimidos, se aqui, nos países de maioria cristã, o cristianismo é tão mal tratado? Como exigir que eles não persigam os cristãos, quando nos próprios países da antiga cristandade os cristãos são duramente perseguidos? Será um dever de caridade cristã o de anular-se e renunciar à própria fé até o ponto da apostasia? Será que a única maneira de respeitar o “outro” é rejeitar-se a si mesmo? O Ocidente não será capaz de promover verdadeiramente a liberdade religiosa se não reaprender a respeitar o fenômeno religioso em toda a sua riqueza e profundidade, e especialmente se não reaprender a respeitar o cristianismo, seiva do Ocidente.

A conversão e a devoção de qualquer autoridade são questões de ordem particular, acordes com a laicidade do Estado brasileiro, que, desde a Constituição de 1891, separa a esfera pública, secular, da esfera privada, onde a religião se mantém. Errado é o chanceler misturar sua fé com sua função de ministro, menos nesse artigo, do que no discurso de Bolsonaro na ONU. E isso ele faz em todos os momentos de sua gestão.

No caso do Brasil, o parágrafo supracitado registra uma preocupação infundada. Somente exagero gritante pode entrever nas atitudes “politicamente corretas” brasileiras perseguição ao cristianismo. Se em outros países do Ocidente o ativismo de grupos antagônicos leva a ataques à religião majoritária, no Brasil, quando isso ocorre, diz respeito ao passado. Há, sem dúvida, correntes que cobram reescrituras da história. Há críticas contundentes à associação da velha igreja papista com o projeto colonial português, envolvendo a conquista violenta de terras, a escravatura e a catequese missionária. Acomodações recentes houve, no ensino, mas foram correções destinadas a ressaltar a experiência de indígenas e negros na formação do Brasil, miscigenado e sincrético. É fato que, com o avanço conseguido, novas reivindicações aparecem, muitas das quais recebem endosso das instituições. Mas nada há de relevante que represente cerceamento aos cristãos ou manifestações de cristofobia. O ícone representativo do país é a estátua do Cristo Redentor, que todos admiram, na cidade do Rio de Janeiro. Violações da liberdade religiosa, que certamente ocorrem, são contra as religiões afro-brasileiras. Estas não deixam de celebrar, com sincretismo espontâneo, o Nosso Senhor do Bonfim, lavando as escadas da igreja. Se algum movimento houve com efeito contrário ao catolicismo no Brasil, foi o Golpe de 1964. Tanto porque revelou a simbiose inicial do clero com a classe média retrógrada, como porque depois combateu ferreamente a teologia da libertação, a CNBB e todos os sacerdotes que defendiam direitos humanos. Hoje, o evangelismo é a religião que mais cresce no país, independentemente de raça e de cor. E o evangelismo, tal como o catolicismo, é cristão.

Diante desses fatos, a postura apresentada no artigo nada mais é do que uma afirmação identitária, maximalista e enviesada. Isso não é feito gratuitamente.

A mobilização contemporânea

O ressurgimento da religião como fator identitário reputado essencial foi um dos aspectos mais visíveis das mudanças ocorridas nas sociedades após a queda do Muro de Berlim. Diante da implosão da alternativa comunista como elemento moderador do sistema capitalista, o mundo se viu dominado pelo neoliberalismo econômico e financeiro, proponente da liberdade absoluta de mercado. Enquanto o Estado se retraía de suas funções sociais, a competitividade aparecia como única baliza, e o consumismo se transformava em meta máxima da vida, o recurso ao espiritual como compensação para as dificuldades terrenas tornou-se facilmente explorado por líderes de diversos tipos. Por um lado, a religião como componente da etnia passou a ser manipulada como fator de identificação na afirmação de “nacionalidades” — caso emblemático da antiga Iugoslávia, esfacelada pela exploração do pertencimento histórico das diferentes repúblicas ao cristianismo ortodoxo dos sérvios, ao catolicismo dos croatas e eslovenos, ao islamismo dos bósnios e minorias albanesas (na Macedônia e no Kosovo). Por outro lado, as religiões renascidas como fé transcendental autêntica adquiriam, no próprio Ocidente iluminista, feições místicas, miraculosas,11 como manifestações da graça divina, agarradas aos textos sagrados, numa tendência que Olivier Roy designou habilmente como “Santa Ignorância”.12

Enquanto no cenário mundial, a maior radicalização religiosa ocorria entre muçulmanos sunitas, cujo salafismo doutrinário, medievalista, passou a ser chamado de “fundamentalismo islâmico”, do outro lado do mundo, em países como o Brasil e outros latino-americanos, foram pastores neopentecostais que se impuseram, copiando os famosos “televangelistas” norte-americanos. Em movimentos como a Moral Majority (Maioria Moral) da era de Ronald Reagan, e de Margaret Thatcher na Inglaterra, que deu início à afirmação hegemônica do neoliberalismo, contrária ao Estado providência, os pastores e bispos protestantes investiram decisivamente na conquista de espaço e posições políticas. No Brasil, em particular, como nos bairros hispânicos de cidades norte-americanas, assim como em bairros populares de Lisboa, a partir do fim dos anos 1980, templos da Igreja Universal e das Assembleias de Deus começaram a proliferar como cogumelos, da mesma forma que as mesquitas se multiplicaram de maneira impressionante na Bósnia independente, em todo o Oriente Médio e na Turquia reislamizada. Do lado dos cristãos, tendo a teologia da libertação sido superada pela afirmação econômica do laissez faire dominante, ganhou força a “teologia da prosperidade”, pregada por neopentecostais. Oferecendo aos fiéis o apoio solidário de famílias estendidas, alternativas espirituais à depressão pelo desemprego, ao abandono individual e às drogas, associadas a espetáculos emocionais de curas milagrosas, com esperanças de enriquecimento, não é de surpreender que os evangélicos tenham registrado crescimento vertiginoso.

No Brasil, segundo dados da Datafolha divulgados em janeiro de 2020, 50% da população total seriam católicos, 31% evangélicos, 10% sem religião, 3% espíritas, 2% seguidores de religiões afro-brasileiras, 2% seguidores de outras fés, 0,3% judeus, com apenas 1% de habitantes autodeclarados ateus.13 Outros cálculos, inclusive do IBGE, variam pouco, todos demonstrando o mesmo perfil estatístico. A religião católica é a que mais tem perdido seguidores, convertidos ao protestantismo. Tais dados evidenciam a inaplicabilidade da “cristofobia” à situação real brasileira. Se o deslocamento relativo do catolicismo no país é a preocupação do chanceler católico, seria melhor que o dissesse claramente, desvinculando-se daquilo que propala. A não ser que ele considere o protestantismo a verdadeira raiz religiosa de nossa identidade nacional.

Outro dado importante, também do sistema Datafolha, é que o evangelismo no Brasil vem crescendo em todos os segmentos populacionais, tendo hoje 43% de pardos, 30% de brancos, 16% de pretos, 3% de amarelos, 2% de indígenas e 5% de outras etnias. As causas da retração católica e da preferência atual de pardos e pretos pelo neopentecostalismo são variadas. Alguns a atribuem ao excesso de burocracia da Igreja, em contraste com a fluidez, inclusive hierárquica, das Assembleias de Deus e outras denominações, onde pastores e bispos afrodescendentes são atores marcantes. Outros a justificam pela informalidade com que se formam facilmente tais congregações religiosas, unidas simplesmente pela oração conjunta.14 Quanto ao fato de grande parte dos cidadãos batizados na Igreja, que se declaram católicos, não praticarem as obrigações de culto respectivas, o fenômeno é comum a todos os países onde eles não são minoria. Liga-se ao “desencantamento” da vida social moderna, descrito por Max Weber, e tem na laicidade do Estado seu reflexo protetor. Se é por aí que se inscreve a preocupação do ministro tradicionalista, que ele então seja franco: o que deseja é o fim do secularismo, da separação entre Estado e religião, por mais que ela corresponda ao ensinamento de Cristo: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22).

As iniciativas do governo para agradar a evangélicos e, por tabela, a católicos integristas, são incessantes. Apenas para lembrar as mais recentes, ao escrever estas linhas na segunda quinzena de outubro de 2020, cito as duas portarias do Ministério da Saúde, que quase recriminalizam as três possibilidades de aborto legal previstas no nosso Código Penal, a consulta ao Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a incidência do crime de homofobia como violação à liberdade de religião, a recomendação ao Senado para derrubar o veto presidencial à isenção de encargos sociais para as igrejas, a tentativa de financiamento de escolas religiosas pelo Fundeb, a reiteração sempre agravada da oposição ao entendimento internacional sobre a saúde da mulher e o conceito de gênero, as iniciativas em defesa do ensino domiciliar em lugar da escola (para impor livremente educação dogmática e escapar do evolucionismo), a rejeição à educação sexual nas escolas, tudo isso sem falar nas escolhas presidenciais para cargos importantes nos três poderes da República, começando pelo Gabinete de Ministros. O respeito, quase submissão, às exigências de pastores por um presidente desafiador de todos é tamanho que ele precisou explicar-se muito para poder manter sua indicação de um católico, não um juiz “terrivelmente evangélico”, para a vaga disponível no STF.

Tendo em conta a afirmação final do discurso de 2020 na ONU — “O Brasil é um país cristão e conservador e tem na família sua base” —, nas circunstâncias atuais, parece pouco provável que o alerta contra a cristofobia tenha tido o sentido de mera explicação. Estudioso incansável dos movimentos sociais contemporâneos, Boaventura de Sousa Santos observa o radicalismo das mobilizações religiosas que reclamam a esfera pública em diferentes direções. Enquanto as teologias progressistas lutam contra as hierarquias sociais e políticas que se substituíram à antiga dominação da Igreja na produção de opressões e discriminações, as teologias fundamentalistas usam sua energia para “recuar no tempo, até um tempo em que a Igreja controlava todas as hierarquias”. As teologias progressistas combatem o poder, a injustiça e a opressão, nas esferas pública e privada. As fundamentalistas procuram conquistar o poder sobre o que consideram “uma esfera pública injusta e opressora”, para certamente torná-la “ainda mais injusta e opressora”.15

A diferenciação religiosa se parece, a meu ver, com o que ocorre com a militância dos direitos de minorias. Quando estas usam a identidade reivindicando medidas específicas que as protejam de discriminações igualando suas condições às dos demais, enquadram-se no universalismo da categoria superior dos direitos humanos, conforme a Declaração Universal das Nações Unidas em 1948. Quando usam a diferença em atitudes ressentidas para mera afirmação da identidade própria, sem atenção para necessidades mais amplas, distorcem o sentido dos direitos humanos, tornam-se intolerantes. Atuam como os opressores e funcionam como auxiliares do neoliberalismo imperante. É o que ocorre com o fundamentalismo religioso como dono da verdade, que quer anular a laicidade do Estado. Ocorre também com “puristas” da identidade que formam “patrulhas” de linguagem e atitudes contra qualquer desvio, refutam, perseguem e isolam companheiros dissidentes, dando força à chamada “cultura do cancelamento”. Consequência de tudo isso, o mundo vive hoje marcado por crispações identitárias, religiosas e laicas. Todas constituem manifestações políticas de direita, por mais que as segundas, como que para fortalecer posições antagônicas, declarem que são progressistas de esquerda.

Laicidade ou fundamentalismo?

Independentemente de rótulos, os brasileiros pobres e a classe média emergente vão se convertendo aos que lhes falam mais perto. Evangélicos do Brasil em geral se dizem discriminados, e até certo ponto o são. Preconceitos de origem antiga os veem como reacionários sem volta. Pessoas cultas encaram-nos como “cafonas”, grotescos, riem deles, debocham, como ocorreu com a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos logo que foi designada. Ela até que merecia, com seus dizeres ineptos e seu jeito aparentemente ingênuo. Hoje todos se calam, diante do poder que exerce. E o faz de maneira aguerrida, com determinação de pastora banhada na graça divina. Explicações sofisticadas para suas iniciativas mais graves ficam por conta do chanceler comparsa, católico neointegrista na definição de Gabriela Arguedas: seguidor da doutrina antiga, contrário às reformas do Concílio Vaticano II, mas assimilador de elementos do protestantismo em conexão com o capitalismo.16

A intelectualidade leiga de esquerda sabe que os evangélicos são populares, mas não os cultiva. Descarta as variedades internas, esquece ou não leva em conta associações evangélicas negras que atuam no antirracismo, de mulheres evangélicas feministas, de grupos de oração que não descartam jovens utilizados no varejo de drogas. A academia, com exceções quase mudas, respeita e teme os identitários dos estudos culturais que estigmatizam opiniões divergentes. Raros são os esforços de esclarecimento interuniversitário sobre o pluralismo protestante e as razões de sua capilaridade no cenário social brasileiro. Bem fazem, pelo menos, as lideranças partidárias de esquerda ao reagirem ao discurso na ONU afirmando claramente não serem contra a religião e valorizarem a mensagem de Cristo.17

Como se a junção doméstica de fundamentalismo evangélico com catolicismo integrista não fosse suficiente para seus fins colimados, representantes oficiais do Brasil participam de reuniões sobre a religião na política, nos Estados Unidos, na Hungria, na Polônia. Agora, no dia 22 de outubro, com a presença virtual dos Ministros das Relações Exteriores e da Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, em reunião paralela à Assembleia de Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil de Bolsonaro uma vez mais se uniu ao Governo Trump, assim como aos governos da Hungria, Egito, Uganda, Arábia Saudita e Indonésia, numa Declaração de Consenso de Genebra, iniciativa do Secretário de Estado Mike Pompeo, pela qual se comprometem a trabalhar contra o aborto, a “ideologia de gênero” e em defesa da família tradicional. Provavelmente acham que o sacrifício de qualquer embrião e a homossexualidade são assuntos mais graves que a fome assassina de crianças, e mais urgentes que a pandemia presente, com seus de 1,2 milhão de mortos e 42 milhões de infectados no mundo, até a data. Eu, que não sou cristofóbico, tenho convicção de que Jesus não concordaria com isso.

Em seu texto, que se intitula “Liberdade religiosa, religião libertadora”, Ernesto Araújo vê “uma conexão íntima entre religião e liberdade”, e em todo o cristianismo, “um cântico de liberdade”. O mesmo sente muita gente, inclusive os católicos comuns que seguem apostolicamente o Santo Padre Francisco, e os defensores de oprimidos que postulavam a teologia da libertação. Mais terra a terra, a costarriquenha Arguedas, trazida recentemente ao conhecimento de todos no Brasil pela renomada feminista Sonia Correa, esclarece:

O principal desígnio político compartilhado pelos vários grupos neoconservadores religiosos e neoliberais que usam a retórica da “ideologia de gênero” é controlar o estado e as suas instituições por meio dos próprios mecanismos eleitorais da democracia formal e, uma vez estabelecidos em seu interior, impor a sua própria visão social e econômica. Esse imperativo contraria qualquer medida política ou legal destinada a compensar as injustiças de classe, gênero e/ou sexuais.18

Apesar da exaltação delirante do chanceler neointegrista, é melhor o Brasil se precaver. Pela ótica terráquea, a maneira de assegurar a liberdade religiosa ocorre, comprovadamente, no âmbito do Estado laico, com separação entre o espaço privado, da religião, e o espaço público, da política. Pela prática que vem sendo vista, a laicidade do Estado brasileiro está em perigo. O político Bolsonaro nunca escondeu suas prioridades. Desde quando candidato à presidência, anunciou sua intenção prioritária de destruir muita coisa construída depois do regime militar. Na área do antirracismo ele já destruiu bastante, assim como em pontos cruciais de nossa política externa. O alerta dado na ONU em 2020 é significativo do que sua ideologia considera “liberdade religiosa”. Nossos parceiros atuais na área dos direitos humanos e direitos da mulher são teocracias fundamentalistas, como a Arábia Saudita, os Emirados Árabes, o Paquistão, países de tradição misógina, que perseguem cristãos e ainda aplicam a “lei da blasfêmia”, e a instável Uganda, com projeto para condenar à morte os homossexuais. Os Estados Unidos, primeiro Estado oficialmente laico, atualmente variam. Os extremismos sempre são parecidos.

Façamos, pois, o que for necessário para esclarecer a todos o que nosso país realmente é em matéria de religião, e deseja continuar a ser. Ou formamos bases ampliadas de apoio democrático, ou teremos, nas condições atuais, que fazer reverência patriótica à bandeira de uma república, talvez monarquia, evangélico-integrista.