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Fazer política é sair da bolha

Pipa como prêmio, Tom Vieira.

Escrevo estas linhas depois de ler os jornais de um domingo em fins de outubro. Em princípio, queria elaborar um comentário sobre as notícias. Mas algo nelas me fez pensar sobre o flutuante estado de ânimo que os acontecimentos políticos vêm provocando em muitos de nós. Ou pelo menos em mim. E então desvio-me do propósito inicial para esta breve digressão in abstracto.

HyperNormalization, documentário de Adam Curtis de 2016, feito na esteira das vitórias do Brexit e de Donald Trump, conta, lá pelas tantas, uma estorinha muito interessante da ciência da computação. Ainda nos anos 1960, desesperado com as tentativas de seus pares de fazer os computadores simularem a inteligência humana, Joe Weizenbaum, cientista do ramo e professor do MIT, resolveu escrever um programa no qual o computador fazia as vezes de um psicoterapeuta. Para tanto, buscou inspiração na obra do psicólogo humanista Carl Rogers, que tinha uma técnica de fazer seus pacientes repetirem o que haviam acabado de falar. No programa, o computador era instruído a refazer, na forma de pergunta, as frases digitadas pelo usuário. Era algo muito simples e, à primeira vista, extremamente enfadonho. Qual não foi sua surpresa ao descobrir, tempos depois, que o programa conseguia a proeza de “viciar” os usuários, a começar por sua própria secretária…

Há muito de criticável nos documentárioes de Curtis. Sua propensão a enxergar cordinhas manipuladoras nos acontecimentos narrados beira a paranoia. Por outro lado, e para atenuar, sempre deixa escapar uma brecha, ao registrar que, às vezes, o feitiço da manipulação acaba se voltando contra o feiticeiro. Não é que o resultado disso venha a ser o melhor para a humanidade, até pelo contrário, mas é, de qualquer forma, uma surpresa. Pois bem: em sua experiência desesperada, Weizenbaum é surpreendido pela descoberta de uma certa afinidade entre a “inteligência” muito simples do computador e certos comportamentos humanos que, talvez, por falta de termo melhor, poderíamos chamar de “neuróticos”. Não é incrível que as pessoas se apeguem a um jogo que se limita a reiterar o que elas dizem?

Curtis, é claro, insere o episódio no contexto mais amplo do individualismo contemporâneo, muito propício à recepção do tipo de interação social que, mais recentemente, vimos proliferar no ciberespaço. Pois o segredo das empresas que “vendem” redes sociais é justamente explorar essa pulsão neurótica de nos entrincheirar num espaço feito à nossa imagem e semelhança. De quebra, o documentário quer mostrar como essa tendência, ao ganhar adesão massiva, termina expulsando a política de nosso horizonte. Isto é, a política como capacidade humana de se abrir para o inesperado e, com isso, modificar um certo estado de coisas prevalecente.

O documentário vai um pouco mais longe, ao tentar mostrar relações dessa busca “metafísica” de segurança do self com outras buscas de segurança mais concretas e mais comezinhas. Incertezas várias sobre o futuro, para resumir, que levam a altas apostas em remédios tecnológicos que até parecem ficção científica. Compreende-se: a mania de segurança tecnológica é a contraparte da percepção difusa de que o mundo funciona como uma imensa loteria.

Os computadores modernos, com suas memórias gigantescas e motores de processamento cada vez mais velozes, são máquinas cuja “mania” é justamente encontrar padrões. A memória é o passado e o padrão supõe que, de algum modo, o futuro repetirá o passado. Na verdade, o futuro já estaria lá na memória, embora escondido na massa quase infinita de dados. E o computador seria a ferramenta poderosa que faltava para conseguir garimpá-lo em meio a tanto cascalho. Eis que a velha utopia-distopia de uma sociedade sob controle se refaz: quem tiver essas máquinas a seu serviço, terá também as chaves da cadeia. Será?

Volto agora para a política. A questão que acabo de levantar me faz lembrar o memorável diálogo de dois amigos florentinos, lá do início do século XVI, a respeito da utilidade de se estudar a história. Um acentuava seu caráter “cíclico”; o outro, a “diferença dos tempos”. O primeiro acabou fazendo uma síntese, que é a ideia de que a política se compõe de duas forças opostas: a ação inteligente (chamada de virtù) e a “fortuna”. Para nossos propósitos, a virtù bem poderia representar o lado do controle, e a fortuna, o lado do inesperado. Reduza o mundo a um ou a outro e você terá se livrado da política. A síntese dele, ao contrário, no mesmo movimento que retirava da política graus preciosos de sua suposta racionalidade, lhe devolvia a tensão dramática e, de resto, sua graça. Agora os poderosos, por mais poderosos que fossem, tinham algo a temer da própria natureza dos negócios humanos, enquanto os desesperançados, algo a esperar.

Mas como um sujeito tão convicto dos ciclos da história chegou a esse quadro? Suponho que as conversas com o amigo tenham disparado um “clique” no pensamento: que talvez fosse possível introduzir uma inteligência mais sutil na própria história, por mais que ela tendesse a se repetir. Enfim, uma inteligência que levasse em conta as surpresas da vida, seu elemento de imprevisibilidade. Mas como? Sou tentado a me valer de um termo extemporâneo: a “diferença na repetição”. Termo de sabor pós-moderno que não me agrada, mas traz a vantagem de ser autoexplicativo. E permite retomar a estorinha narrada por Adam Curtis.

Digamos que a inteligência aqui evocada corresponde precisamente à linha divisória tênue que separa a terapia humanista de Carl Rogers do programa distópico do computeiro do MIT. Num lado da divisa, temos o espelho puro e simples, o contato com algo que já sabemos de antemão se tratar de uma máquina, um ser opaco que reage a um “input”. No outro lado, um ser que, dotado de um fundo de subjetividade, nos solicita a repetição, mas para que a estranhemos, para que vejamos nela algo diferente. Num caso, a reiteração de uma identidade inerte; no outro, a reinvenção da própria identidade. Um, a nos puxar para mais fundo dentro da bolha. O outro, a nos convidar a sair dela.

Se lugar ainda houver para a política, penso com meus botões, é por essa linha fina que ela haverá de passar.

— outubro de 2020