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Espectros do fascismo, ou “sujeitos abandonados”

Camp, Tom Vieira.

Nos últimos anos, se não décadas, os fantasmas do fascismo escaparam de suas tumbas do século XX e vieram assombrar o nosso presente. Com a pandemia global do novo coronavírus estamos diante de um novo Reichtag Fire — incêndio no parlamento alemão, cuja autoria foi atribuída ao sindicalista holandês Marinus van der Lubbe [Dutch Council Communist], ocorrido exatamente quatro semanas após Adolf Hitler tomar posse como chanceler. Os nazistas imediatamente alegaram que o incêndio decorreu de uma conspiração comunista e o utilizaram como pretexto para tomar o poder (Machtergreifung) e para instaurar o controle totalitário sobre todos os aspectos da sociedade alemã (Gleichschaltung). Conforme pontuado recentemente pela revista The Economist,1 cerca de uma dúzia de estados, do Azerbaijão ao Togo, utilizaram a pandemia como pretexto para aumentar seus poderes e atribuições. De fato, esse processo pode ser visto com maior nitidez em Washington, Budapeste e Nova Deli.

Em abril, diante de uma iniciativa de formação de consórcios de governadores para discutir como se daria a reabertura do comércio nos estados, Donald Trump reivindicou “total autoridade” ao Salão Oval para tratar das questões concernentes à crise sanitária. Ao mesmo tempo que recuou de sua reivindicação, Trump pediu aos seus apoiadores (a quem chama de “very good people”, ou, pessoas do bem) que resistissem às medidas de isolamento social e “se libertassem” da autoridade dos governadores do Partido Democrata para que a economia do país voltasse aos trilhos. Trump também aproveitou o contexto pandêmico para fechar as fronteiras dos Estados Unidos e suspender a entrada de imigrantes por sessenta dias. A implícita identidade entre a saúde dos corpos dos norte-americanos e a saúde do corpo político dos Estados Unidos é clara.

Viktor Orbán, presidente da Hungria, que já havia reduzido a autonomia dos tribunais, suspendeu indefinidamente as atribuições do poder legislativo húngaro, eliminando, neste processo, o princípio central da democracia liberal dos limites institucionais que impõem freios à autoridade do Executivo. Orbán passou a governar por decretos. Ao longo dos anos, Orbán tem feito ataques constantes a George Soros, que ele considera um símbolo da perniciosa influência “globalista”, isto é, dos judeus, na política húngara.

Na Índia, o movimento nacionalista hindu (Hitdutva), de índole quase-fascista, RSS, uma das bases de apoio do primeiro-ministro Narendra Modi, elegeu, numa ação tipicamente fascista, seus “inimigos” islâmicos como os execráveis portadores do vírus da covid-19. As hashtags #CoronaJihad e #BioJihad viralizaram no Twitter. Como observaram Jason Stanley e Frederico Finchelstein,2 tal atitude ressoa a utilização do tifo, uma doença causada por bactérias, pelos nazistas como um pretexto para excluir judeus, isolá-los em guetos e, em última análise, assassiná-los. Os muçulmanos são escolhidos como alvo no contexto da anexação inconstitucional da Caxemira e das mudanças no Citizenship Act (a lei que define a quem pode ser atribuída a cidadania indiana), que explícita e assumidamente discriminam uma comunidade minoritária e marginalizada do país.

Seja como for, é necessário parcimônia no emprego da palavra “fascismo”. Na medida em que é usada indiscriminadamente, principalmente pela esquerda, para rebaixar adversários políticos, corre-se o risco de que seu significado seja perdido. Isso posto, vem a pergunta: em que sentido podemos dizer que aquilo que estamos testemunhando em todo mundo é uma re-emergência do fascismo?

Dois anos atrás, escrevendo nas páginas da New Left Review, Dylan Riley argumentou de forma incisiva que se nós compararmos o fascismo do século XX aos autoritários contemporâneos, tal qual Trump, a partir de quatro eixos — as dinâmicas geopolíticas, a relação entre classe e nação, os acontecimentos dentro da sociedade civil e os partidos políticos —, não há uma evidência contundente de que aquilo com o que nos confrontamos hoje seja algo que se aproxime do fascismo.3 E, de fato, segundo os influentes comentários de Slavoj Zizek sobre a obra de Walter Benjamin, o autoritarismo que hoje nos cerca não surge em reposta ao que poderia ser chamado de “revolução fracassada”. Evidentemente ocorreram a Primavera Árabe e os movimentos Occupy, mas esses não chegaram nem perto de desafiar o domínio do capital.

No entanto, como Samir Amin inteligentemente pontuou, o fascismo não precisa estar inteiramente conformado aos moldes do século XX para existir. Sua emergência compreende dois elementos essenciais: as respostas às crises do capitalismo e uma rejeição categórica da “democracia”, através de um apelo às identidades coletivas (muitas vezes condensado na figura de um líder “vigoroso”) calcadas em uma noção de “povo”.4 Ainda assim, é preciso aperfeiçoar a tese de Amin em dois pontos.

O primeiro é a necessidade de reformulação da própria noção de crise. No neoliberalismo, não existem crises discretas e cíclicas — mas uma única crise contínua e duradoura. Não se trata de um acontecimento, mas de uma síndrome ou de uma condição. Usando uma metáfora médica: a crise não é aguda, mas crônica. Isso significa que o fascismo é sempre algo como uma assombração em um neoliberalismo que coexiste com uma fissura profunda e persistente da ordem social. Já aclamado como um antídoto para o autoritarismo,5 o neoliberalismo, na verdade, aprofunda e exacerba as tendências autoritárias que coexistem com o capitalismo — no fim das contas, esse sistema, que é agora confrontado com desigualdades esmagadoras,6 utilizará todos os meios necessários para se preservar. Como Theodor W. Adorno pontuou, a verdadeira ameaça do fascismo vem de dentro, e não de fora, do capitalismo ou da democracia liberal.

Não há dúvida de que a pandemia revela a crise endêmica do neoliberalismo. A palavra crise, é importante lembrar, deriva do grego krisis (decisão) e krinein (decidir). No inglês medieval, a palavra era empregada para se referir ao ponto de inflexão de uma doença — momento decisivo a partir do qual a condição do paciente melhora ou se deteriora. Nesse sentido, se a crise da nossa ordem social neoliberal — evidenciada e exacerbada pela pandemia do novo coronavírus — for crônica e não aguda, estamos diante de um ponto de virada a partir do qual a figura do soberano, a entidade que formula e encarna a exceção (como para Carl Schmitt), vem lançar uma sombra longa e funesta sobre o nosso tempo.

Isso é exemplificado, conforme apontamos, pela forma que, nos EUA, Hungria e Índia, a emergência sanitária é mobilizada como um Reichstag Fire na consolidação do poder soberano. Como tem sido amplamente observado, a pandemia traz à tona a profunda precariedade constitutiva da ordem neoliberal, da qual só os super-ricos aparentam poder escapar.

A segunda sofisticação que proponho à tese de Amin diz respeito à relação do fascismo com a democracia. O fascismo não se constitui como uma rejeição categórica da democracia per se, mas como uma rejeição da sua forma liberal. Como Vladimir Putin recentemente ponderou: talvez a democracia liberal esteja obsoleta. No entanto, assim como os líderes dos movimentos fascistas do século XX, Putin faz apelo a uma ideia particular de democracia (a “vontade geral" de Rousseau em oposição àquilo que ele chama de “a vontade de todos”), e o faz reivindicando uma encarnação da vontade do povo (demos ou Volk) — o que torna essas reivindicações especialmente perigosas. Há, em outros termos, uma considerável sobreposição entre o fascismo do século XX, de um lado, e as formas contemporâneas de “populismo”7 de direita ou autoritário, de outro. Como Enzo Traverso indicou recentemente, formas que são corretamente descritas como "neofascistas" ou “pós-fascistas”.

Uma diferença importante entre as formas de fascismo do século XX e as contemporâneas está em sua relação com os processos eleitorais. Enquanto na Alemanha, sob o pretexto do Reichstag Fire, foram abolidos o direito de reunião, a liberdade de imprensa etc. e, finalmente — através da suspensão da Constituição de Weimar, as eleições —, os “populistas de direita” estão empenhados, pelo menos nominalmente e por enquanto, em concorrer nas eleições ainda que dispensando muitos dos seus corolários — tais como o império da lei [rule of law], o respeito pelos direitos das minorias, a divisão de poderes, a supressão de eleitores e assim por diante. Com efeito, eles estão mobilizando divisões de forma tão efetiva que vencem eleições e, por enquanto, mantêm o apoio popular, particularmente na Hungria e na Índia.

No entanto, no contexto da pandemia, alguns de nós nos perguntamos se esse compromisso com as eleições poderia mudar de repente. Por exemplo, questionamos se, em razão da diminuição de suas perspectivas eleitorais devido à recessão econômica, Trump poderia adiar, ou mesmo suspender indefinidamente, as eleições de novembro. Tal hipótese pode ter soado forçada demais ou mesmo alarmista. Mas se lembrarmos que, no período que antecedeu as eleições de meio-mandato em 2018, Trump usou o Twitter para incitar a violência em caso de derrota de seu partido e, antes disso, durante a campanha presidencial de 2016, fez um apelo para que os cidadãos a favor do porte de armas detivessem sua adversária,8 a democrata Hilary Clinton, a hipótese não soaria tão absurda. Soma-se a esses acontecimentos o episódio que ocorreu no Michigan em meados de abril deste ano, em que manifestantes que Trump chamou de “pessoas do bem” não demonstraram nenhum pesar ao entrarem armados no Legislativo para intimidar os congressistas contra as medidas para controle da pandemia. É necessário lembrar também que Trump, antes das eleições, havia repetidamente se recusado a assegurar uma transferência pacífica de poder. No primeiro debate presidencial com Joe Biden, Trump recusou-se a denunciar os supremacistas brancos no contexto dos protestos antirracistas que se espalharam por todo o país e endereçou uma mensagem à violenta organização de extrema direita, os Proud Boys, dizendo que eles deveriam “dar um passo atrás e ficar de prontidão”, invocando sinistras imagens dos camisas-marrons nazistas.

No cenário das eleições, as quais o New York Times chamou de as mais justas da história dos EUA, enquanto Trump flertava com a derrota, muitos integrantes do Partido Republicano e setores da mídia conservadora passaram a ecoar a alegação de que houve fraude na contagem dos votos, que teve como um de seus resultados a tentativa de reunir um milhão de apoiadores do presidente numa marcha (“Marcha do Milhão MAGA”) realizada em Washington — segundo as autoridades locais havia cerca de dez mil manifestantes. Mesmo com o resultado, muitos apoiadores de Trump se recusam a reconhecer Joe Biden como o presidente eleito dos Estados Unidos. Por mais improvável que seja, poderia um golpe permanecer na agenda do Partido Republicano e de seus aliados de extrema direita? O enfraquecimento das instituições da democracia liberal, pode-se argumentar, é exatamente o que encontramos na Hungria, Índia e Brasil.

Diferença vital entre o fascismo do século XX e o do século presente está na forma como cada um deles concebe o tempo. Embora o sonho de Hitler de um “Reich dos 1000 anos” fosse orientado territorialmente, na medida em que se baseava em garantir a expansão do Lebensraum (espaço vital) a Leste para o Volk alemão, o tempo — e mais precisamente a noção de futuro — ocupava um lugar de destaque no pensamento nazista. À sua maneira perversa, “utópica” e “revolucionária”, o nazismo era orientado para conceber um futuro brilhante para a “raça ariana”. Em o Ser e o tempo, Martin Heidegger, membro de carteirinha do partido nazista, elevou a modalidade temporal do futuro tanto sobre o passado como sobre o presente. O futuro seria assegurado através da recuperação das experiências esquecidas na origem do entendimento que os gregos tinham do Ser.

O fascismo contemporâneo, em contraste, encontra refúgio no passado. Como tal, reivindica, por exemplo, um país supostamente “grande” [America great] antes da Lei dos Direitos Civis [Civil Rigths Act] (se não antes da Guerra de Secessão); uma autêntica pátria dos Magiares na Hungria; e uma Índia purificada para os Hindus (Hindustão). Em outros termos, numa era de obsolescência ecologicamente planejada, no fascismo do século XXI o apelo ao futuro é praticamente inexistente. Essa celebração ao passado pode ser percebida por aquilo que podemos chamar de endocolonialismo — uma forma de colonialismo europeu aplicado à própria Europa, de acordo com o que assinalou Aimé Césaire em Discurso sobre o colonialismo. Hoje, como vimos no caso grego, as armas coloniais são os bancos alemães e não os tanques.

Tal como escrevi em outro lugar,9 vemos isto também quando o Estado canadense, com a complacência do exemplar “multiculturalismo liberal”, usa a lógica de exceção decorrente da pandemia para permitir a continuação de grandes projetos de infraestrutura energética em territórios indígenas. Num movimento que remete à aurora da colonização, em que as doenças trazidas pelos colonos dizimavam os nativos, a consecução desses projetos coloca essas já vulneráveis comunidades em sério risco de uma catástrofe sanitária. A mesma lógica pode ser percebida na agenda extrativista do governo Modi que provoca conflitos étnicos na região de Chhattisgarh, para não mencionar o programa de desenvolvimento genocida e autoritário levado a cabo por Jair Bolsonaro na bacia amazônica.

Os espectros do fascismo surgem, dessa forma, como resposta à crise financeira e ecológica do capitalismo. O fascismo do século XX, em parte, ofereceu uma solução para a recessão econômica através de uma aceleração da extração do mais-valor absoluto e relativo do trabalho vivo, esmagando a esquerda revolucionária, sindicatos independentes e outras instituições da classe trabalhadora. Essa foi, aliás, a ideia original de Mussolini (e Giovanni Gentile): o fascismo baseado na imagem do que se chamava em latim fasces — um feixe de varas amarradas em torno de um machado que simbolizava a autoridade penal do Estado Romano exercida pelos magistrados. O fascismo implicava, portanto, a amarração das varas do Estado, do capital e do trabalho. É talvez revelador que tanto os EUA como as Repúblicas francesas tenham adotado e mantido este simbolismo protofascista romano ao longo dos séculos XVIII e XIX.

Em contraste com a sua forma anti-humana do século XX, o cerne do fascismo contemporâneo “pós-humano” está no aprofundamento do extrativismo num contexto de desqualificação do trabalho, automação e disseminação generalizada da robótica, machine learning e inteligência artificial — i.e., a obsolescência da própria humanidade. Tal lógica implica o que, na Crítica da razão negra, Achille Mbembe chama de “devir-negro do mundo”, ou a criação de “sujeitos abandonados”:

Já não existem trabalhadores propriamente ditos. Só existem nômades do trabalho. Se, ontem, o drama do sujeito era ser explorado pelo capital, a tragédia da multidão hoje é já não poder ser explorada de modo nenhum, é ser relegada a uma “humanidade supérflua”, entregue ao abandono, sem qualquer utilidade para o funcionamento do capital.10

Essa condição supérflua torna-se mais nítida à medida que os governos por ação ou omissão colocam tanto o excedente de mão-de-obra quanto os trabalhadores, particularmente as minorias, em grave risco de contrair ou mesmo morrer do vírus. Evidentemente, poder-se-ia argumentar que o trabalho humano nunca esteve tanto em evidência e nunca pareceu tão “essencial” quanto neste momento histórico. Ainda assim, os Estados se mostram bastante indiferentes quanto a esses trabalhadores essenciais, colocando-os em risco extremo e condenando-os a morrer em massa por falta de equipamento de proteção individual, por exemplo. A condutora do metrô de Nova Iorque e escritora, Sujatha Gidla, assim descreve seus colegas de trabalho: “Não somos essenciais, somos sacrificiais”.11

Em Endgame, ao descrever a atmosfera da catástrofe de uma possível guerra nuclear, Samuel Beckett apresenta a destruição da natureza como tomando uma configuração específica na qual o tempo dialético, em si mesmo, parece ter se estagnado. Ele retrata, com um misto de frieza e humor irreverente a obsolescência dos seres humanos, reduzidos à existência pura, e subordinados aos conluios inescrutáveis de forças geopolíticas para além de sua compreensão e controle. O suplemento necessário de Endgame, segundo Stanley Cavell, é a obra-prima de Kubric sobre a Guerra Fria, Dr. Strangelove.

Beckett descreve os pais de seu anti-herói, Hamm, literalmente como dejetos da sociedade que ficam enclausurados em latões de lixo. Descrição essa que talvez encontre ressonância no presente, de forma muito dolorosa, na situação perigosa das casas de repouso para idosos — verdadeiros depósitos para seres humanos que se encontram entre a vida a morte à espera de um fim ao jogo aflitivo da espera. As personagens sentem saudades (“Ah, os bons velhos tempos” suspira Nell) dos dias em que seus latões eram preenchidos com areia, em vez de palha, o que é um significante para os tempos felizes passados na praia, em contraponto à natureza presente que possui uma forma “cadavérica”. A catástrofe do presente e a sua relação com o passado recente se apresenta como uma continuação do mesmo desastre que Walter Benjamin escreve no seu texto final “Teses sobre o conceito de história” antes do seu suicídio em Portbou, em uma tentativa desesperada de escapar dos nazistas. Hoje, os governos parecem dispostos a sacrificar os idosos, os enfermos, os pobres, os indigentes e os negros em face aos mandamentos do mercado. O vice-governador do Texas, Dan Patrick, do Partido Republicano, sugeriu recentemente que os avós deveriam se sacrificar para salvar a economia para seus netos. Não há nada de novo nessa lógica e ela pode ser percebida também na relação entre os cortes realizados pelas empresas e o aumento imediato, e dramático, no preço de suas ações. O mercado vive da morte.

Se tivermos no horizonte a clássica definição do fascismo como aquele movimento de massas reacionário, constituído, no contexto de rivalidades imperialistas e crises de superprodução, por uma aliança entre o capital industrial e a pequena burguesia contra a classe trabalhadora e as suas organizações políticas, o que enfrentamos hoje está longe de poder ser descrito como “fascismo”. Após a derrota do trabalho organizado, há pouquíssima resistência do trabalho vivo contra a mecânica extração de mais-valor pelo trabalho morto. Tal derrota abre caminho à intensificação da colonização e da endocolonização, ao militarismo, ao racismo e, em última análise, à guerra.

No entanto, o fascismo contemporâneo emerge do contexto de aceleração dos fluxos migratórios globais resultantes da violência econômica, social e política (novas formas de acumulação primitiva) que acompanha a reorganização global das relações de produção. Constitui-se como uma reposta à crescente insegurança ontológica — inestimavelmente reforçada pela pandemia — dos cidadãos que sofrem com tal rearranjo e cujo medo é progressiva e efetivamente mobilizado contra uma gama de experiências em que aqueles que vêm de fora são transformados em inimigos. Essa mobilização baseia-se numa ideia pungente de que, sob a forma tardia do neoliberalismo, a linha que divide cidadão e migrante, parvenu e pária, e em outros termos, a humanidade “genuína” e “supérflua” está cada vez menos nítida. O capitalismo sempre encarnou uma lógica sacrificial e é ela que está hoje no cerne de seu potencial autoritário. Tal lógica é aprofundada na medida que os trabalhadores, particularmente os trabalhadores brancos, de mãos dadas com a classe média baixa, passam a identificar-se com o poder do agressor em vez de o contestarem.

Por mais terrível que seja a situação, há sinais de esperança na crescente militância dos trabalhadores, como foi recentemente demonstrado por funcionários que organizaram greves na Amazon, Instacart, Shipt e Whole Foods no dia 1º de maio, protestando contra a forma com que seus empregadores vêm conduzindo suas empresas durante a pandemia. Mais recentemente, vimos o movimento Black Lives Matter galvanizar a opinião pública mundial contra o racismo estrutural nos Estados Unidos, cujas raízes remontam ao comércio transatlântico de escravos. A emergência sanitária global, além disso, demonstrou a necessidade de as sociedades não estarem integralmente subordinadas à prosperidade e ao bem-estar dos seus membros mais abastados, mas sim dos mais necessitados. De maneira decisiva, isso tem demonstrado que o acesso à saúde não pode ser exclusivo àqueles que podem pagar, mas deve ser entendido, como Bernie Sanders repetiu incansavelmente durante as prévias presidenciais do Partido Democrata, como um direito humano fundamental. Esse movimento jogou luz nas ilusões niilistas do “individualismo possessivo” em que se baseia toda a ordem neoliberal e reavivou, de maneira séria e urgente, a discussão da controversa ideia de uma Renda Básica Universal. Sem dúvida, a pandemia constituiu-se, como tenho argumentado, em uma abertura para uma maior consolidação autoritária do poder, mas, ao mesmo tempo, abriu espaço para imaginar um tipo alternativo de sociedade. Que caminho vamos tomar será uma questão de organização, ou seja, de política.