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Entre Celso e Florestan

Em setembro de 1986, Florestan Fernandes esteve no curso de ciências sociais da Faculdade São Luís, no cruzamento da avenida Paulista com a rua Haddock Lobo, para realizar uma palestra a respeito de seu livro Da guerrilha ao socialismo: a Revolução Cubana. Na plateia, um jovem estudante do curso de Economia conseguiu, após a exposição, trocar algumas rápidas palavras com o mestre e pedir um autógrafo. Esse mesmo estudante fazia parte da Convergência Socialista que, à época, começava a se transformar em uma corrente interna do PT. Na faculdade, preferia trocar as aulas de programação e estatística por leituras de clássicos do pensamento econômico heterodoxo, como Keynes, Marx e Celso Furtado. Alguns anos depois, atribulado por questões familiares, terminou com bastante dificuldade o curso universitário e trabalhou durante pouco tempo na área, antes de, junto com seu pai, a irmã e alguns amigos, formar um grupo de música brasileira. Politicamente, moderou-se mais e mais até se encontrar como um sujeito de esquerda, bastante alinhado ao PT, com críticas apenas pontuais ao partido. Periodicamente condena os ex-trotskistas que se tornaram liberais — “mudar de posição é uma coisa; mudar de lado, é outra”. Para ele, é incoerente mudar de bandeira — isso mostraria apenas que a aderência inicial não se fez em torno de princípios, mas de veleidades políticas da moda.

Logo que entrei na faculdade, na verdade, acho que até um pouco antes disso, meu pai não apenas me apresentou como teimosamente insistiu que eu lesse três livros que, segundo ele, foram fundamentais para seu percurso. Tratava-se de Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado; Da guerrilha ao socialismo: a Revolução Cubana, de Florestan Fernandes; e De Getúlio a Castelo, de Thomas Skidmore. Confesso que o primeiro li diversas vezes, passando sempre por apuros na parte final, que ganha um tom técnico acentuado em comparação com o restante do livro; o segundo, apenas uma vez, num momento em que já tinha dúvidas em relação aos legados cubanos; e do terceiro estudei alguns capítulos. Ou seja, como filho exemplar, não cumpri a missão dada — ou melhor, cumpri, mas a meu modo. Em todo caso, se Skidmore não me pareceu um personagem particularmente interessante — mais tarde, descobri que também era um autor clássico —, Celso e Florestan causaram impressão duradoura. Num primeiro momento, me cativou o estilo de Celso, o poder de sua explicação concisa e a capacidade de desenhar uma grande narrativa sem dispensar o aparato técnico da Economia, mas desconhecia sua biografia, pensando se tratar de um professor universitário. Com Florestan foi o contrário: seu estilo pesado e árido me pareceu quase hermético para os não iniciados na sociologia, mas, ao mesmo tempo, sua biografia, a de um intelectual público militante e socialista que teve origem muito pobre, me fascinou.

Quando soube que este ano marcava o centenário de nascimento de ambos, toda essa história me voltou e senti quase de imediato que deveria escrever algo, pois o assunto parecia “de família”. Entretanto, hesitei. Efemérides parecem convidar à escrita de textos celebratórios e acríticos. Na data de nascimento de grandes pensadores, é realmente difícil sair dos truísmos adulatórios. Acontece que essa está longe de ser a melhor forma de honrar a memória daqueles que se esforçaram até o fim para apresentar uma análise rigorosa da realidade. No lugar dessa celebração anticelebratória, em que os homenageados parecem se transformar em autores assépticos, ficando empalhados no extenso corredor de personalidades a serem lembradas, talvez fosse mais significativo um esforço, destituído do brilhantismo e da argúcia dos homenageados, mas nem por isso menos válido, de tentar levar adiante suas reflexões, empregando de forma criativa o instrumental teórico que nos foi legado.

Fosse mero exercício virtuosístico de construir pontes entre dois pensamentos pelo acaso de terem os autores nascidos no mesmo ano, esse texto seria vão. Mas não é isso. Relacionar Celso Furtado e Florestan Fernandes pode nos fazer avançar em um velho e atual debate de nosso pensamento social: a relação entre desenvolvimento e democracia. É pelo fato de terem os dois refletido de formas distintas sobre essa relação que é possível — e necessário — pensar Celso Furtado e Florestan Fernandes, um com o outro e um contra o outro. Bem entendido, esse exercício pressupõe, de partida, que se faça uma reconstrução rigorosa do pensamento dos autores, sem o que qualquer diálogo com a tradição fica bloqueado.

Para justificar minha empreitada e saber se ela tinha algum lastro teórico, procurei possíveis relações entre ambos — o que um disse sobre a obra do outro? A esse respeito, as menções que encontrei, para além de citações bibliográficas, foram de documentos privados.

Evidenciando o equívoco de analisar a produção de Furtado como mera ficção conciliatória, em que ficariam apagadas as distinções de classe, Florestan assinalava, com palavras afetuosas, em carta de agosto de 1966 a Barbara Freitag, a importância das contribuições do economista:

Tenho grande admiração por Celso Furtado e acho que ele merece um tratamento carinhoso. Foi vítima de enorme incompreensão e de uma injustiça clamorosa. Ao contrário de Gilberto Freyre, cujo valor seria ocioso ressaltar, ele tem lidado, como eu, com aspectos delicados da modernização da sociedade brasileira. Por isso, caiu vitimado pelo alcance de suas contribuições — países subdesenvolvidos não possuem um grau de secularização de atitudes suficiente para comportarem obras de investigação objetiva e que contrariam avaliações tradicionalistas, na esfera dos problemas sociais, econômicos e políticos.1

Por sua vez, na vasta obra de Celso Furtado, a referência a Florestan aparece de outra forma: uma anotação em seu diário. Sem partilhar das crenças comunistas, Furtado fez questão de observar a inglória, mas fundamental luta de Florestan na Assembleia Constituinte. Em entrada do dia 04.06.1987, ele registra (anotação, aliás, que poderia descrever, em partes, o próprio autor):

Presente o Florestan Fernandes — meio convalescente, sem aquela energia que o caracteriza. O trabalho constituinte não parece entusiasmá-lo. F. H. Cardoso, também presente, parece igualmente pessimista com respeito ao trabalho constituinte. Os dois vivem o mesmo drama do intelectual que veste a camisa do político entre nós: necessidade de radicalizar verbalmente e necessidade de acomodação à prática que fazem com constrangimento. Há um certo irrealismo no intelectual-político, que os faz pouco convincentes. Ainda assim, são o que há de melhor em nossa arena política.2

Por mais que o julgamento de Furtado possa parecer severo, ele também revela uma admiração senão pela obra, ao menos pela atuação de Florestan. De seu lado, Florestan também era crítico do ideal de sociedade adotado por Celso Furtado. Entretanto, apesar da frustração de não encontrar um diálogo explícito entre ambos, ficou evidente, que há uma comunicação subterrânea. Evidenciar esse diálogo conflituoso, que não se apresenta na superfície, mas está posto — conscientemente ou não — nas entrelinhas de suas obras, é avançar para novas formas de pensar o binômio desenvolvimento-democracia.

Não era outra a preocupação de Gildo Marçal Brandão quando, em 2003, abria um seminário organizado na USP com um ensaio acerca da retomada da agenda de pesquisa focada na relação entre Democracia e Desenvolvimento.3 Mais tarde, essa apresentação seria reformulada e transformada no capítulo cinco do livro Linhagens do pensamento político brasileiro.4 Dentre as muitas qualidades dessa obra, está a de fazer uma análise imanente, com respeito crítico e linguagem clara, da tradição de nosso pensamento social. Não que a posição política do autor esteja de fora do texto. Não está. Mas essa opção ideológica não afeta a análise, que prima por reconhecer os desafios postos pelas próprias teorias. Daí sucedem ensaios que não pretendem criticar seus objetos de estudo etiquetando-os com adjetivos depreciativos, mesmo que eles estejam distantes do espectro ideológico do autor, mas mostrando como suas potencialidades, resultantes de erros ou acertos, nos fazem reatualizar nossa própria agenda de pesquisas. É no capítulo acima mencionado que, partindo da crítica dialética ao ideal desenvolvimentista de Furtado e ao revolucionarismo marxista de Florestan, Gildo Marçal Brandão conclui:

[…] são tantos os antagonismos que se acumulam na vida social e política brasileira, é tão nítida a percepção do esgotamento das oportunidades históricas, que não temos como escapar do desafio de investigar — novamente, mas em outro patamar — as complexas, por vezes contraditórias relações entre democratização e desenvolvimento capitalista; e, a partir desse estudo, formular novos projetos para a nação.5

A tarefa em questão parece — mais uma vez… — urgente e talvez o trabalho preliminar, ainda que permanente, dessa agenda seja o de voltar aos clássicos que procuraram mostrar a (impossível?) possibilidade de conciliar desenvolvimento e democracia. Se a reatualização desse programa se fizer à esquerda, os nomes de Florestan e Celso nos parecem incontornáveis. Afinal, qualquer reflexão será inócua, apenas reinvenção da roda, se partir do presente imediato desconsiderando a tradição na qual se insere.


Na década de 1950, tanto Celso quanto Florestan estavam imersos na atmosfera esperançosa em que as palavras de ordem refletiam um suposto futuro radiante: desenvolvimento, integração, engajamento, planejamento, democracia.6 Toda essa terminologia remete a um dos intelectuais mais influentes daquele momento: Karl Mannheim. Cada um a seu modo, tanto Celso7 quanto Florestan8 se apoiaram inicialmente nesse modelo mannheimiano de democracia social planejada, ideal condizente com uma política econômica desenvolvimentista e com a concepção de um Estado-Providência. Sociedade pacificada por meio da cooperação solidária e da coordenação técnica, em que se afastam tanto os perigos totalitários, de direita e esquerda, quanto o carcomido liberalismo de outrora. Realizado por meio de métodos racionais, o planejamento seria o caminho preferencial das sociedades modernas, harmonizando a relação entre as classes mediante a regulação estatal e concretizando o desenvolvimento nacional de forma integrada. Havia a crença de que a racionalidade poderia triunfar, levando à mudança social consciente. Tratava-se de uma engenharia socioinstitucional democrática ancorada no paradigma mannheimiano, por sua vez bastante tributário das contribuições de Weber.

Como encarnação desse projeto, a intelligentsia socialmente desvinculada. Ou seja, o pensador desprendido de seu contexto social originário e capaz de refletir em termos universais, afastando-se de ideologias sectárias, interesses de classe e desejos particulares. Esse intelectual porta-voz da razão estaria apto a decifrar a realidade social e, de sua análise, apresentar um prognóstico. Ciência e engajamento, conhecimento e transformação: o saber objetivo da realidade e a transformação dessa mesma realidade caminhariam pari passu. Mas essa aliança entre postura teórica e atividade prática não era nada óbvia. Na herança positivista presente tanto em Celso9 quanto em Florestan,10 não havia sobreposição entre ambas: ainda que a ciência pudesse servir à política, ela era essencialmente técnica. A escolha por um ideal não decorria naturalmente do trabalho científico, sendo, antes, uma tomada de posição descontínua em relação ao conhecimento. A politização da ciência seria prejudicial à política e à ciência; o intelectual então se via cindido entre o cientista e o cidadão. Aí mais uma vez a influência de Mannheim se fez sentir, pois, na recepção brasileira de sua obra, suas ideias “serviram para justificar uma correspondência entre fazer ciência e fazer história, intervir na realidade e transplantar um estilo de vida moderno para o Brasil”.11 Foi através do sociólogo húngaro que Celso e Florestan se viram autorizados a fazer ciência e política — mas sem que uma invadisse o âmbito da outra.

Entretanto, mesmo inseridos nesse mesmo universo teórico-político, havia diferenças entre ambos.

Interior à tradição do radicalismo democrático uspiano, nos anos 1950, Florestan entendia os problemas de nossa democracia como resultantes de um desequilíbrio. Havia um processo de modernização que se chocava com a permanência de arcaísmos provenientes de nosso passado ainda não resolvido. Era o descompasso entre nossa nova realidade econômica e técnica e nosso atraso social, político e cultural que travava a continuidade de nosso desenvolvimento.12 Nos ensaios do começo dos anos 1960, essa concepção não se altera substancialmente, mas a ela somam-se outras variáveis, como a sociopatia da classe burguesa no Brasil.13 Ainda assim, o problema não se encontrava na estrutura da sociedade brasileira, mas em déficits sociopolíticos históricos que poderiam ser resolvidos mediante a atuação esclarecida dos intelectuais a favor do povo. No período pré-Golpe Militar, tratava-se de democratizar a democracia, de permitir que o regime se tornasse aberto às aspirações populares — e o desenvolvimento econômico seria apenas uma etapa no interior desse processo de democratização. O problema do subdesenvolvimento é político: deve-se ampliar a democracia para permitir que os avanços econômicos se consolidem. A questão nacional aparecia para Florestan como atravessado por interesses de classe, sem que houvesse uma conciliação fácil entre os grupos sociais em luta.

Já a percepção de Furtado era moldada por um ideal nacional-desenvolvimentista próximo, mas não idêntico, à concepção isebiana. Reconhecendo a realidade do antagonismo de classe na sociedade contemporânea, Celso pensava que o planejamento seria uma forma de suspender esse choque em prol da evolução social. Aqui a ideia da democracia se apresenta como a capacidade de manter instituições políticas abertas, aprofundar o combate ao atraso econômico e tecnológico e providenciar uma nação soberana frente aos países centrais. O empresariado nacional seria beneficiário do processo, mesmo que não seu propulsor, mas, antes, apenas uma variável subordinada aos interesses nacionais organizados pelo Estado. O elemento classista ou popular está no interior do esquema, alcançando, em conjunto com os demais grupos sociais, novos patamares socioeconômicos por meio do desenvolvimento nacional autossustentado, que abriria portas para a consolidação de um mercado interno pujante. O trabalho fundamental passa pela educação racional e cidadã do povo, pelo crescimento da indústria e da autonomia econômica nacional e pela intervenção consciente dos técnicos e intelectuais.14 Da efetivação desse programa, resultaria o apaziguamento do conflito entre as classes. Em outras palavras, o problema do subdesenvolvimento se resolve partindo da economia e chegando à política: combater a desigualdade econômica que limita nosso mercado interno e que impede nossa soberania econômica é o caminho para uma democracia substantiva.

Até o Golpe de 1964, mesmo que por caminhos diferentes, Celso e Florestan assumem o modelo de uma sociedade racional e planejada, modelo a ser fiado por intelectuais técnicos e engajados que lideram o processo de modernização. Nesse momento, ambos rejeitavam a adocicada aceitação de nosso atraso, oferecendo uma visão crítica sobre o subdesenvolvimento nacional. A superação desse impasse só aconteceria por meio do planejamento.


Uma série de fatores históricos concorrem para o fim da cultura desenvolvimentista no Brasil. Fim que não assinala o encerramento de políticas econômicas modernizantes, ainda que levadas a cabo por um regime autoritário. Mas o período que vai do Golpe de 1964 até o início da década seguinte estabelece uma ruptura, em que a gramática política dos anos imediatamente anteriores parece ter se tornado, de repente, caduca. As palavras de ordem, que eram também palavras teóricas, são outras. A economia textual das obras do período não deixa dúvida: dependência, autoritarismo, militarismo, modernização, conservadorismo. A mudança, no entanto, foi menos súbita do que se imagina. Desde o final da década de 1950, com a Revolução Cubana, a América Latina vinha passando por transformações radicais, e o contexto brasileiro, lenta mas progressivamente, acompanhou essas mudanças. A estagnação do modelo de substituição de importações, a superação da Crise dos Mísseis e a consolidação do governo revolucionário em Cuba, o acirramento dos conflitos de classe em todo continente foram os antecedentes que levaram os projetos de desenvolvimento a se depararem com seu caráter de classe. A agudização desse conflito de classes fez a corda romper para o lado mais fraco. As quarteladas que varreram o continente, o golpe dentro do Golpe que representou o AI-5 e o início do “milagre econômico” fizeram com que o ideal de desenvolver o país através da combinação de institucionalidade democrática, incorporação das massas e crescimento econômico, seja em uma via nacional-reformista, tal como pensavam isebianos e cepalinos, ou em uma via democrático-popular, como queriam os intelectuais paulistas, estava acabado.15 O sonho de conciliar desenvolvimento e democracia chegava ao fim.

A teoria que parecia contemplar esse novo estado de coisas atendia pelo nome de dependência. No lugar do conceito de periferia, que acentuava de forma exacerbada o imperialismo e o bloqueio promovido pelos países centrais, entrava o conceito de capitalismo dependente. Nele, o problema do subdesenvolvimento era explicado mais pela relação entre classes do que pela relação entre nações. As classes dominantes de países periféricos e centrais se articulam, reforçando a dominação. E, no caso de países dependentes, a burguesia era uma classe que tinha sua margem de manobra enquadrada pelas estruturas do capitalismo global, ao qual ela estava associada como grupo subordinado. Para fortalecer seu domínio interno, a burguesia coibia a possibilidade de realizar sua própria revolução, que exigiria uma luta contra a hegemonia do capital estrangeiro pela afirmação da soberania nacional.

Em sua versão radical, a teoria da dependência provinha das concepções intelectuais de André Gunder Frank, baseado, por sua vez, no livro A Economia Política do Desenvolvimento, do marxista americano Paul Baran. Em torno de Frank, na UnB, articulou-se o grupo de Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos. Encadeando as concepções imperialistas clássicas com a tese do desenvolvimento combinado e desigual, de extração trotskista, essa vertente da dependência argumentava que, no interior da ordem capitalista, o subdesenvolvimento seria uma condição perpétua dos países periféricos. Haveria, na expressão clássica, um “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. Ao contrário do que se propagou, a teoria marxista da dependência não pensava em um modelo de estagnação. A ideia de desenvolvimento do subdesenvolvimento já implicava que poderia haver industrialização e mesmo modernização da economia sem que o subdesenvolvimento fosse efetivamente superado — ou seja, com a continuidade da superexploração do trabalho, da concentração de renda e da submissão a interesses estrangeiros. A implicação prática seria crítica a qualquer tipo de política reformista de conciliação de classes, tal como era praticada pelo Partido Comunista ou pelos desenvolvimentistas.16

Mas também se formou, derivada de um dos mais ilustres representantes da Escola Paulista de Sociologia, a teoria moderada da dependência. Durante os anos de 1966–67, em seu exílio no Chile, Fernando Henrique escreveu, em parceria com o sociólogo Enzo Faletto, o livro Dependencia y desarollo en América Latina: ensaio de interpretación sociológica. Nessa obra, publicada em 1969, os autores procuraram demonstrar que não há oposição entre dependência e desenvolvimento. Poderia ocorrer a superação do subdesenvolvimento ainda nos quadros de um país que se insere de forma dependente no circuito capitalista mundial. O desenvolvimento aqui era entendido apenas como modernização econômica e nada mais. Essa teoria light da dependência é menos taxativa do que a versão radical e, assim, abre espaço para a ideia de um desenvolvimento dependente associado: os países periféricos podem superar seu atraso econômico desde que em parceria com os países do capitalismo avançado.

Em qualquer uma das duas versões, a teoria da dependência demonstrou as graves insuficiências de qualquer formulação linear, mesmo das mais sofisticadas. Tanto os marxismos ortodoxos quanto as teorias da modernização pareciam desatualizadas frente a esse novo paradigma, que era mais capaz de explicar o que se passou depois de 1964. Essa deslinearização da teoria social está resumida na seguinte passagem lapidar de Fernando Henrique e Faletto: “metodologicamente não é lícito supor, portanto — isso deve ser acentuado — que nos países ‘em desenvolvimento’ se esteja repetindo a história dos países desenvolvidos”.17

De que forma, esse novo estado de coisas — histórico e teórico — se fez sentir em Florestan e Celso Furtado?

Ambos realizam a operação de dissociar o desenvolvimento como ideologia — o desenvolvimentismo — do desenvolvimento como tal, em seu caráter contraideológico. O primeiro se resume à industrialização e ao crescimento econômico acelerado, ou seja, à modernização capitalista tal como ela transcorreu nos países centrais. Tomado nesse sentido, o desenvolvimento é possível mesmo na periferia, mas sob o custo de aprofundar ainda mais as contradições internas — foi isso que a ditadura militar demonstrou. Por outro lado, haveria um conceito substancial de desenvolvimento, que vai além da expansão econômica e da racionalidade formal. Em Celso Furtado, o desenvolvimento como conceito denso envolve o crescimento da riqueza, mas também o aprofundamento da democracia, o equilíbrio ecológico, a redução das disparidades sociais e o fomento da cultura.18 Para Florestan, esse adensamento conceitual se faz sobretudo através do repúdio de toda herança neocolonial e do combate contra o imperialismo, expressando as pressões populares e o necessário caráter classista e revolucionário do desenvolvimento na periferia.19

A reformulação de Furtado não implica a ruptura com o ideal de Mannheim, mas a de Florestan, sim. Se o desenvolvimento tem caráter classista e anti-imperialista, isso significa que ele não pode se efetivar no interior da democracia burguesa. Daí resulta que a figura do intelectual socialmente desvinculado expira. Não se pode mais sustentar uma ciência insípida e neutra; a opção de classe tem que se fazer presente não apenas como prática, mas a partir da própria percepção teórica da realidade.

Entretanto, esse projeto mannheimiano continuou a ser professado por Florestan até quase o final dos anos 1960. De forma cada vez mais explícita, a tensão entre democracia e desenvolvimento vem à tona, com a escolha de Florestan pelo primeiro elemento como aquele que inclusive funda a possibilidade do segundo: “[…] lutar pela democracia vem a ser muito mais importante que aumentar o excedente econômico e aplicá-lo produtivamente. A própria economia continuará sufocada se não nos revelarmos capazes de alterar o arcabouço social que a aprisiona […]”.20 Nas análises sociológicas presentes em um livro de 1968, Sociedade de classes e subdesenvolvimento, ainda aparecem não apenas as marcas de um engajamento voltado a um ideal planejador e reformista, mas também a noção de que as debilidades do processo social brasileiro são tributárias da ausência de racionalidade. Nesse quadro, subdesenvolvimento e sociedade de classes continuam aparecendo como um par antagônico, em que a ampliação do segundo termo deveria levar ao desaparecimento do primeiro. O capitalismo plenamente desenvolvido exigiria o fim dos focos de atraso e arcaísmo. Entretanto, nesse mesmo livro há uma exceção. O ensaio que dá título à obra, apresentado em colóquio realizado na Alemanha em 1967, assinala o início de uma mudança. As incapacidades burguesas passam a ser diagnosticadas menos como falta de vontade política, alienação ou dilemas sociais e mais como problemas estruturais inerentes à própria organização do sistema.21

O que ainda falta para nos aproximarmos do universo de A revolução burguesa no Brasil? A ruptura da separação entre ciência e militância e a ideia da necessidade de uma revolução comunista assinalam o fim da adesão a uma política mannheimiana e a passagem para um engajamento leninista.

Em Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina, de 1973, Florestan começa uma crítica que não toca apenas no papel do sociólogo como intelectual público engajado. Ele questiona a própria ideia de que, em um capitalismo periférico, seria possível uma sociedade racionalmente planejada sem que houvesse ruptura com a ordem. Ou seja, o próprio planejamento democrático, ideal manheniano, estaria bloqueado em uma situação latino-americana de países subdesenvolvidos e dependentes, a não ser por uma revolução que subvertesse por completo a ordem social. Se o projeto político só pode ser implementado por uma via revolucionária, o papel do intelectual não pode ser o de um clérigo iluminado, que está além, e acima, do povo.

Sobre a ideia de que o sociólogo deveria ser um cientista e a tese segundo a qual o Brasil seguia um processo de revolução burguesa clássica, Florestan diz: “Tratava-se de uma ‘utopia’ e, o pior, de uma utopia que se achava redondamente errada”.22 A desilusão geracional se baseava em uma crença demasiado otimista: um salto de uma sociedade que nem sequer havia superado sua herança colonial para uma outra de Welfare State tropical — com ampliação da cidadania, burocracia racional e crescimento econômico. A ilusão não estava no projeto, mas em pensar que esse projeto poderia ser pacífica e gradualmente implementado, mesmo dependendo de reformas rápidas e profundas que enfrentariam as resistências das classes médias e o imaginário senhorial das classes dominantes.

A pá de cal nessa ingênua ilusão — que redundou em trágica desventura — vem com A Revolução Burguesa no Brasil.23 Florestan mostra como o percurso teratológico do país joga luz sobre pontos jamais imaginados pelos modelos clássicos, baseados na realidade dos países centrais do capitalismo europeu. Desfaz-se o aparente nexo necessário entre transformação capitalista e ordem social competitiva. Nossa Revolução Burguesa dissociou aquilo que, na experiência central, parecia estar necessariamente conectado: liberdades civis, modernização capitalista e revolução nacional. Não há simultaneidade, e, via de regra, há um desencontro completo, entre o processo que concentra o poder na burguesia, a modernização econômica capitalista e o estabelecimento de uma ordem jurídico-política liberal.

Sem se voltar contra as características estruturais do passado pré-capitalista, a burguesia tende a integrar no sistema os elementos arcaicos provenientes do momento colonial. A restrita ordem social competitiva à brasileira não repele, mas, antes, integra os elementos repressivos do passado senhorial-estamental. A combinação de classe e estamento parece não deixar espaço para uma modernização que não seja, simultaneamente, um novo atraso. A burguesia brasileira pode ser pensada como a vanguarda do atraso: triunfante, ela desbrava o terreno em que se combinam inovações arcaizantes. Entretanto, não se deve ver aí uma traição da burguesia ao projeto de desenvolvimento nacional. Não se trata de uma escolha. A estrutura social e a função da classe burguesa dentro dessa estrutura tornam necessário o fato que a revolução burguesa no Brasil não rompa, mas reforce o subdesenvolvimento e a submissão internacional.

O capitalismo dependente enseja uma ordem competitiva restrita, em que a burguesia não pode — não por motivos morais, psicológicos ou políticos, mas estruturais — realizar uma revolução nacional-democrática. Os déficits da consciência burguesa no Brasil não são apenas, mas uma limitação estrutural de nosso capitalismo dependente e associado. Sob o influxo das teorias da dependência, Florestan afirma que nossa acumulação capitalista não gera um processo histórico análogo àquele da história dos países centrais: nossa burguesia não pode ir além de sua condição periférica, o que significa que ela nunca poderá replicar o percurso da burguesia europeia. Como diz Florestan em outro texto do mesmo período: nossa burguesia não é heroica — e nem será.24

Florestan parte para a crítica de qualquer visão dualista do processo social brasileiro. Não há oposição, mas confluência entre fatores pré-capitalistas e capitalistas. A sociologia da modernização, que serviu de base para muitas interpretações do Brasil, era um equívoco. Nesse capitalismo senhorial, as oposições sociológicas clássicas perdem seu sentido ao estarem a tal ponto imbricadas uma à outra que se transformam em algo novo e face ao qual as distinções usuais se mostram analiticamente incapazes. A “dupla articulação” apreendida por Florestan é um nexo inseparável: o externo e o interno, o desenvolvimento e o subdesenvolvimento, o moderno e o arcaico, a dependência e a associação, ordem estamental e ordem competitiva, patrimonialismo e burocracia — todos esses elementos se apresentam tanto histórica quanto estruturalmente necessários um ao outro. As dualidades não são resolvidas por qualquer tipo de dialética histórica, mas, antes, entrelaçadas no sentido de reforçar e renovar as formas de dominação. A linguagem dos dilemas cede espaço a uma linguagem de bloqueios. Não há opções que beneficem uns em detrimento de outros, mas um “circuito fechado” que continuamente repõe — em escala ampliada e mais complexa — as deformidades do antigo regime.

A estrutura social impede a vinculação habitualmente imaginada — e sobretudo desejada — entre desenvolvimento e democracia. Nesse caso, as velhas soluções soam antiquadas. Não há possibilidade, a não ser momentânea e falsa, para conciliação de classes, projeto de desenvolvimento nacional, capitalismo de bem-estar ou arranjos populistas. No campo da ação, não é mais o intelectual engajado ou o burocrata nacionalista que podem alterar essa situação; não se trata das ferramentas corretas, nem de escolhas no interior da ordem. A análise conceitual de Florestan recoloca de forma incisiva o velho dilema: socialismo ou barbárie. Ou seja, revolução ou autocracia (ora velada, ora às claras). Revolução aqui, bem entendido, nos moldes leninistas. Essa seria a única força capaz de quebrar esse quase moto-perpétuo em que se encontra a história brasileira, de sucessivas tentativas reformistas e reiteradas reações da ordem.

Deixando de lado seu traço característico de preocupação com o zelo acadêmico-científico na exposição metódica de suas ideias, Florestan defende — hipostasia — a revolução socialista como a forma de resolver o enigma de um país que se tornou capitalista sem Revolução Burguesa clássica. Acontece que, como na sociabilidade brasileira não há dialética imanente que permita a emergência dessa revolução, ela parece flutuar como uma vontade, um dever-ser que se descola da análise que o próprio Florestan nos oferece. Por um lado, a revolução parece ser a única saída; por outro, ela parece ser não mais do que um desejo ardente, não estando inscrita na própria realidade social. Ao mesmo tempo que demonstra rigorosamente o fechamento do sistema a qualquer forma de radicalização, Florestan parece perscrutar incessantemente pelos indícios que permitiriam fundar a revolução, mas não os encontra, a não ser de forma tão fragmentária e danificada que esse acontecimento se revela antes uma utopia do que uma possibilidade concreta. O projeto revolucionário não pode ser ancorado em setores esclarecidos de classe média e da burguesia nacional, como era o ideal desenvolvimentista. É a classe trabalhadora que Florestan continuamente interpela à procura dos sinais do levante revolucionário. No entanto, parece que à revolução falta uma classe; à democracia, falta um povo.

Com o ideal revolucionário como parâmetro absoluto, não basta dissociar o desenvolvimento como ideologia do desenvolvimento contraideológico, é preciso que se realize a mesma operação com o conceito de democracia. Mesmo que a tensão entre a democracia burguesa e a democracia tout court já estivesse presente nos escritos de Florestan, agora essa tensão se transforma em uma antítese absoluta. É que, base teórica da revolução, a crítica marxista exige a distinção entre a democracia enquanto ideologia, manchada por seu caráter burguês, e a democracia como poder popular. No último sentido, democracia vira sinônimo de socialismo. Para completar o esquema, o desenvolvimento de fato, não a ideologia do desenvolvimento, só pode ocorrer com a destruição da forma burguesa e o triunfo da democracia socialista. Mas não nos parece que, desse jeito, o problema da democracia esteja bem resolvido. Esse comentário pode parecer presunçoso: afinal, a democratização da democracia não era a principal bandeira de Florestan? Sim, e isso ocorreu na primeira fase de sua experiência intelectual. No entanto, no momento em que se assume definitivamente como marxista — e mais marxista ortodoxo —, Florestan estabelece que a democracia verdadeira, socialista, estaria em ruptura total com o modelo da democracia atual.

Por um lado, perde-se a possibilidade de pensar o desenvolvimento a partir da própria democracia existente; por outro, o problema da democracia é escamoteado: afinal o que é uma democracia socialista? Quais são suas instituições? Ela já existiu em algum lugar? Não apenas Florestan não realiza uma crítica extensiva dos regimes comunistas do século XX, a não ser por algumas observações trotskistas acerca de Stálin e do stalinismo, como também diz expressamente que a questão do caminho democrático para o socialismo é uma falsa questão:

Se o movimento socialista tivesse que fazer uma opção democrática, isso teria que ser feito depois e não antes da tomada do poder. Fala-se muito de “socialismo democrático” em termos de uma grandeza histórica, de algo absoluto, metafísico. Bom, se está falando pura e simplesmente de manter a burguesia no poder. Qual é a burguesia que deixa seu Estado, e sua democracia constitucional e representativa, para a conquista do poder pelas classes trabalhadoras? Onde está ela? Nos Estados Unidos? Na França, Itália, Inglaterra ou Alemanha? Não existe tal burguesia! Portanto, necessitamos acabar com essa ideia falsa e mistificadora de que há um caminho democrático absoluto e sem o qual as pessoas enterrariam todo o socialismo. O caminho democrático se delineia depois da tomada do poder […].25

Ora, longe de ser uma falsa questão, ou um problema de segunda ordem, essa nos parece ser uma das maiores interrogações: como conciliar democracia e socialismo? Depois das empreitadas revolucionárias do século XX, não basta dizer que os fins inerentes ao socialismo são democráticos. Primeiro porque essa sobreposição suposta evidente entre socialismo e democracia não é óbvia e, se ela pode existir, está longe de ser uma necessidade, como demonstrou a experiência histórica; segundo porque dificilmente se pode conceber que os meios empregados para atingir determinados fins não acabem por afetar esses próprios fins. A nosso ver, é muito mais ilusório acreditar que meios não democráticos podem desembocar em uma sociedade democrática do que pressupor que a democracia deve estar presente ao longo de todo o processo de mudança social. Dificilmente democracia e socialismo vão se encontrar no ponto de chegada se não estiverem juntos desde o ponto de partida. Nesse sentido de uma simplificação do problema democrático e da revolução como a grande saída, Florestan se aproxima, como veremos, dos teóricos radicais da dependência.

Celso Furtado reage de forma bem diferente a tudo isso.

Poucos meses antes do Golpe, ele chega ao paroxismo em seu livro Dialética do desenvolvimento. Nega a relevância da luta de classes para pensar a sociedade moderna, reafirma a tese de que o Estado se coloca como um administrador neutro acima dos conflitos sociais, sustenta que as sociedades que extinguem o conflito político impedem o dinamismo econômico e assevera que o progresso da liberdade social está relacionado principalmente à estabilidade das instituições.26 Seus escritos da segunda metade dos anos 1960 continuam na mesma toada: acusam a falta de racionalidade do jogo político brasileiro.27 Em nenhum momento esse diagnóstico aparece como impossibilidade estrutural, mas como condição superável. Por mais que analise o fracasso da burguesia brasileira em cumprir seu esperado papel de classe, ele acredita que esse fracasso se deve menos a uma estrutura inamovível do que a opções históricas que poderiam ser contornadas com a ação enérgica de um Estado racionalmente organizado, tecnicamente capaz e metodicamente planejador.

Celso Furtado ainda tenta interpretar esse novo momento pós-golpe militar por meio de moldes teóricos clássicos, como se se tratasse de mero desvio de percurso, um parêntese histórico que logo seria corrigido. Com a tese de “pastorização”28 da economia, Furtado equivocou-se ao pensar que uma sociedade autoritária não pode se modernizar: ele havia atado muito fortemente o laço que liga avanço econômico e democracia política. Dessa vez, entretanto, os estratos autoritários não eram as velhas oligarquias agraristas, mas a elite militar que havia se formado na escola do positivismo antiliberal, tanto em matéria de política quanto de economia. Assim, a ideia segundo a qual as economias subdesenvolvidas seriam necessariamente direcionadas à estagnação se revelou equivocada: o “milagre econômico” contrariou seus esquemas teóricos, que, nesse momento, apresentaram toda a debilidade das teorias da modernização esposadas por Furtado, por mais refinadas que fossem.

A sociologia subjacente às teses desenvolvimentistas de extração cepalino-isebiana era uma teoria da modernização. Não exatamente uma concepção evolucionista, linear e etapista, mas uma que ainda guardava traços desses vícios. Seria possível neutralizar os focos de arcaísmo, que aparecem claramente distintos das formas modernizadoras, e, assim, avançar. No entanto, a partir do início da década de 1970, sob o impacto das formulações dependentistas e também da nova realidade política e econômica, Celso Furtado se viu obrigado a reformular sua teoria. Em uma severa autocrítica, que é tanto mais importante por vir do principal representante da corrente desenvolvimentista, o conceito de desenvolvimento é radicalmente reavaliado. No denso e notável O mito do desenvolvimento econômico, de 1974, Furtado mostra que, se o desenvolvimento foi politicamente útil ao acalentar paixões e esperanças no mundo subdesenvolvido, nem por isso deixou de ter seu lado ilusório e pernicioso.

Essa face perversa e ignorada do desenvolvimento econômico é criticada por Furtado em três planos. Primeiro, uma séria crítica ecológica ao modelo clássico do desenvolvimentismo. De acordo com parâmetros ambientais mínimos, seria impossível que todos os países e suas respectivas populações tivessem acesso a um estilo de vida similar àquele das classes médias dos países de capitalismo avançado. A generalização dos padrões de consumo dos países centrais levaria a civilização ao colapso. Aqui o desenvolvimento capitalista entra em conflito com o próprio planeta e a escassez dos recursos naturais: a voracidade do sistema é cega a qualquer forma de equilíbrio entre a sociedade e a natureza.29 Segundo, a crença que seria possível a todos os países atingir o status de desenvolvidos. Esse caminho não está aberto a todos pelo fato de que o subdesenvolvimento é uma relação de dominação — e, portanto, se sustenta em uma assimetria perpétua na distribuição de poder e das possibilidades econômicas no interior do sistema global. O desenvolvimento dos países centrais pressupõe o subdesenvolvimento dos países periféricos, o que, do ponto de vista geopolítico e econômico, faz parecer falsa a ideia de que o caminho do desenvolvimento está aberto a todos igualmente. Na verdade, Furtado chega mesmo a levantar a ideia de que o subdesenvolvimento é consubstancial ao próprio capitalismo, o que colocaria em dúvida a bandeira reformista, exigindo uma mudança mais brusca, mas ele não avança a hipótese.30 Por fim, a concepção de que o avanço econômico traria em seu bojo uma sociedade mais igualitária e justa também se revelou um equívoco. A modernização é apenas… modernização. Ou seja, é intensificação da dinâmica econômica capitalista, o que, sem a devida força regulatória, apenas aprofunda ainda mais as contradições já presentes no subdesenvolvimento, como a superexploração da mão de obra e uma profunda desigualdade em vários níveis.31

Partindo dessa aproximação com as teorias da dependência, Furtado começa a construir um terceiro caminho, que passa pelo problema da dependência sem assumir nem a versão do desenvolvimento associado, nem a versão radical-marxista. Pode-se denominar essa vertente como “nacional-dependente”, desde que se entenda a expressão como contraditória.32 Para Furtado, pode haver modernização econômica num quadro de dependência, mas não desenvolvimento. A visão de Furtado sobre a relação entre dependência e subdesenvolvimento é mais sutil; ele mesmo afirma que “nem sempre a dependência criou as formações sociais sem as quais é difícil caracterizar um país como subdesenvolvido”.33 Ou seja, a condição de dependência é anterior à de subdesenvolvimento, mas não se vai automaticamente da primeira à segunda. Se isso ocorre, é preciso ter em conta diversos aspectos do processo histórico e evitar cair em uma espécie de fatalismo. Mesmo sem abandonar o caminho do reformismo, Furtado parece fazer uma leitura mais matizada do papel econômico contraditório e dos ambíguos limites da consciência nacional da burguesia brasileira. Abre-se caminho para pensar um processo que não seja de um “imperialismo total”, com uma burguesia inteiramente subordinada aos interesses estrangeiros, e considere que, com todas as restrições impostas pela dependência, há uma margem de manobra possível no interior dos limites nacionais. Se esse projeto for bem conduzido, o país poderia se desenvolver e superar sua condição dependente.

Apesar das sucessivas desilusões com a irracionalidade da vida política e com o fracasso dos projetos reformistas, Celso Furtado continua aferrado, ao que nos parece, senão à teorização de Mannheim, ao menos ao ideal político mannheiniano — mesmo que procure reformular o que se pode entender por desenvolvimento. Enquanto Florestan se afasta em definitivo, Furtado continua no interior dessa tradição, pois para ele o desenvolvimento não tem um caráter exclusivo de classe. Isso não significa que o projeto de desenvolvimento não seja limitador do poder burguês, mas que a luta aberta, e revolucionária, contra a burguesia não constitui a essência desse projeto. Mesmo que o desenvolvimento implique uma contenção do poder da burguesia e o enquadramento dessa classe em um projeto de interesse nacional, não se cogita um enfrentamento violento.

Essa ausência de um caráter de classe bloqueia a dissociação, promovida por Florestan, entre democracia burguesa e democracia (socialista). Em Celso Furtado, a democracia deve ser aprofundada, mas seu aprimoramento não significa uma descontinuidade profunda em relação às características básicas da forma democrática atual — o que o leva a rejeitar o ideal revolucionário. Weberianamente, ele desconfia das revoluções, que podem até promover níveis avançados de crescimento e modernização econômica, mas sufocam a democracia e as liberdades ao darem origem a uma casta burocrática que se enraíza e domina o aparelho estatal.

Mesmo sabendo dos impasses de sua posição teórica e política, Celso Furtado atinge as raias da consciência reformista, sem querer abrir mão dela. Ele mesmo expõe com clareza ímpar os limites de seu ideal:

Minha longa vivência das atribulações dos países que ficaram presos na armadilha do subdesenvolvimento levou-me à convicção de que o esforço requerido para daí escapar é de tal monta que somente a formação de um amplo consenso nacional poderá fazê-lo viável. Ora, um consenso dessa ordem dificilmente pode emergir e perdurar em uma sociedade altamente estratificada e na qual os grupos dominantes possuem poderosos aliados externos. Por outro lado, a imposição de mudanças estruturais por uma minoria, qualquer que seja sua orientação ideológica, tende a engendrar uma burocratização das engrenagens do sistema de poder de difícil reversibilidade. Os casos em que as circunstâncias externas forçaram e tornaram possível a modernização das estruturas sociais são exceções que confirmam a regra.

Somente uma sociedade aberta — democrática e pluralista — é apta para um verdadeiro desenvolvimento social. Mas como desconhecer que nos países do Terceiro Mundo — dadas as condições atuais do entrosamento internacional dos sistemas produtivos e dos circuitos financeiros — as estruturas de privilégios praticamente são irremovíveis?34

Com todas as dúvidas, Furtado prefere reformar o reformismo, mas não abandoná-lo. E isso não se devia a um desconhecimento de outros caminhos que se pretendem emancipatórios. Ele os conhecia, e bem. Mas não acreditava que eles fossem possíveis ou mesmo desejáveis. Ainda que tenha identificado no marxismo um chamado à ação, uma teoria que não separa teoria e prática, Celso Furtado nunca demonstrou particular encantamento com suas fórmulas, doutrinas e promessas. Analisando as relações entre desenvolvimento econômico e política leninista, ele conclui que não se verifica uma conexão necessária entre crescimento material acelerado e supressão das liberdades cívicas, e tampouco que uma revolução nos moldes soviéticos possa ter a mesma eficácia em uma sociedade complexa que atingiu níveis institucionais consolidados e na qual o Estado já não é uma realidade burguesa monolítica.

Furtado não admite, sob nenhuma hipótese, o esmagamento das liberdades civis e políticas em nome da evolução econômica. Um dos esforços políticos duradouros em sua trajetória foi mostrar que o desenvolvimento, e em especial o planejamento que o acompanha, não é um inimigo potencial da liberdade, mas, pelo contrário, é sua forma moderna de realização. Se isso era uma crítica ao liberalismo clássico, era igualmente uma crítica a certo ideal revolucionário, que, por outros caminhos, também dissocia liberdade e desenvolvimento. Essa concepção anti-humanista do progresso material fazia convergir as ditaduras à direita e à esquerda (ainda que a esquerda tivesse um discurso humanista…). Essa defesa de uma sociedade aberta — que não se confunde com o conceito liberal homônimo de Karl Popper — foi fundamental para que ele não se tornasse nem ideólogo da ditadura militar e nem adepto das formas autoritárias à esquerda e nem defensor do status quo liberal.

As credenciais democráticas do pensamento furtadiano vem de longa data. Essa fé democrática, que permeia sua vida e sua obra, está presente desde seus primeiros trabalhos e, por mais que não seja explicitamente teorizada, é uma espinha dorsal de seu modelo de desenvolvimento. Com alguns poucos ajustes e reformulações ao longo de décadas, talvez não seja exagerado dizer que a visão política de Furtado já estivesse formada desde muito cedo, o que salta aos olhos na continuidade com que seus últimos escritos retomam, sem alterações, ideias e argumentos redigidos havia décadas.

O ideal político de Celso Furtado, no qual Mannheim continua, até o fim, a ser uma presença fundamental, é bastante original. Ela se desenvolve em contraste com três outras posições: contrária ao organicismo conservador, antagônica ao liberalismo laissez-faire e distinta do comunismo bolchevique. Celso Furtado reuniu características que, na tradição do pensamento social brasileiro, não tinham se alinhado até então: Estado planejador e republicano, integração federal cooperativa, democracia política e desenvolvimento econômico. Nesse sentido, ele é o fundador não só de uma nova interpretação de país, mas de um novo modelo de país. Contra o conservadorismo, rejeita nossa suposta vocação agrária e a necessidade de um Estado autoritário; contra o liberalismo clássico, opõe-se ao livre jogo do mercado e a uma concepção raquítico-institucional de democracia; contra o marxismo-leninismo, não aceita a noção de ruptura violenta e da negação das liberdades clássicas. Nem iberista, nem americanista, Celso Furtado sonhava com um modelo de desenvolvimento próprio a nosso país, que não se fixasse nostalgicamente nem nos valores do passado colonial e tampouco adotasse de forma acrítica a linha norte-americana. O gap entre o país ideal e o país legal poderia enfim se quebrar caso a nação adentrasse um caminho de desenvolvimento, conciliando, através do planejamento social, democracia e desenvolvimento.

Tudo isso pode soar muito razoável, mas o que dizer das bases sociais do projeto furtadiano? Parece que esse ponto cego prossegue mesmo após sua autocrítica — e aqui, mais uma vez, percebe-se o quanto a herança de Mannheim ainda se faz sentir. As repetidas passagens em que Furtado acentua o caráter técnico do problema do planejamento ou dos órgãos de desenvolvimento mostra como o projeto reformista tinha um caráter que beirava o burocrático.35 Tudo depende apenas de que a sociedade acompanhe de bom grado a racionalidade intrínseca ao ideário desenvolvimentista. Os problemas que se colocam a essa agenda não seriam internos, mas apenas circunstanciais. Tudo se resolveria a partir de uma resolução instrumental, racionalmente neutra, sem que haja política nos meios, mas apenas nos fins. Os grupos sociais que encarnam essa visão de mundo são os estratos médios e intelectualizados: burocratas, professores universitários, profissionais liberais… Mas a questão parece ser que o Estado desenvolvimentista não é capaz de mediar os conflitos classistas em seu interior, a não ser que recorra a um expediente autoritário e faça o interesse de uma classe prevalecer. O Estado desenvolvimentista quase nunca conseguiu equacionar a relação entre interesse nacional e interesse de classe, fazendo prevalecer geralmente as pressões burguesas sobre aquelas dos trabalhadores — e alardeando o projeto nacional como emanando da vontade geral.


Desenvolver significa efetivar algo que está em potência e que pode vir a ser: a modernidade não se efetivou, mas deitou raízes em nosso solo. A possibilidade de se tornar um país desenvolvido existe se a racionalidade imanente à modernidade for levada a cabo. O projeto de Celso Furtado ainda está ancorado nessa concepção de que o princípio que deve ser desdobrado já está presente em nosso tecido social. Mas, em Florestan, nem sequer essa semente de racionalidade está posta no processo social brasileiro. É como se ele mostrasse que o princípio que poderia levar ao desenvolvimento nos escapa: não pode haver desenvolvimento, a não ser um que seja deformado, pois a razão imanente à nossa experiência histórica é perversa desde o começo — entre nós, haveria apenas astúcia da desrazão. Daí surge a necessidade da revolução social, que tem a tarefa de refundar a possibilidade do desenvolvimento ao implementar, de início, um novo tipo de racionalidade.

Nenhum dos dois projetos foi adiante: nem reforma, nem revolução. Se os anos 1980 trouxeram a esperança de uma transformação vinda de baixo, pautada nos movimentos sociais e na construção de um forte partido democrátido de esquerda, além de uma Constituição tributária das melhores tradições social-democratas, os anos 1990 assinalaram uma recomposição da elite nacional sob bases mais radicais, mostrando — mais uma vez… — que o projeto de soberania e autodeterminação não poderia ser levado a cabo pela burguesia ou por seus emissários, e não se deve esquecer o tanto de manobras e violências que se empregou para acelerar as reformas. O que venceu não foi nem a teoria radical da dependência, da qual Florestan se aproximava, nem o modelo nacional-dependente de Furtado. Quando na presidência, Fernando Henrique Cardoso não esqueceu nada do que escreveu. Pelo contrário. Governou a partir das conclusões políticas e econômicas deduzidas da teoria da dependência associada: foi o neoliberalismo que, nos escombros da ditadura, sagrou-se vencedor.

A partir de um conceito anódino de desenvolvimento, o crescimento econômico aparece como algo mais ou menos dado desde que haja empenho na colaboração com os países avançados. A luta não deve ser pelo desenvolvimento enquanto tal, pois ele pode ocorrer seja com o capital nacional, seja com o estrangeiro, sendo que não haveria diferença substantiva entre essas opções. O que importa é a questão político-institucional, que ganha autonomia e proeminência — deve-se lutar pela democracia e pela justiça social. Mas é tão simples dissociar desenvolvimento nacional e democracia? Uma economia não soberana pode permitir uma política soberana? Aqui, nos parece, está o curto-circuito da teoria da dependência associada, que, sem grandes rupturas, pode se transformar em um neoliberalismo à brasileira, sob a justificativa de que, para garantir o progresso econômico, bastaria a integração do país à ordem global.

Nesse processo, sendo o desenvolvimento econômico tomado como fruto natural da abertura da economia, foi ativado um discurso de polarização entre sociedade civil e Estado, sendo a primeira absolutizada como lugar de inovação, modernidade e progresso em detrimento do segundo, tido como repositório de todo o atraso nacional. Mas essa sociedade civil não era aquela dos movimentos auto-organizados e sim uma colonizada por organizações que apenas reproduziram a lógica mercantil-assistencial e esvaziaram as formas efetivas de contestação da ordem. Foi a gestão do social pelas ONGs, em um processo de terceirização até mesmo das funções elementares do Estado. Tudo isso realizado por um partido que tinha a alcunha de social-democrata, mas que, na prática, usava a camuflagem da Terceira Via para avançar um novo tipo de capitalismo.

A inserção subordinada do país no processo de globalização visava a promover um duplo choque: desmantelar o Estado desenvolvimentista e estimular o avanço do capitalismo nacional. Em outros tempos, essa proposição seria vista como contraditória. Requentando a ideia de que a economia do país é fechada e improdutiva por carecer de concorrência externa e ficar em estado de permanente proteção estatal, promoveu-se uma acelerada abertura para o capital estrangeiro, internacionalizando o mercado interno e vendendo esse processo como o ápice da modernidade, de um mundo sem fronteiras, sem ideologia, sem imperialismo… Essa tentativa algo contraditória de quebrar a ordem estamental e fazer avançar a modernidade à força foi duramente analisada mesmo por um crítico feroz do patrimonialismo. Nem o liberal Raymundo Faoro acreditou na “solução” cardosista, mostrando que ela tenderia a reforçar a dominação do mercado sobre a sociedade civil, sem que, com isso, se avançasse em nada na agenda democratizante e modernizadora.36 Enfim, já se analisou extensamente o quanto de ilusório existiu nesse modelo, que, em muitos sentidos, apenas fez reforçar a dependência econômica e política do país em um momento em que o imperialismo continuava tão vivo quanto antes. Partindo da teoria do desenvolvimento dependente, nos tornamos mais dependentes e menos desenvolvidos.

Nesse sentido, a reflexão atual acerca dos possíveis vínculos, ou prováveis desencontros, entre desenvolvimento e democracia deve partir da crítica das soluções neoliberais ainda baseada na sociologia da dependência light. Em um movimento de despolitização da economia, alguns economistas se apresentam como meros técnicos especializados em calcular as melhores formas de se alcançar um objetivo qualquer. Mesmo que esses economistas tenham visões e opiniões políticas, eles se cindem em um lado supostamente neutro e científico e outro político e cidadão. É evidente que a separação é artificial. Tanto o é que muitos desses técnicos-economistas não se furtam a defender a política econômica do governo Bolsonaro a todo momento que a própria realidade a coloca em xeque. Elogiam Paulo Guedes — ou elogiaram até recentemente — como se fosse possível dissociar uma política econômica de uma política tout court, ficando com o que seria bom e rejeitando o que haveria de retrógrado no projeto bolsonarista. Em alguns casos-limite, “tecnicamente” defendem a reabilitação da tese das vantagens comparativas e chegam a falar até em uma suposta vocação agrária como destino inelutável do país.

Por outro lado, houve muita ilusão também no projeto de liberalismo social petista. Sob esse prisma, os anos lulistas dificilmente poderiam ser caracterizados como “reformismo fraco”.37 Hoje é perceptível que a redistribuição é um processo que não leva, por si, a nenhum tipo maior de transformação qualitativa na estrutura econômica — ainda que possa gerar transformações positivas na vida das pessoas afetadas. Destituído de uma substância política sólida, de um aprofundamento da cidadania, da cultura e da educação, essa política econômica pode facilmente ser apropriada por outras forças do espectro político. O reformismo pressupõe, em quaisquer de suas formulações, um acúmulo de mudanças que num continuum poderiam resultar em uma alteração estrutural. Ora, nada mais longe daquilo que ocorreu. A passagem qualitativa do subdesenvolvimento para o desenvolvimento implica em uma série de outros fatores que extrapolam o crescimento econômico e o aumento do poder de compra, ainda que ele seja necessário.

Os governos petistas geraram expectativas às quais não foram capazes de atender, pois elas abriam um horizonte que estava muito além das forças de um projeto meramente redistributivo. Não se pode avançar um discurso político de transformação profunda sem realizar as reformas que esse tipo de retórica exige para poder se implementar; nessa decalagem entre o imaginário habilmente construído e a realidade que teima em não o acompanhar, surge o necessário desencanto com as esperanças depositadas nesse projeto de país. Se os programas de redistribuição de renda sustentaram a diminuição notável dos índices de miséria, fome e pobreza extrema, não foram capazes de alavancar esses recém-chegados ao mercado a novas posições dentro da escala socioeconômica. A imprescindibilidade de reformas estruturais bloqueou a continuidade de um processo que os programas sociais tomados isoladamente seriam incapazes de realizar.38

Ora, aí está o problema: sem evidenciar a dimensão de classe de um projeto que se quer de fato transformador, mesmo no interior de uma concepção francamente reformista, torna-se impossível consumar as reformas necessárias à sua continuidade. Sem esse aprofundamento, o programa pode funcionar apenas enquanto as condições gerais — internas e externas — forem amplamente favoráveis, como de fato ocorreu, mas apenas por alguns anos, ou, com sorte, por uma década. Claro, nada disso é automático: mesmo com todas as condições favoráveis, as boas e necessárias iniciativas de redistribuição de renda — que, convém lembrar, eram duramente combatidas por liberais e conservadores como “manipulatórias”, “pão e circo” e coisas do tipo — não se fariam por si só. Há aí um mérito, sem dúvida. Mas fica-se com a impressão de que, em diversos momentos, era possível seguir adiante, ir além.

Houve, é verdade, uma tentativa de ir além. Os governos de Dilma seguiram uma orientação de política econômica que não estava em continuidade com a cautela, até excessiva, do período anterior. Mas essa última aventura “desenvolvimentista” naufragou ante os problemas técnicos e políticos do projeto. O novo desenvolvimentismo se revelou uma combinação dos piores elementos do velho desenvolvimentismo: mentalidade tecnocrática, gastos exagerados, alocações equivocadas, ausência de reformas estruturais e uma crença exagerada no papel modernizante da burguesia brasileira. Na prática, o novo desenvolvimentismo foi, em grande medida, o Estado quase sem exigência de contrapartidas se curvando aos interesses empresariais. Então, para explicar a derrocada do projeto não cabe falar apenas em uma resistência do outro lado, no ódio da classe média, na ressurgência de elementos arcaizantes e autoritários ou na traição da burguesia nacional. Sim, isso tudo existiu, ainda existe e teve um peso importante. Sim, as resistências estruturais da sociedade brasileira são de uma inércia e continuidade impressionantes. Entretanto, isso está longe de explicar tudo. O problema de “cutucar onças com base curta” deve ser colocado de outra forma: a adoção da agenda das onças, ou melhor, do pato, resultou em índices econômicos que acabaram encurtando as bases.39 O desenvolvimentismo, mais uma vez, não conseguiu acumular forças políticas porque se fez como um velho sonho burocrático-positivista.

O fracasso do novo desenvolvimentismo e uma leitura fatalista desse fracasso levaram alguns economistas heterodoxos a abdicar do projeto de vincular democracia e desenvolvimento. Eles acabam relegando o problema democrático para um segundo plano e implicitamente dizem que analisar um projeto de desenvolvimento pelo prisma da democracia é um engano, uma visão eurocêntrica e liberal. A democracia seria um detalhe que não interessa ao povo, pois o que importa, de fato, é o desenvolvimento das forças produtivas e o combate à pobreza. Articulando a versão marxista da dependência com um ideal comunista ortodoxo, afirmam que no capitalismo o subdesenvolvimento é condição perpétua dos países periféricos, e que todos os países periféricos que se desenvolveram passaram por revoluções comunistas. A superação do subdesenvolvimento seria a superação do próprio capitalismo. Com a queda da União Soviética, o caso paradigmático, visto como exemplo inspirador, é a China. Nesse desenvolvimentismo comunista, o marxismo aplicado aos países periféricos se torna uma ciência positiva, uma teoria do desenvolvimento econômico acelerado, centralizado e autoritário.

Mas esse revolucionarismo também não consegue construir bases de apoio fora de pequenas constelações de extremistas de classe média. Falta o acerto de contas com o passado totalitário, o qual se evita, seja atacando os críticos ou usando o velho subterfúgio de tentar provar por A + B a superioridade social de tal ou qual país de matriz comunista. Ademais, esse projeto faz água diante da própria realidade: as transformações tecnopolíticas parecem desagregar e atomizar cada vez mais a sociedade, tornando impensável um tipo de ação política unitária e monista.

Essa fraqueza de uma análise que se coloca do ponto de vista da revolução é também aquela de Florestan quando ele se põe a interpretar a Nova República. Se é preciso reconhecer a crítica por vezes certeira que Florestan faz à “transição transada”,40 devemos nos perguntar se é possível subsumir a experiência da Nova República, e principalmente do momento atual, à noção de “autocracia burguesa”. O conceito assinala uma contradição: incapaz de realizar até mesmo uma explícita ditadura de classe, a burguesia precisa levar a disputa para o campo político, mas, nele, amparar-se em algum outro setor que esteja disposto a fazer a defesa de seus interesses. Não pretende dar as cartas diretamente, mas escolher políticos-capatazes para fazer o trabalho sujo, traçando apenas algumas poucas linhas de contenção nos casos em que esses quase fantoches desrespeitem sua política econômica. A burguesia não tem, e nem pode ter, um projeto de país — o que não quer dizer que seja uma classe à deriva. Ela tem um projeto de dominação. Mas politicamente ela não gera uma expressão política que tenha equivalência com seus propósitos, já que esses propósitos não conseguem se colocar como projeto viável. Assim, a dominação burguesa não raro tem que ser exercida por um elemento extraclasse, que, mesmo prometendo se colocar nos estreitos limites da burguesia, vai, num jogo complexo de recusas e aceitações mútuas, muito além, para pior, do mero projeto liberal-burguês.

O conceito parece se encaixar como uma luva na realidade atual. Entretanto, por mais que a operação político-teórica de pensar o que se passa hoje a partir da “autocracia burguesa” pareça sedutora, haveria dois problemas cruciais. O primeiro: apesar da aliança da burguesia com grupos reacionários e antidemocráticos, esses grupos angariaram bases populares significativas, além de subirem ao poder pelo interior das formas democrático-liberais. O conceito de autocracia dá conta de explicar essa autossubversão da democracia, em que as classes populares escolhem seu algoz e participam ativamente da destruição do país? O segundo: a rigor, se acompanhássemos a teorização de Florestan, todos os governos da Nova República teriam que ser pensados como autocracias burguesas, pois o conceito se refere menos a formas de governar do que a uma estrutura de organização do Estado e da sociedade. Então, se se fizer recurso ao conceito de autocracia, deve-se considerar toda a experiência da Nova República como a de uma democracia falseada. Por mais ricas que sejam as mediações históricas produzidas por Florestan, o conceito acaba pairando sobre todo o processo, sendo, portanto, hipostasiado ao não levar em conta as variações entre diferentes governos, que aparecem no esquema como sendo apenas superficiais. Ele implica um continuísmo que, mesmo fazendo recurso à história, parece cair numa reafirmação taxativa, e apriorística, sobre o devir do processo.

Mas aqui também está a força da tese de Florestan: afinal, é a teoria que é continuísta ou é nossa própria realidade que pouco muda? Se, por um lado, o argumento pode bloquear compreensões mais nuançadas — pois o final do processo está dado de antemão —, ele também nos alerta para a inocuidade das soluções fáceis. A falta de formas e conteúdos democráticos reais em nossa vida social e institucional, ou melhor, o enraizamento profundo da autocracia, faz parecer que nossa história é, de fato, circular. Mas, caso a descrição da estrutura esteja correta, é preciso saber se o caminho que nos levou a refazer o círculo é o mesmo de antes. Em todo caso, Florestan não nos deixa esquecer que o retrocesso está sempre inscrito em potência no curso da história brasileira: fingir que ele não está lá, ao menos em potência, é um erro crasso.


No Brasil, a consciência trágica do intelectual engajado na construção de uma sociedade democrática e desenvolvida parece emergir da combinação de um diagnóstico próximo daquele de Florestan — o irredutível reacionarismo de nossas elites, a impossibilidade estrutural de nosso desenvolvimento pleno, a continuidade de nossa condição colonial-dependente — e um prognóstico baseado em Celso — o aprofundamento dos mecanismos participativos, a efetivação do federalismo cooperativo, o planejamento do nosso desenvolvimento econômico. É evidente que há aí abismos entre a análise teórica, os meios escolhidos e o fim almejado. Se não dizemos que essa trajetória é impossível, parece que ao menos duas vezes ela já foi percorrida, e com insucesso flagrante: de 1945 a 1964 e de 1988 a 2016. A alternância entre momentos de fulgurosa expectativa, para os quais se evoca Celso, e momentos de lúcida desilusão, nos quais Florestan vem nos lembrar de nossos bloqueios sociopolíticos estruturais (e estruturantes), tem nos conduzido ao luto. O percurso afetivo parece ser o mesmo: da esperança ao luto.

Há saída? Existe uma resposta niilista — a Revolução é necessária, mas não é possível:

Você está mais perto hoje daquele Florestan da Revolução burguesa no Brasil, que falava que não dava para fazer a luta por reformas, tinha que apostar numa ruptura violenta mesmo?

Chico: Eu vou responder de forma paradoxal. Eu estou mais próximo do Florestan, mas não acredito.41

Além da descrença, qual seria a resposta não niilista?

Do último capítulo de Formação econômica do Brasil às páginas finais de A revolução burguesa no Brasil vai-se de um alerta firme mas esperançoso sobre as possibilidades do Brasil como nação soberana à afirmação de que o país sofre um bloqueio estrutural quase inquebrantável. Daquele vago tom otimista, com alguns traços de voluntarismo político, sobra muito pouco. A fria análise de Florestan parece reduzir nossas opções ao binômio que sempre volta: socialismo ou barbárie. E nossa barbárie não é como a dos países centrais — ela vai muito além. Aí a utopia furtadiana parece reduzida a pó; a tentativa de conciliar democracia política e desenvolvimento econômico, formando uma nação forte e soberana, parece uma mera ilusão que nossa história desfez. No lugar de qualquer modelo reformista, Florestan declara sem peias que só há um caminho: Revolução — e com R maiúsculo, que não deixe vestígio algum da democracia burguesa. Caso contrário, estaríamos, mais uma vez, condenados a repetir o processo.

Em suma, o diagnóstico de Florestan transforma o projeto de Furtado — do qual o próprio Florestan outrora fora partidário — em uma utopia sem futuro. Por outro lado, a posição de Florestan não é mais coerente porque mais afinada com um diagnóstico social preciso; ela também contém elementos tão utópicos quanto aqueles subjacentes ao projeto furtadiano. Afinal, quem, hoje, vislumbra a possibilidade de uma revolução nos moldes clássicos? E se a revolução fosse um caminho possível, ela deveria assumir as mesmas feições daquelas experiências clássicas do século XX, seja pela via russa, chinesa ou cubana? Em outros tempos, a senha para dissolver o enigma poderia estar do lado de Florestan: Revolução. Hoje, o que isso significa? Organizar-se em um grande partido vanguardista, com perspectivas de radicalização armada para expropriar a burguesia, destruir a ordem existente e, sob seus escombros, erigir um poder popular? Mas essa estratégia parece plausível ainda hoje?

Não sendo niilistas, mas também não acreditando na Revolução (ainda que se possa considerar uma revolução — mas qual?), estamos condenados a viver entre um desenvolvimentismo sem reformas, que fracassa por incapacidade técnica, corrupção e resistência política, e um liberalismo igualmente incompetente, corrupto e também sem projeto de nação? O que fazer em um país no qual a estrutura social e política parece ser continuamente refratária a qualquer forma de progresso, derrogando as oportunidades históricas de conciliar desenvolvimento e democracia? O projeto reformista de Celso Furtado parece uma utopia; o projeto revolucionário de Florestan, irrealizável. Entre Celso e Florestan, onde ficamos? Fadados a tentar realizar a tarefa histórica que a própria burguesia brasileira não pode e nem deseja assumir como sua? Seremos apenas liberais democráticos, lutando contra o liberalismo autoritário?

Parece haver um caminho entre Celso e Florestan. Caminho de uma esquerda radical e democrática, reunindo o melhor da tradição reformista e da tradição revolucionária, da tradição nacionalista e da tradição socialista. Se há alguma saída, ela está em construir uma força política que, sendo realista, não abra mão de seus ideais; sendo pragmática, não abra mão de seus princípios. É com base em amplo apoio popular que se pode de fato erigir a nação em bases políticas e econômicas democráticas. Havendo resistência do outro lado, é a força do povo que pode sustentar tal projeto, e não de uma elite, seja ela intelectual, burocrática ou armada.

Não foi outra a conclusão de alguém que esteve atento para essa possível convergência entre o ideal nacional-reformista e o radical-socialista. Pioneiro na aproximação entre o pensamento de Celso Furtado e Florestan Fernandes, Chico de Oliveira os elege como o cânone para se pensar na relação entre desenvolvimento e democracia. Tanto por sua trajetória pessoal, tendo trabalhado com Celso na Sudene, quanto intelectual, estando por anos filiado ao pensamento sociológico uspiano, a obra de Chico de Oliveira foi construída, em partes, como uma tentativa de pensar seu vínculo com o pensamento furtadiano através das lentes críticas de Florestan. Se essa experiência intelectual permeia seus escritos, em particular a Crítica à razão dualista, há um artigo que torna explícita essa reflexão: Diálogo na nova tradição: Celso Furtado e Florestan Fernandes. Na conclusão desse texto, Chico de Oliveira sugere que, a despeito de suas claras diferenças, pode-se pavimentar um novo caminho, por ele denominado “venturosa radicalidade”, que resultaria da combinação entre Celso e Florestan: “A síntese lograda, se não é decididamente, otimista, constitui o novo ponto de partida para serem pensados novos programas, que passam, definitivamente, pela ruptura de toda subordinação dos setores populares”.42

É melancólico celebrar os cem anos de Celso e Florestan num momento em que a “subordinação dos setores populares” é uma realidade esmagadora. Os valores que guiaram a vida de ambos estão derrotados, e seu horizonte utópico é motivo de chacota para os poderes dominantes. Contudo, sob qualquer perspectiva de progresso social brasileiro, os dois continuarão a ser referências fundamentais — e, nesse sentido, podem desde já nos levar a imaginar uma saída para a barafunda em que nos encontramos. Por ora, sem lamúrias, denegações ou niilismo, continuamos tentando conciliar o sonho radiante de Furtado com a análise implacável de Florestan.