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Engrenagens do ódio

resenha do livro A máquina do ódio — Notas de uma repórter sobre fake news e violência digital, de Patrícia Campos Mello

É certo que o livro A máquina do ódioNotas de uma repórter sobre fake news e violência digital sairá em todas as listas de livros brasileiros de não ficção mais importantes do ano. Uma das melhores jornalistas do país, Patrícia Campos Mello narra, de um ponto de vista de observadora “privilegiada”, como operam as redes de desinformação, a perversidade de campanhas de intimidação com pesado uso da máquina pública, os bastidores da mais importante série de reportagens para as eleições de 2018 e, por fim, discute propaganda política e consumo de jornalismo nas redes sociais em perspectiva internacional comparada. A obra é também um manifesto e uma defesa dos valores e da ideologia que reivindica mais atenção ao “jornalismo profissional” e ao papel social de um jornalista.

Sou um repórter no início de carreira, que pesquisa desinformação desde 2017. Atualmente, trabalho em um dos maiores jornais do país, O Estado de São Paulo e já sofri tentativas de intimidação por parte de alguns protagonistas das milícias digitais. O livro de Patrícia é, portanto, uma defesa direta do meu ofício, alertando ao grande público a relevância do que faço e os riscos em que me coloco. Mas, na tarefa de analisar criticamente o seu relato, é preciso deslindar algumas das hipóteses assumidas no tom narrativo que permeia o livro. Na condição de alguém com um sentimento de reverência e referência pela autora, veterana de faculdade e de profissão, é com todo o respeito que me permito conversar com o livro. Na maior parte da obra, que é a descritiva da operação de desinformação por governos e das táticas usadas para intimidar repórteres, o livro é completo.


Em entrevista para a revista estadunidense Foreign Policy,1 Patrícia conta que ao tentar escrever uma comparação do uso das mídias sociais em campanhas de desinformação no Brasil, Índia e Estados Unidos, ela percebeu “que [como] as campanhas de desinformação são parte integrante de uma estratégia para desacreditar e desarmar jornalistas específicos, tive que me incluir como parte da história”. Em comparação com a minha, a geração de Patrícia no jornalismo brasileiro tem diferenças relevantes na forma como consome e encara o papel político do sujeito — seja jornalista ou não — no espaço de debate público digital. Para ficar em um exemplo: de 2010 para cá, minha geração se coloca no debate público — principalmente via Twitter — muito antes de ter a chance de publicar um texto no papel. Mesmo com trajetórias excepcionais, muitos nunca verão sua versão impressa. Nossa alfabetização comum e digital foi simultânea e nossa vida adulta é formada muito mais por consumo de podcasts e newsletters personalizados do que de um formato broadcast massivo-midiático. Isso torna estranhas certas premissas de conduta apregoados por Patrícia e seus colegas.

Logo na quarta página da introdução, Patrícia argumenta que “jornalistas que cobrem política devem obedecer a uma regra de ouro não escrita: jamais revelar o voto”.2 Essa regra começou pela geração dela: os chefes da Patrícia não tinham mesmo a chance de votar, mas houve uma tentativa (ineficaz) de despersonalizar politicamente o repórter desde a redemocratização.

Uma anedota é bem explicativa da diferença de pensamento geracional. Em uma edição de 2015 do programa Roda Viva,3 o experiente Ricardo Setti, jornalista da geração anterior à dela, é entrevistado por outros cabeças brancas do jornalismo paulistano. Em determinado momento, Setti conta:

quando era jovem, repórter no Estadão na sucursal de Brasília, eu era um cara de esquerda que militava no movimento estudantil e à tarde eu me vestia de jornalista e ia cobrir os ministérios militares para o Estadão — que era um jornal que apoiou o golpe de 1964 e que é um jornal conservador. E eu fiz direito esse trabalho. Eu procurei ser bastante imparcial [passando as tardes na esplanada].

O argumento dele é que a eterna busca por imparcialidade não tinha interferência do sujeito que após o expediente se organizava na política. Principalmente quando o objeto da apuração não é a sua própria organização.

Setti e seus colegas de geração não negam que o jornalista é um humano e um sujeito político no mundo. Dezenas deles foram filiados a partidos políticos — manifestação muito mais “partidária” do que a declaração de voto. E nunca se entenderam — nem foram entendidos por seus colegas de trabalho — como violadores de uma “regra de ouro”.

No contexto desta década, em que Patrícia torna-se alvo e bode expiatório para deslegitimar a imprensa, pode parecer mais razoável a não declaração. Afinal, ela conta que uma entrevista dada para estudantes da PUC, em que assumiu sempre ter votado no PT, foi amplamente usada contra ela. Como a instituição Jornalismo está sob ataque, são necessários mais cuidados perante o público para se proteger da ofensiva. Nas palavras dela: “escancarar o voto pode alterar a percepção que se tem sobre o que publicamos e nos deixa sujeitos justamente a esse tipo de ataque”.4

Mas o que ela não diz é que pouco importa a declaração, a “máquina de ódio” não precisa disso para operar com eficácia. Um caso recente — e não mencionado no livro — é bem revelador: em 2017, o repórter Artur Rodrigues, da Folha de S. Paulo, publicou uma reportagem segundo a qual dois integrantes do MBL foram contratados pela prefeitura de São Paulo. O grupo tentou desqualificar o autor usando uma foto de seu Facebook em que aparecia com sua estante de livros.5 Nela, era possível ver o livro Carlos Marighella, de Mário Magalhães. A mera presença da biografia de um militante de esquerda foi o suficiente para o repórter ser atacado com eficácia. Outro caso, de 2018, também com um repórter da Folha de S. Paulo, reforça o argumento. Débora Sögur-Hous foi atacada porque, mesmo fechando toda informação possível nas redes sociais, era possível ver que nas curtidas de sua foto havia inúmeros perfis com o filtro de apoio a Haddad.

Ora, se ter ou não um livro na estante, ou mesmo amigos de esquerda, já é usado por grupos de ódio para desqualificar jornalistas, pouco importa se o repórter declara voto ou não. Como vimos, com a regra de ouro, Patrícia pretende afirmar a ideia de que uma fonte ou um leitor confiará mais no trabalho dela se não souber em quem ela vota, mesmo sabendo que ela vota. No entanto, estamos lidando com uma paranoia de tipo olavista. Não é negando a condição de eleitor, mas abraçando a transparência — muito defendida por ela em outros momentos do livro — que vamos superar esses ataques, mostrando, por exemplo, que o trabalho de um repórter pode ser excepcional mesmo quando contra seu candidato de preferência.

Apesar de Patrícia não ser contra a liberdade de expressão do jornalista, o discurso dela corrobora práticas opressivas em empresas de jornalismo no Brasil. Paulo Zocchi, presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, escreveu um artigo narrando parte desse problema.6 No texto, Zocchi conta um episódio em que o jornalista Diego Bargas é demitido da Folha de S. Paulo porque Danilo Gentili não gostou de uma entrevista com ele e incentivou a perseguição virtual. O humorista postou em sua rede social uma foto feita catorze anos antes, na qual aparece o adolescente Bargas ao lado do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. Diferentemente do caso de Patrícia, Bargas foi demitido no mesmo dia após o “pedido” informal das hordas de Gentili, na época, ainda bolsonarista.

No mesmo texto, Zocchi argumenta:

por força da realidade das relações de trabalho em nossa sociedade, nos parece assim evidente que não é no exercício profissional que o jornalista assalariado pode exercer plenamente a sua cidadania e o seu direito à liberdade de expressão. Então, onde e quando ele pode exercer de forma plena a sua liberdade de expressão, o seu direito de opinar politicamente, de defender pontos de vista em sociedade, de apoiar uma opinião majoritária ou de adotar posições polêmicas, segundo seus princípios pessoais e obedecendo unicamente à sua consciência? Sobretudo quando não está a trabalho. Só que, justamente nesse momento e nesse espaço da vida privada, as empresas jornalísticas pretendem tutelar a liberdade de expressão do jornalista.

Mais preciso impossível.

A Rede Globo tem um manual de redes sociais recentemente formalizado que também não leva em conta as relações de poder na empresa. Um texto dos editores do The Intercept Brasil, Leandro Demori e Tatiana Dias,7 também é preciso no apontamento da incoerência: "tentando esconder o posicionamento político de seus repórteres, o Grupo Globo está jogando exatamente o jogo irrealista dos trolls. Em vez de estimular a transparência e a pluralidade, pede que se escondam. É claro que repórteres precisam ter bom senso. Que jornalistas são pessoas públicas. No Congresso da Abraji, o chefe de segurança do BuzzFeed, Jason Reich, recomendou diretrizes mais realistas: separar a vida pessoal da profissional e não fechar suas redes profissionais. ‘Calar o jornalista é exatamente o que o hater quer’”.

Não há evidência de que saber as posições dos jornalistas prejudica a percepção do público. Um relatório recente do Reuters Institute for the Study of Journalism, da Universidade de Oxford,8 — que foi compartilhado por Patrícia — tenta na seção 3.3 responder à questão: “quanto é transparência demais?”: “Os tipos de iniciativas projetadas para puxar a cortina e tornar os processos de tomada de decisão [nos jornais] mais visíveis incluem a divulgação de políticas sobre conflitos de interesse, publicidade e correções, mas também as identidades das pessoas que selecionam as histórias e determinam o que é interessante. Como observou Marcelo Rech, presidente da Associação Brasileira de Jornais (ANJ), ‘a primeira relação do público é com o comunicador’. Mas diferentes formas de abertura podem influenciar a confiança de maneira diferente, e ainda faltam evidências sobre quando e como ela pode ser implementada de forma eficaz.”

No livro, Patrícia descreve com primor como a misoginia é um elemento muito presente para destruir a reputação de jornalistas. São as mulheres — de longe — as mais atacadas. Minha colega de Estadão, Vera Magalhães, por exemplo, é uma delas, que sofre ataques semanais, da esquerda e da direita (mas não com a mesma intensidade). Mas Vera incorre no mesmo problema que Patrícia: ao defender que não pode ser associada ao famoso editorial “Uma escolha muito difícil”, já disse mais de uma vez que nunca declarou voto e que, portanto, é injusto associá-la ao discurso do patronato de nosso jornal. Ora, se ela tivesse revelado seu voto, ou subscrito o editorial que não revela o voto, mas defende uma equivalência entre o petismo e o bolsonarismo, os ataques seriam de alguma forma mais legítimos? Evidente que não. Vera já reportou enormes furos que foram prejudiciais ao PT e a Bolsonaro; nenhuma declaração de voto tiraria a credibilidade dela — e nem o ódio das hordas virtuais.

No primeiro capítulo do livro, Patrícia faz uma autocrítica e reconhece que parte da desconfiança com sua série de reportagens — desde a primeira: “Empresários bancam campanha contra o PT pelo Whatsapp” —,9 foi porque ela não explicou de forma detalhada quem eram suas fontes e não mostrou as trocas de mensagens que subsidiaram sua apuração. E conclui: “mais do que nunca não basta se apoiar na autoridade do jornalista ou do veículo de imprensa”.10 Mais uma vez, mais transparência é a solução para se proteger do ódio. No final do livro, ela retoma a palavra: “transparência é a palavra-chave. […] Resguardando princípios básicos como o sigilo da fonte, quanto mais se revelar sobre o autor de determinado artigo e como foi feita a reportagem, melhor. É a versão jornalística do ‘visite a nossa cozinha’”.11 Contudo, parte da visita à cozinha é saber quem são os cozinheiros

A diferença de avaliação que eu e Patrícia temos do papel do jornalista é um espelho de um debate que está pegando fogo nos EUA.12 Os jornalistas nascidos no final dos anos 1980 em diante, chamados de wokes, têm cada vez mais clareza da impossibilidade de uma postura neutra diante de determinados acontecimentos, mesmo na reportagem. As tensões por lá se acirraram durante a cobertura dos protestos liderados pelo Black Lives Matter, mas partem do mesmo problema: não acreditamos nas premissas ideológicas do jornalismo industrial do final do século XX.


Mesmo que o livro seja completo e coerente sem abordar esse elemento, é sentida a ausência de uma autocrítica por parte da imprensa quanto à legitimação de atores e discursos que são precursores de Bolsonaro e de sua “máquina do ódio”. No quarto capítulo, o texto descreve com precisão como governantes da Nicarágua, Venezuela, Turquia, Filipinas, Índia e Hungria começaram a limitar objetivamente a liberdade de imprensa nos seus países, com medidas de intimidação econômica e discursiva que crescem gradativamente.

Mas Bolsonaro e o grupo que permanece no seu entorno não foram os únicos a usar do “manual húngaro ‘Como acabar com a imprensa independente em dez lições’”.13 Nos últimos quatro ou cinco anos, os repórteres da Folha de S. Paulo, do Estadão e d’O Globo, para citar apenas os três maiores e mais importantes grupos referenciados no livro, tiveram repórteres sistematicamente atacados pelo MBL, que foi o principal — mas não o único — grupo da nova direita a atacar jornalistas, com a cartilha que depois seria sofisticada por Carlos Bolsonaro. Ao longo de 2020, o nomeado “Gabinete do Ódio” foi referenciado o tempo todo nos jornais, mesmo quando não havia prova de que a campanha de intimidação em questão partiu do Planalto. Entretanto, poucos anos antes, o grupo que adotava as mesmas práticas ganhou colunista na Folha de S. Paulo14 e defesa efusiva no Estadão.15MBL chegou a responder colegas jornalistas com mensagens ofensivas e imagens obscenas16 e usava das mesmíssimas práticas hoje denunciadas na CPMI das Fake News, valendo-se intensivamente, por exemplo, de sites hiperpartidários que simulam portais noticiosos. O grupo é tão pioneiro na “Máquina do Ódio”, que a rede coordenada de comportamento simulado nas redes sociais do MBL foi a primeira a ser derrubada no Facebook brasileiro.17 Mas na época, os jovens foram chamados pelos jornais de “memeiros”,18 como se fossem apenas adolescentes inocentes.

A própria anedota que inicia o livro19 é com o personagem símbolo do bolsonarismo arrependido: Alexandre Frota, então candidato a deputado federal, gravou vídeo com a foto de Patrícia em destaque e a legenda “VAGABUNDA SEM VERGONHA”. Mas bastou uma filiação ao PSDB e um aperto de mão com João Doria, que em 2017 também gravava vídeos para xingar jornalistas,20 que passou a ser tratado como centrista por analistas mainstream. Joice Hasselmann é outro caso facilmente demonstrável. Na mesma linha, expressões como “ala ideológica”, adotada por todos os jornais, não dizem nada e tentam colocar o bolsonarismo como fenômeno restrito e minoritário dentro da “nova direita”. Centenas de reportagens retratam os militares de alta patente como moderados dentro do governo, mesmo quando eles mesmos ameaçam o Supremo Tribunal Federal ou homenageiam torturadores.21

No final do capítulo,22 Patrícia confunde uma boa defesa da ideologia do jornalismo profissional, que diferencia informação e blogs que servem apenas para corroborar crenças, com uma distinção conceitual muito mais difícil de ser traçada. Quando se compara O Globo, Estadão e Folha de S. Paulo com Terça Livre, é fácil diferenciar jornalismo diante de conteúdo hiperpartidário. Agora, quando você lembra que boa parte dos atores da direita nasceu e cresceu a partir da Veja e de O Antagonista, para depois serem rejeitados por eles; quando textos do Jornal da Cidade Online (um dos sites mais frequentes na minha coleta de conteúdos falsos desde que entrei no Estadão Verifica) são republicados na Gazeta do Povo, o jornal mais tradicional do Paraná; quando sujeitos que vivem de atacar o jornalismo profissional, por exemplo Rodrigo Constantino, são mantidos por anos em veículos como a Jovem Pan, fica tudo mais cinza. E essa discussão precisa ser enfrentada.

Na prática do trabalho de checar desinformação, uma das regras que não contamos e que se aprende no primeiro dia é que se um texto é enganoso ou contém informação falsa, mas foi publicado num dos veículos de jornalismo profissional, na maioria das vezes, não fazemos o fact-checking. A premissa por trás dessa escolha é que o próprio veículo teria a responsabilidade de corrigir o erro, com igual benevolência em relação a textos dos melhores e mais precisos jornalistas da imprensa e dos piores colunistas que ainda não partiram para o mundo blogueiro-ativista. Mas nem todo mundo tem Ombudsman e nem mesmo a excelente Flávia Lima dá conta de tudo que é publicado por seus convidados na Folha de S. Paulo. O jornalismo “grande mídia” brasileiro alega que é diferente no método de escrutínio público, mas tem muita dificuldade de criticar a si mesmo, mesmo nos núcleos dedicados à checagem de fatos.

Por fim, Patrícia peca nas distinções e tons de cinza do jornalismo quando afirma que “jornalismo militante não implica compromisso com exatidão”.23 O The Intercept Brasil muitas vezes já se declarou, usando sinônimos, como jornalismo militante. E ninguém confunde a qualidade da informação deles com blogs bolsonaristas. A Ponte Jornalismo, que cobre segurança pública e justiça há mais de cinco anos no Brasil, tem muita clareza que, em um confronto entre o sujeito reprimido pela violência do Estado e o aparato repressor, ouvir os dois lados e ter precisão factual não tem relação nenhuma com ser “não militante”. O jornalismo policial de lá inclusive é frequentemente mais completo e melhor apurado que o da Folha de S. Paulo, justamente porque não aceita os anacrônicos chavões do jornalismo do século XX.

Acho besteira o papo de que a imprensa gestou o lavajatismo e dele surgiu o neofascismo — discurso que normalmente parte de quem se ofende com as críticas que partem da imprensa. Porém, a responsabilidade na formação do novo autoritarismo brasileiro é ampla e cabe, para fazer uma boa defesa do jornalismo, reconhecer onde erramos e continuamos errando, com sinceridade e sem corporativismos.