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Configurando uma genealogia das práticas autodefensivas

resenha de Autodefesa: uma filosofia da violência, de Elsa Dorlin1

Débora Bolsoni. Fantasma (volta).

Um dos pontos de entrada escolhidos por Elsa Dorlin para sua genealogia da violência é o caso de Rodney King, afro-americano perseguido e detido pela polícia de Los Angeles, no ano de 1991, após exceder o limite de velocidade permitido pelas leis de trânsito local. Sua resistência inicial em sair do carro resultou na cena de linchamento registrada no vídeo caseiro de George Holliday, transmitido nos principais canais televisivos dos Estados Unidos da América na ocasião.

As imagens do linchamento que escancaram a brutalidade policial foram usadas para incriminar o condutor. Rodney King processou os quatro policiais que o espancaram, absolvidos pelo júri popular, que situaram King como culpabilizável frente ao Estado por resistir à violência legitimada, uma vez que a veiculação de sua imagem serviu como, nos tribunais, enunciado para qualificar sua imagem como “ameaça”. Ao se defender da manifestação dos meios que detêm o monopólio legítimo da violência, Rodney King se torna indefensável perante a lógica da legítima defesa, lógica essa construída juridicamente em um sistema de poder onde os Estados codificam e condicionam o direito do uso da violência.

A reprodução do vídeo do espancamento de Rodney King nos tribunais serviu não para evidenciar que o motorista fora alvo da violência do Estado, mas para legitimar a ação policial sob o argumento que constrói King como um agente da violência. O uso do vídeo como evidência nos tribunais sustenta uma espécie de gramática que faz com que o que é visto seja também o que é lido. No tribunal, a leitura das imagens foi inserida em um esquema histórico-racial, reproduzindo a lógica que usurpa de King seu direito de se defender e, ao fazê-lo, enunciando sua resistência como ameaça.

Dorlin alerta de antemão: “as imagens nunca falam por si mesmas, sobretudo em um mundo em que toda a representação da violência é um dos temas mais valorizados pela cultura visual” (pp. 22-23). O discurso que emerge dos frames congelados do vídeo do espancamento reitera uma leitura orientada pelo imaginário branco no qual o que é visto se insere dentro de um esquema racista que reencena o corpo do jovem homem negro como Outro ameaçador do qual os agentes da ordem deveriam se defender. O discurso do vídeo já é enquadrado em uma sintaxe pré-existente que faz com que o júri se identifique com os policiais.

O que será denominado justiça é o uso da violência legitimada pelos agentes do Estado, inserindo-se em uma lógica hétero-colonial-patriarcal na qual os corpos dignos de defesa são aqueles forjados, jurídica e discursivamente, como sujeitos soberanos, “micro Estados” que serão aptos a participar da personalidade jurídica e, então, terão o direito de se defender ou de serem defendidos.

A violência legitimada é sempre estatal, mesmo quando não é exercida diretamente por seus agentes. Ao retomar autores como Hobbes e Locke, a autora aponta como o direito à propriedade está intimamente relacionado ao direito de castigar. Em Autodefesa: uma filosofia da violência [Se Défendre: Une philosophie de la violence], Elsa Dorlin realiza uma incursão pela história oficial da legítima defesa. Publicado originalmente em 2018 pelo selo Zones da editora La Découverte, o livro ganha sua edição brasileira em 2020, resultado de uma parceria entre a ubu editora e a crocodilo edições. Vencedor do prêmio Frantz Fanon, em 2018, e do Prix de l’Écrit Social, em 2019, o livro de Dorlin apresenta uma genealogia das autodefesas e uma contribuição para o debate sobre a constituição jurídico-filosófica do sujeito considerado defensável.

Dorlin retoma, no capítulo 4, passagens do Leviatã para mostrar como no chamado estado de natureza haveria a liberdade de cada pessoa para utilizar todo e qualquer meio para garantir sua própria preservação, instaurando um movimento generalizado de defesa da própria vida, menos ligado a uma ideia de segurança do que à constatação da igualdade de cada um frente aos perigos de morte. A guerra de todos contra todos enunciada por Hobbes não tomaria forma como um combate efetivo, mas como um constante estado de tensão que busca a preservação de “si mesmo”, um “si mesmo” constituído no esforço defensivo. Segundo a autora, o mesmo esforço constante em garantir minha liberdade é o esforço que me transforma em possível presa e é justamente nessa contradição que Hobbes se apoia para elaborar as condições do contrato. O aparelho de Estado, acompanhado de um sistema econômico, aparece como autoridade supostamente capaz de garantir a vida de cada um. A organização social sob um aparelho de Estado pressupõe, portanto, que se abra mão de seu direito natural e da autodefesa, ou seja, de sua liberdade de exercer a violência.

No entanto, “ainda que todos os esforços da filosofia de Hobbes se concentrem na conceituação de uma potência soberana legítima (instituída por contrato) e absoluta, a única capaz de pacificar a violência intrínseca às relações interindividuais, essa violência nunca é, porém, totalmente erradicada da vida civil” (p. 153). A leitura de Dorlin mostra como tal preocupação defensiva levou a um modo de subjetivação não completamente subjugada ao Estado, na qual há espaço para as conformações paranoides evocadas pela autora, em ressonância com Judith Butler, ao iniciar sua incursão pelo caso Rodney King. A violência, sustenta a autora a partir de sua leitura de Hobbes, não está fora do campo político, mesmo com a instauração de aparelhos de Estado, e a autodefesa expressa formas de relação de si com o “si mesmo” que não são separáveis dos impulsos vitais, relações essas que se manifestam nos corpos ao longo do tempo. O esforço consistiria, então, em “compreender como a subjetividade é tecida por táticas corporais de defesa, por esforços hábeis de resistência que entram em confronto tanto com um jogo real e imaginário de adversidades interindividuais, como com conjunturas materiais que têm dificuldades para eliminar ou mascarar a instituição de um Sujeito de direito respeitado pelo Estado” (p.153).

A diferença na leitura de John Locke é situada principalmente no que diz respeito ao sujeito da autodefesa. Ainda que os seres humanos sejam pensados como naturalmente iguais, a preservação de si aparece como preservação de algo que se possui. A igualdade, segundo Dorlin, é pensada por Locke em termos de uma jurisdição que define o corpo como propriedade do sujeito, propriedade essa da qual se dispõe em vistas de ter sua proteção garantida. A jurisdição que funda a subjetividade lockeana é orientada duplamente pela noção de posse, uma vez que meu corpo me pertence e, simultaneamente, minha capacidade de transformar a natureza me autoriza a me apropriar de bens e de pessoas. Em decorrência das leis da natureza, bem como de uma inflexão de uma lei divina que autoriza a dominação de uns sobre outrem, a liberdade está condicionada à noção de posse de si mesmo e de seu corpo, sendo que alguns o possuem e outros são despossuídos de corpos e, então, de liberdade. Assim, em Locke, a defesa é pensada sempre em relação à legitimidade da propriedade de “si mesmo”. Essa concepção resulta que “a preservação da própria pessoa consiste inteiramente na legalidade ou ilegalidade de se fazer justiça, enquanto que em Hobbes ela era definida como uma disposição imanente ao corpo” (p.155).

Desde as proposições de Hobbes o aparelho de Estado aparece com a intenção de banir do campo social o espetáculo da violência (ainda que isso nunca ocorra totalmente) e o direito de exercê-la, atrelando a defesa de cada indivíduo à própria existência do aparelho de Estado. Com as formulações filosófico-jurídicas de Locke passa-se a ponderar quem são os sujeitos que, por direito, devem ser defendidos. Mais ainda, e em decorrência da lógica estatal e de quais sujeitos são reconhecidos como tais frente ao aparelho de Estado, quais aqueles que têm o direito a se defender. Defender-se aparece aqui não apenas como preservar a si mesmo, mas como possibilidade de castigar quem violar minha propriedade, e com isso Locke promove um direito no qual o direito à propriedade está vinculado às leis da natureza e às leis divinas, logo, segundo sua fórmula, atentar contra a propriedade é uma ofensa a essas leis e…

ao direito de preservar seus bens, ao direito legítimo de todo/a proprietário/a de “se fazer justiça”, Locke opõe a “violência injusta” e o “espírito de carnificina” dos criminosos. […] Ao mesmo tempo em que o roubo é definido como uma declaração de guerra, guerra social, se é que houve alguma, Locke transforma essa guerra surda em verdadeira “caça”: mais que uma batalha entre proprietários e ladrões, trata-se de uma caça aos corpos indigentes, heterônimos, escravizados

(p. 156).

Ao longo do livro, Dorlin evidencia como, historicamente, preservar a si mesmo carrega um “si mesmo” fundador da subjetividade moderna, resultante do direito à propriedade e que evoca dois princípios que caminham juntos, o direito à preservação e à jurisdição, inseridos em uma lógica na qual preservar-se é castigar. É traçada uma linha divisória entre os sujeitos proprietários de si mesmos e todas as outras pessoas. Define-se, assim, quem são os excluídos do direito à defesa, o que resulta na produção de sujeito indefensáveis, cuja reputação é frequentemente associada a comportamentos ilegais e imorais de toda sorte.

A violência identificada tanto por Hobbes quanto por Locke como natural de todos os seres humanos e organizações sociais é, então, usurpada pelos aparelhos de Estado aos quais se delega o papel de defensor das vidas que, por direito, devem ser preservadas. O movimento de delegação da defesa de “si mesmo” ao Estado resulta que este passe a ser legitimamente o detentor dos meios da violência que é redirecionada de forma a ser exercida contra a própria população. No entanto, Dorlin vai além da tese do monopólio estatal da violência ao escrutinar o princípio de delegação que, segundo a autora, funciona numa via de duas mãos, de modo que o aparelho estatal “garante uma manutenção da ordem a um custo menor, transferindo um certo número de suas prerrogativas — uma delegação de poderes que passa pela interpelação contínua dos cidadãos, em todo caso, de alguns dentre eles, na qualidade de justiceiros legítimos” (p. 160).

As duas concepções conseguem inscrever o “estado de natureza” das sociedades ditas não civilizadas como um cenário de violência. O Estado e o Direito modernos aparecem como uma força externa regulatória, inscrita na violência, que seria capaz de proteger os indivíduos uns dos outros, reconfigurando a autopreservação no interior dos dispositivos de punição e proteção. Seja como for, a legitimidade do exercício da violência aparece sempre na forma estatal ou operacionalizada por agentes delegados. Mais do que isso, o confisco da violência dá ao Estado, e posteriormente ao capitalismo, o direito de exercer uma violência que passará a ser nomeada justiça, qualificando como violência aquilo que vem de fora não apenas do Estado, mas do léxico jurídico que constitui o direito à defesa a determinados cidadãos. Decorre disso que a possibilidade de se defender enquanto legítima defesa seja privilégio de uma minoria dominante, forjada concomitantemente ao conceito de “outro” e o movimento que Dorlin faz em seu livro vai além de uma história dos dispositivos de desarme, testemunho de como alguns grupos são construídos prevendo sua exclusão do direito de serem defendidos, configurando uma genealogia das práticas autodefensivas.

Dorlin recorre a Foucault para encontrar o método que orienta sua leitura, que não recai na história em sua linearidade espaço-temporal, mas em uma inteligibilidade das táticas, lutas e estratégias. A análise de Dorlin acompanha o pensamento de Foucault no entendimento de que governar é conduzir condutas de outrem, de forma que o poder se constitui ao passo que constitui também sujeitos. Tal movimento acontece com uma dupla implicação entre sujeito e poder, à medida que o sujeito forjado pelo poder o aceita como parte de sua própria existência, o “si mesmo” é definido pela produtividade discursiva do poder a tal ponto que o reivindica e o deseja. Os discursos que constituem o “si mesmo” e o direito à defesa aparecem no livro, pois, não situados em um campo de batalha de sentidos, mas como práticas exercidas concretamente, moldando a realidade.

Tendo em vista que, para Foucault, a produção de indivíduos estende a jurisdição do Estado, ou seja, transforma-os em sujeitos do Estado, o interesse da genealogia de Dorlin está em evocar práticas de autodefesa surgem como resistência para além dos grilhões da jurisdição. Uma genealogia da violência manifesta em testemunhos que passam pela tanatoética de judeus encurralados no gueto de Varsóvia (capítulo 3), pelas práticas das sufragistas anarquistas inglesas praticantes de jiu-jitsu (capítulo 2), pelos debates da luta antirracista nos Estados Unidos e o Black Panther Party for Self Defense (capítulo 6), mas também pela lógica do linchamento e por grupos de autoproclamados justiceiros (capítulos 5 e 8), traçando um mapa que ajuda a olhar para as formações da violência legitimada, suas manifestações em forma de legítima defesa e a reivindicação da violência que opera em outro registro, a partir de práticas de autodefesa.

A autodefesa, tal como entendida pela autora, se diferencia da legítima defesa ao passo que não se enquadra no sistema jurídico e constitui uma prática de resistência que é também necessidade vital. Para além de Foucault, é a Fanon que Dorlin recorre para pensar como pode se dar o processo de reapropriação do corpo, reinvestindo o desejo de tal forma que ele assuma objetivos políticos. No capítulo que abre o livro, a autora aponta como a ordem colonial operou através do desarme sistemático da população. O espaço colonial é apresentado como o lugar onde a ordem jurídica opera de forma a considerar, para além dos princípio de preservação (da propriedade) e de delegação, uma constante situação de “exceção”, que situaria uma minoria branca como o único sujeito defensável, outorgando-lhe “um direito de polícia e justiça semelhante ao de desarmar certos indivíduos para torná-los em si ‘matáveis’ e ‘condenáveis’ — um privilégio codificado como direito à legítima defesa” (p. 49).

Fanon se ocupou dos efeitos do aparato colonial que, operando pela sedimentação do tempo materializada na compartimentação de espaços, impõe obstáculos ao corpo subjugado desapropriando-o de sua possibilidade de resistir, física e psiquicamente, contra a violência. Quem se vê na posição de colonizado se vê à margem do seu próprio corpo e assiste à violência legitimada incessante que incide sobre sua existência. Testemunhas da desmaterialização, corpos colonizados ficam em tensão constante em resposta à brutalidade fundadora da chamada civilização. Se os corpos colonizados vivem subjugados na inércia imposta pela violência legitimada, esses mesmos corpos buscam sua reanimação na temporalidade onírica, refugiando-se nos sonhos para resistir ao sistema colonial. Seguindo a argumentação fanoniana, a autora afirma que o corpo em movimento dos sonhos cria um “si fantasmático” que o permite atravessar a inércia imposta pela violência da vida cotidiana, “mas essa inércia é uma tensão muscular permanentemente contida, a promessa implacável de represálias” (p. 53).

A exclusão do direito de defesa não é vista como repressão em sua negatividade, o que situaria o poder no campo exclusivamente jurídico, mas como produção de saberes, discursos, sentires, que atravessam o corpo social e fazem circular o poder por redes que não se reduzem a um centro soberano.

Por um lado, “diante do mundo determinado pelo colonialista, sempre se presume que o colonizado é culpado” (Fanon apud Dorlin, p. 51), por outro o corpo colonizado está em estado constante de tensão, desrealizado de sua capacidade de agir e submetido à violência sistemática, o que o coloca num estado de alerta para um confronto que está sempre por vir. Essa tensão e preparo para o confronto, reformulados no “si fantasmático” onírico, muitas vezes encontram passagem nas lutas fratricidas, e a entrada na luta de libertação seria capaz de redirecionar a violência fantasmática, convertendo-a em violência real. Na esteira do pensamento de Fanon, a autora afirma que “se dermos vazão à hipótese de que esses simulacros de um corpo fantasmático são também uma forma de propedêutica de confronto, poderemos trabalhar a ideia de que o combate imaginado não é apenas uma forma de autodefesa psíquica, mas também de treinamento corporal, de visualização antecipatória da entrada em um modo de violência defensiva” (p. 55).

Quando a brutalidade colonial vacila, aqueles a quem foi negado o estatuto de sujeito explodem, atingindo um fora de si e é nesse movimento, necessariamente violento, que eles se tornam sujeitos. Vale notar que Dorlin sublinha como Hobbes se ocupou da escravização num registro que não se restringe ao da “guerra justa” e ao falar da escravidão transatlântica o autor reconhece uma incivilidade nas práticas de autodefesa. Desse modo, “não se trata mais de filosofar acerca da legitimidade ou ilegitimidade do sistema escravista, mas de constatar a inevitabilidade da violência das práticas de resistência e de libertação dos escravos” (p. 151). Ora, pode-se pensar que a incivilidade é, pois, este fora de si que reivindica a violência que os dispositivos de poder usurparam. Se a organização dita civilizada codifica a violência dos aparelhos estatais e seus agentes legitimados como justiça, essa tomada pela e da violência nos lança ao fora de si e escapa às redes de codificação do poder e seus englobamentos espaço-temporais.

Não é casual que as lutas antirracistas dos EUA tenham reivindicado, desde o século XIX, o direito à violência da autodefesa, requalificando-a como legítima em oposição a uma violência vista como ilegítima perpetuada pelo racismo (e pelo racismo de Estado), vemos no capítulo 6 do livro. Se o espancamento de Rodney King aparece logo nas primeiras páginas do livro para introduzir a discussão de quem são aqueles que podem se defender e qual o léxico que condena de antemão determinadas pessoas de acordo com as codificações hétero-colonial-patriarcais, a autora retoma o Kissing Case para evocar os debates em torno das políticas de autodefesa.

Em outubro de 1958, na Carolina do Norte, Sissy Sutton, uma garota branca de 8 anos de idade, passou a tarde brincando com um grupo de crianças de menos de 10 anos, dentre as quais havia apenas dois garotos negros, David “Fuzzy” Simpson e James Hanover Thompson, de 9 e 7 anos, respectivamente. Foi a bochecha de um deles que Sissy Sutton beijou e, ao contar a sua mãe alguns dias depois, o estalinho infantil resultou na organização armada de um grupo composto por integrantes da família burguesa branca estadunidense, grupo este que foi à caça no bairro onde moravam os dois garotos, “com a intenção de matá-los e linchar suas mães” (p. 208).

Malsucedido em sua tentativa de fazer justiça com as próprias mãos, o grupo armado se tornou espectador da justiça feita pelo aparelho de Estado, “os dois meninos foram violentamente detidos pela polícia, que os acusou de estupro. Uma vez presos, foram maltratados, proibidos de ver a família […]. Ainda sem a presença do advogado de defesa […] o juiz declarou os dois garotinhos culpados de agressão sexual e atentado ao pudor e os condenou à pena de prisão […]” (p. 209). Enquanto o Estado decidia sobre a vida dos garotos,

[a]s mães foram perseguidas: demitidas do emprego como trabalhadoras domésticas, assediadas pela população branca da cidade e ameaçadas de morte pela Ku Klux Klan, que à noite acendeu uma pira e ateou fogo em cruzes imensas em frente à casa de cada um dos garotos, além de atirar na fachada e nas janelas, matando o cachorro dos Hanover

(p. 209).

No contexto pós-guerra, líderes da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP) encabeçavam mobilizações pelos direitos civis e contra os linchamentos, mas enquanto se recusavam a se envolver nos debates do Kissing Case, Robert. F. Williams fundou, em Nova York, o Comitê de Combate à Injustiça racial e transformou o caso em escândalo internacional. O posicionamento de Williams era acompanhado por sua reivindicação pela autodefesa armada como única possibilidade estratégica para a sobrevivência da população negra na guerra travada contra a supremacia branca.

Ainda que sua posição tenha sido marginal em relação a organizações negras do mesmo período, a mobilização encabeçada pelo Comitê de Combate à Injustiça Racial conseguiu, mediante algumas condições, que David Simpson e James Hanover fossem libertados. No que diz respeito à autodefesa, Williams entendia que a violência da supremacia branca era legal, porém ilegítima, ao passo que a autodefesa violenta seria ilegal, porém legítima.

Suas teses que entendiam a violência defensiva como possibilidade de insurreição, foram uma das fontes das quais beberam Malcom X e integrantes do Black Panther Party for Self Defense (BPPFSD). Igualmente, a filosofia da violência de Fanon, contemporâneo de Williams, colaborou para a construção de uma ação política centrada na autodefesa não mais como meio, mas como própria filosofia da luta, encarnada nas Panteras Negras.

Os textos do Black Panther Party for Self Defense foram amplamente difundidos na década de 1960 e houve uma disputa no que diz respeito às estratégias da não violência ativa ou da violência defensiva. Não se trata de uma discussão sobre passividade ou atividade, o que está em jogo são…

duas apreensões diferentes da história. A primeira toma conhecimento de um tempo longo de lutas, aceita a violência para “trabalhar” a história, para de algum modo desviar seu curso da deteriorização. A ação da e pela não violência é então consideravelmente trabalhosa. Ela usa os corpos nela engajados bem como a própria história. Ora, frente a essa abordagem teleológica da defesa, a segunda posição, a abordagem agonística, inverte a lógica: essas estratégias políticas de autodefesa aceitam o fato de que só é possível fazer história no âmbito da irrupção e do choque […]

(p. 223).

O BPPFSD defendia uma autodefesa que ecoava o incivilizado de Hobbes, ou seja, o direito à conservação de si, mas se reconfigurava aqui como prática ultralegalista e, nessa perspectiva, declarou uma guerra social ao Estado.

Em 1969, as revoltas de Stonewall ressoam o grito das Panteras Negras, engrossando o caldo dos movimentos LGBTQ+ que desde 1965 em São Francisco se organizavam como resistência a perseguições policiais. Os anos 1970, Dorlin mostra no capítulo 7, foram palco de movimentos divergentes entre si no que diz respeito à compreensão da preservação de si entre grupos de feministas e militantes LGBTQ+. Por um lado, a Gay Liberation Front situava, no começo da década, a polícia na posição de opressor imediato e o Combahee River Collective publicava, após o assassinato de várias mulheres negras, em 1979, um documento que rechaçava a retórica da segurança proveniente dos agentes do Estado como possibilidade de proteção, um manifesto de autodefesa que entende o racismo e o sexismo como dois componentes de um mesmo dispositivo de poder que opera pela exposição de determinados corpos ao máximo risco de morte.

Por outro lado, a genealogia de Dorlin evoca a captura e assimilação da revolta desses movimentos, que encontram resposta à reindividuação do direito de viver com segurança na forma de discursos que igualavam a segurança a uma noção de limpeza, muito bem quista pelos especuladores imobiliários e publicitários da época. Com isso, movimentos que haviam se alinhado às lutas antirracistas, anticapitalistas e antipatriarcais se inserem na jurisdição que perpetua a linha que divide quem será o sujeito detentor de um “si mesmo” digno de proteção e quem são aqueles de antemão qualificados como ameaças.

Uma palavrinha para além do livro que, no entanto, ressoa com a reivindicação da autora pela autodefesa como uma filosofia da luta. No dia 25 de maio de 2020, em Minneapolis, o ex-segurança negro George Floyd foi executado por um policial branco que, ajoelhado sobre o pescoço do primeiro, não se moveu minimamente diante da súplica final de Floyd: “não consigo respirar”. George Floyd foi assassinado por um agente da ordem estatal e o vídeo de sua execução circulou ao redor do mundo, seguido por imagens de uma cidade sob as chamas de revolta daqueles que saíram, em meio à pandemia de Covid-19, às ruas para gritar que vidas negras importam. Minneapolis pegou fogo, fogo esse que se alastrou pelos quatro cantos dos EUA, colocando abaixo delegacias de polícia, ocupando as ruas e os corpos, instaurando uma Zona Autônoma Temporária que aboliu a polícia de seu território. Quase 10 mil pessoas foram detidas em três dias de protestos e as ruas seguiram queimando. É certo que a revolta é acompanhada de constantes movimentos de captura, no entanto o acontecimento interessa aqui como manifestação da reivindicação radical pelos impulsos vitais de cada um em direção à reinstauração da violência que lhes foi usurpada pelo aparelho de Estado e pelo Capitalismo. Se a imagem de Rodney King foi usada nos tribunais inserida em um léxico jurídico e em uma gramática enunciadora que o situava como ameaça de antemão, o vídeo da execução de Floyd se tornou uma convocação à revolta, uma revolta que escapa a qualquer possibilidade de vida governada no interior dos dispositivos de poder contemporâneos. Os levantes de Minneapolis mostram como corpos de pessoas negras seguem sendo alvos concretos de uma lógica estatal que os exclui do direito à defesa e à própria vida, mas, também, e principalmente, tornam manifesta uma produção ativa de reinvestimento do desejo para além do “si mesmo” defensável.