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Comentário sobre a questão evangélica brasileira

Tom Vieira. Paloma.

Fevereiro de 2017. Ativistas evangélicos progressistas realizam culto num domingo à tarde na Cidade de Deus (RJ) junto a fiéis e pastores locais, majoritariamente pentecostais. O evento foi construído como meio de protesto e sensibilização na comunidade que há poucos dias havia sido alvo de uma operação militar que resultou na morte de alguns jovens pela polícia, entre eles o filho de um pastor, dali mesmo do bairro. Ao fim do culto, os participantes são levados mais para dentro da comunidade, apresentados aos garotos empregados pelo tráfico, ali empunhando seus fuzis. Todos dão as mãos num círculo e um pastor entoa uma oração.

Fevereiro de 2019. São João da Ponte (MG), na bacia hidrográfica do Velho Chico, sertão mineiro. Uma das regiões mais católicas do Brasil. É um fim de semana e há reunião da associação local de trabalhadores rurais. A reunião, lotada, é aberta com uma oração que roga a benção de Deus sobre os propósitos coletivos de toda aquela gente. A associação local já há alguns anos é dirigida por evangélicos.

Tanto um caso quanto outro são reais. Ocorridos em rincões onde o Estado e os movimentos sociais tradicionais possuem pouco ou nenhum acesso, mas nos quais a religião tem passe livre. Em comum, ambas as situações são marcadas pela principal prática ritual evangélica: a oração, um simples gesto que desde a Reforma do século XVI tornou a ser universalmente possível. Por ele, um indivíduo qualquer fecha os olhos e fala com Deus, tête-à-tête. Os episódios assinalam a capilaridade dessa religiosidade.


No pós-guerra, diante das impossibilidades objetivas de superação dos fundamentos capitalistas da barbárie, Adorno propôs uma “inflexão em direção ao sujeito”. Isso foi na sua conferência Educação após Auschwitz, em que o sociólogo se pôs ao exame das formas de subjetivação que permitiram a “falta de identificação entre as pessoas” e a irreflexividade de indivíduos tragados na engrenagem nazista. O ângulo da proposta permanece válido, como programa científico e tarefa da crítica. É sob os auspícios dessa intenção que devemos procurar na vida — aquela mesma, sem vestígio de discurso ideológico — as disposições subjetivas que existem e procurar entender como são tocadas por certos discursos. Como a vida vivida pode ganhar significação e/ou expressividade política? E como a ação política traduz ou menciona a experiência do dia a dia dos homens comuns? Para repor a historicidade da política e livrá-la das fórmulas gerais, convém refazer as mediações entre os sujeitos sociais e sua autorização política, aperceber os liames entre valores e representação, cotidiano e mundo público.

A esquerda emergente nos anos 1980, da qual o Partido dos Trabalhadores foi a maior expressão partidária, ancorava-se nas coletividades de sua época. Os principais atores políticos desse campo chamado “democrático-popular” forjaram-se na urdidura de uma sociedade mais rural, católica e de algum mundo fabril: MST, Comunidades Eclesiais de Base e CUT. Ocorre, porém, que esse Brasil existe cada vez menos. Em seu lugar vige um país de jovens, pentecostais, moradores de periferias urbanas, empregados em call center’s ou aplicativos de entregas. São sujeitos constituídos na experiência de uma sociedade cada vez mais urbana, cada vez mais evangélica e de trabalho crescentemente precário. A essa gente não corresponde plenamente em representatividade nenhum dos “projetos” da esquerda brasileira. Quanto mais avança a mudança social, mais a esquerda se revela anacrônica. E não é o caso de se “reatar” um suposto elo perdido que mantenha a distinção e a distância entre “representantes” e “representados”, mas de um esforço por ultrapassar essa cisão e obter, tanto quanto possível, o sujeito social como sujeito-ator-autor político.

No caso evangélico, em particular, primeiro é preciso superar o preconceito que generaliza os crentes como passivos, alienados, oportunistas, conservadores, fascistas e… a lista de maus adjetivos é longa. O estigma que lhes pesa sobre os ombros é um julgo áspero e um fardo pesado que acaba os empurrando ainda mais para a direita. Além disso desconfio que sob certas críticas “políticas” se esconda profundo elitismo e seu peculiar desprezo pelas camadas populares. “A massa ignara que se deixa ludibriar por pastores mal-intencionados, a gentalha que precisa ser combatida ou, na melhor das hipóteses, catequizada pelo discurso ilustrado de nossas classes médias laicas e cosmopolitas.” O pressuposto fundamental para o entendimento da questão evangélica brasileira é: massas evangélicas e elites evangélicas conservadoras não possuem total identidade. E flagrar suas dessemelhanças é o que nos permitirá compreender como e em que medida estes últimos conseguem se legitimar como autoridades religiosas e como representantes políticos e quais as brechas dessa relação.

Quem está de olhos abertos nas periferias verá que os indivíduos negociam suas crenças e práticas, a vida está entre o crido e o feito; verá como se traduzem os discursos, como compõem trajetórias religiosas e políticas e culturais e profissionais e familiares singularizadas, como equacionam contradições de identidades e experiências. Como vive a mãe evangélica que tem um filho gay? Ou o pastor cujo filho é morto pela polícia? O trabalhador rural evangélico buscando na Bíblia inspiração para resistir ao assédio dos grileiros. A jovem neopentecostal que trabalha em um pequeno comércio, mas que frequenta o sarau organizado por aquele coletivo feminista… Sim, essas pessoas existem. Porque não são pessoas unidimensionais. O evangélico não é só evangélico. E sua pertença religiosa não está separada das outras. O mesmo corpo que vai à igreja, pega o ônibus, mora num certo bairro, dorme com alguém (ou não) às noites. Seus corpos estão submetidos a vários regimes diferentes; desempenham papéis sociais variados como pai ou mãe, homem ou mulher, hétero ou não-hétero, morador de certo lugar, adepto de certa igreja bem específica, trabalhador autônomo ou empregado de certa empresa, sindicalizado ou não, proveniente de uma ou outra região do país, etc. É um essencialismo vulgar reduzir alguém à sua filiação religiosa oficial e lhe classificar como “progressista” ou “fascista”, aliado ou inimigo. Assim como também é inadequado reduzir alguém ao papel de eleitor — o fato de que muitos potenciais eleitores de Lula votaram em Bolsonaro, por exemplo, desmancha quaisquer lógicas classificatórias que se queira propor. Esse é um grande desafio: não atribuir total sobredeterminação de um papel social ou relação social, no caso, o vínculo de pertença religiosa, na conformação do self dos indivíduos autodeclarados evangélicos. Há que se considerar que eles adotam linhas de ação particulares à cada esfera/mundo em que participam e buscam coerência com o papel desempenhado in situ.

Sujeitos sociais

Assumamos que a escravidão seja a instituição fundamental do Brasil. Dela procedem muitos males, atualizados ao longo da história, mas que dizem respeito basicamente ao nosso capitalismo e à nossa democracia: é o fundamento do mercado de trabalho que viemos a ter, caracterizado pela superexploração do trabalho, e é o fundamento do autoritarismo socialmente implantado no Brasil. Com o acréscimo do racismo e da violência patriarcal, rudimentos de toda formação social escravista, o que temos é essa sociedade de feições tão estamentais.

O que os evangélicos têm a ver com isso? Vamos olhar de relance para três aspectos particulares em sua experiência religiosa e que se vinculam à universalidade da formação social, em seu reforço ou em sua contestação. Ou seja, a experiência pela qual os sujeitos se constituem é ambígua e possui elementos regressivos e progressivos. De sobrevoo, vamos identificá-los nos três aspectos: 1) autoridade; 2) moralidade; 3) prosperidade.

Em regressividade:

1) Autoritarismo

Todo fundamentalismo é autoritário. E a absolutização de uma interpretação bíblica, a intransigência na defesa “da verdade” e a reivindicação do seu monopólio se harmonizam muito bem à ideia de que “temos que salvar a pátria”. Essa salvação, claro, é o que inspira o ímpeto catequista de querer converter todo mundo, encher o céu e combater o pecado aqui na Terra, inclusive na política. O autoritarismo, em sua raiz, é a indisposição para com a diferença. Se manifesta como convicção avessa à alteridade e também como método, um jeito de fazer impositivo e não compartilhado. No caso evangélico qual alteridade é a mais problemática? A alteridade moral. Religiosa também, mas é especialmente aos moralmente diferentes que se endereçam as injunções autoritárias dos evangélicos fundamentalistas.

2) Moralismo

O moralismo de extração autoritária é o principal esteio político da direita evangélica. Com a disseminação de pânicos morais, suas lideranças incitam o preconceito contra o público LGBTI+. A defesa da “família tradicional”, o combate à “ideologia de gênero” (noção importada do Vaticano, aliás) e o repúdio ao “kit gay” nas escolas são as pautas pelas quais seus parlamentares se elegem, com o apoio de pastores que repercutem essas coisas em suas igrejas. Esse setor bloqueou por mais de uma década o combate à homofobia proposto em 2006 (PLC 122), garantiu Marco Feliciano para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara em 2013 com o propósito de sabotar as políticas antidiscriminatórias e emplacou o Messias nas eleições de 2018 — diga-se de passagem, ele é o autor do termo “kit gay” e atribui ao famigerado “kit” a catapulta de sua carreira política. As últimas eleições em que cultural struggles se sobrepuseram ao classismo não devem ser apreciadas como total exceção histórica. Esses temas não desaparecerão do debate.

Claro que tais ideias não mobilizam apenas os evangélicos, mas encontram nesse meio religioso um terreno fértil, já que a maioria dos crentes considera as relações homoafetivas como grave pecado. Mesmo parte dos crentes ditos “progressistas” compartilham dessa visão, o que atrasa a superação do embaraço. A questão de gênero e diversidade sexual é sem dúvida o principal obstáculo que se interpõe entre o segmento evangélico e a esquerda. Vale dizer que se esses temas tivessem sido debatidos em termos claros com a população durante os anos de governos petistas, haveria menos espaço para fake news que nos custaram não só a última eleição, como custam a dignidade e a segurança de milhões de pessoas em função de sua orientação sexual e identidade de gênero, inclusive evangélicas.

No caso dos evangélicos — e também dos católicos, igualmente moralistas quanto à sexualidade, aborto, etc. —, os grupos nativos progressistas cumprem um papel importante porque podem descontruir as noções preconceituosas e seus argumentos teológicos, como já se fez na luta abolicionista, na instituição do divórcio e na superação de várias outras mazelas sustentadas “biblicamente” por séculos. É um erro se optarem por contornar estes temas polêmicos. Negar o diagnóstico de uma doença não fará com que ela deixe de existir. A mamadeira de piroca está boca do povo, assim como a ideologia de gênero e um sem fim de temas e tabus.

3) Teologia da prosperidade

A terceira manifestação regressiva de um dos aspectos listados é a teologia da prosperidade. Ela é muito criticada no próprio meio evangélico (está presente no catolicismo também) e não diz respeito à maioria das igrejas, mas tem lá sua influência e grande repercussão pública. Grassa nas igrejas mais definidamente neopentecostais, embora tenha infiltrações do pentecostalismo clássico. Essa teologia antiascética se baseia no sacrifício; este rito primevo em que o fiel tem a divindade como parceira de troca. Soa herética porque na gênese do cristianismo está a doutrina da “graça”, o que inclusive serve de argumento aos evangélicos críticos. Em outras tradições a relação sacrifício/oferta-benesses está muito mais naturalmente presente como nos cultos afro e no judaísmo, por exemplo, com a diferença de que esses cultos não são midiáticos e escandalosos.

Seus críticos laicos a condenam por ser uma expressão do pensamento mágico e/ou do charlatanismo de vendilhões do templo. É difícil não concordar. Mas concordar nos descompromete, afinal só nos restaria “abrir a cabeça” dos fiéis ou prender os pastores adeptos dessa teologia. O Macedo faria mais um filme. Mais sofisticado seria observar sua funcionalidade como ética econômica no capitalismo periférico, de mercados informais e precários de trabalho, mas ainda não há um acúmulo científico nesse ponto, com empiria etc. Chamar de “neoliberal” também pouco explica; com o descuido com que se usa essa categoria, já nem sabemos o que ela denota. Mas sim, apontar o materialismo, o egoísmo e a meritocracia espiritual dessa teologia é justo e necessário. São valores extremamente regressivos.

Em progressividade:

3) Direito à dignidade e ativismo

No caso da teologia da prosperidade, é preciso dizer que ela exprime uma profunda indignação moral contra a miséria. E isso é algo positivo. Ainda que no método e nas consequências tenha lá seus problemas, o que essa teologia diz é: “Deus não quer que você tenha uma vida miserável, mas uma vida abundante”. Assim enuncia com muita veemência o direito à prosperidade, um direito natural concedido por Deus.

O elogio à pobreza e ao martírio e a colocação da luta política como único caminho para a dignidade são elementos próprios da teologia da libertação. Sua redução ao político e o primado do imanente não podem satisfazer como religião àqueles que realmente vivem do trabalho; é o que diz a experiência histórica.

E nesse ponto, tanto a teologia da prosperidade (TP) quanto outras tradições teológicas evangélicas (inclusive crítica à TP) em geral, enfatizam algo em comum: a companhia divina nas aventuras pelo pão. Os crentes “fazem sua parte” trabalhando do jeito que der e sempre crendo que “Deus proverá”, já que ele “multiplica o azeite da viúva”, “veste os lírios e alimenta os pássaros que não semeiam nem segam”. É com essas referências na cabeça que o trabalhador evangélico sai de sua casa às quatro da manhã, “crendo na vitória” e “firme nas promessas” para buscar o sustento. Há quem diga que eles são enganados pelo mito do empreendedorismo e dominados pelo neoliberalismo. Mas se você é um vendedor ambulante, por exemplo, é razoável sair de casa às quatro da manhã convicto de que está derrotado até que o governo mude e o capitalismo acabe? E se você sai de casa à quatro da manhã acreditando que tem Deus ao seu lado e que você conseguirá, “em nome de Jesus”, vender suas mercadorias e conseguir seu sustento… você é um tolo “neoliberal”?

2) Inclusividade

De igual modo o moralismo pode ser autoritário, mas também pode ser democrático, o que seria quase um antimoralismo. Exemplos: um viciado usuário de drogas que chegar em alguma pequena igreja não será visto como um “bandido” marginal, mas como alguém doente. O homem bêbado que torrava os tostões no boteco e espancava a mulher e os filhos deixará de beber e terá que se comportar em casa. Os egressos do mundo do crime podem “nascer de novo” nas igrejas em que também são acolhidos, pôr fim à carreira criminosa e compartilhar seu “testemunho” com os outros. Pesquisas demonstram que entre os evangélicos há maior rejeição à máxima “bandido bom é bandido morto” e maior crença na ressocialização de presidiários.

Assim, o pecado que iguala a todos, a necessidade universal de conversão e o amor de Deus são crenças que se somam ao acúmulo experiencial de ressocialização que os membros das igrejas possuem, seja ela qual for. A ruptura e a aquisição de um papel social é marcante para essas pessoas e favorece, contraditoriamente ao moralismo autoritário que apedreja, uma atitude de inclusividade e igualdade entre os “irmãos”. A ajuda mútua, o cuidado comunitário e o acolhimento “sem acepção de pessoas” expressa um moralismo democrático.

1) Comunidade de iguais e autoestima

E esse elemento “democrático” está presente no empoderamento dos indivíduos pobres, de trajetórias marcadas por exclusão e humilhação. Ali na igreja a mulher negra se torna a “regente do coral” ou do “círculo de oração das irmãs” e em algumas igrejas ela pode até ser pastora. Assim como o homem negro, trabalhador manual não qualificado que amargando pertencer ao grupo social menos escolarizado do Brasil e talvez seja (semi)analfabeto; ele se torna um pregador no domingo à noite, onde apresentará sua exegese da “Palavra de Deus”. O jovem cujo primo está na Fundação Casa poderá frequentar o grupo de jovens da igreja e até ganhar um instrumento clássico e integrar a orquestra da igreja.

Outro ponto é que a autoridade pastoral é muito mais frágil do que o clero católico. O sacerdócio universal dos crentes instituído pela Reforma extinguiu a excepcionalidade do pastor, de modo que em diversas comunidades o pastor é eleito pelos irmãos, em outras é avaliado. Há os casos em que ele é dono da igreja. Mas se você discorda, funde a sua própria igreja ou se filie a outra. Simples assim.

Em resumo, o comunitarismo ético e afetivo, a inclusividade e igualitarismo, as reivindicações por dignidade, prosperidade e seus esforços otimistas são elementos progressivos da experiência evangélica e que favorecem a produção de sujeitos potentes. Trata-se de uma experiência religiosa que estimula a leitura e a interpretação de texto, a meditação pessoal, o autoexame, as habilidades de expressão oral e o contato com manifestações artístico-religiosas da música, do teatro e da dança (ou “mímica” como chamam os pentecostais). A socialização nas igrejas, na média, propicia o desenvolvimento da capacidade de iniciativa própria e ao mesmo tempo da associação e a participação. Se sob regência de um moralismo democrático e uma reivindicação por dignidade, então temos uma socialização que produz cidadãos. Se sob regência de um moralismo autoritário e um egoísmo acumulador, produz anticidadãos fundamentalistas.


As condições ontológicas em que se manifestam os sujeitos não condizem ipsis litteris com as distinções metodológicas esquemáticas da reflexão. Os elementos regressivos e progressivos se misturam na vida de um só sujeito ou igreja. No mundo da vida as coisas nunca são “isso ou aquilo”. Também nenhum desses elementos são particulares aos evangélicos. Eles se tornam particulares quando são traduzidos em categorias religiosas e amparados por crenças e práticas de natureza religiosa. Daí que compreender as disposições subjetivas com que os elementos se reproduzem é tão importante para a desmontagem de sua regressividade e desbloqueio da progressividade dessa experiência religiosa.

Autorização política

Frustrando muitas apostas, a secularização não baniu as religiões do espaço público, tampouco “emancipou” as consciências individuais dos valores religiosos. Pelo contrário: a separação entre Igreja e Estado, ao findar os monopólios religiosos assentidos por Estados confessionais, abriu mercados de concorrência pluralista entre vários grupos. Foi nesse ambiente, que no Brasil se aclarou com a República ao fim do século XIX, que os evangélicos cresceram paulatinamente graças à eficácia de sua organização na oferta religiosa.

É inegável, contudo, que o secular tenha se imposto. Não como “A secularização” — não das predições teleológicas da modernidade —, mas como “secularidade” do público. Essa ética — ou etiqueta? — é o que faz com que a bancada evangélica lute no Congresso sem quaisquer rompantes de fanatismo e sem citar sequer um único versículo bíblico. Seus argumentos são laicos e brandem noções como “liberdade de expressão” e “liberdade religiosa”, por exemplo. No procedimento, portanto, exibem notável compatibilidade com as praxes republicanas. Também por isso constrangem quem possa reclamar de sua participação como se o fato de serem religiosos conservadores invalidasse a legitimidade de quem foi eleito e se comporta conforme as regras do jogo. Portanto, do ponto de vista do ativismo social e político-partidário, os atores evangélicos vieram para ficar.

Como minoria organizada, os evangélicos defenderam a República, a abolição da escravatura e os valores liberais e progressistas na passagem entre os séculos XIX e XX. Nos anos 1950 e 1960, desenvolveram, sob a inspiração de Richard Shaull, a chamada “teologia da revolução” e realizaram, no âmbito da extinta Confederação Evangélica Brasileira, diversas conferências que visavam compreender e afirmar o lugar dos evangélicos em favor das mudanças pró-igualdade e justiça social. Essas conferências reuniam pastores, leigos e intelectuais como Celso Furtado, Gilberto Freyre e Florestan Fernandes. A última delas, a famosa “Conferência do Nordeste” teve o tema “Cristo e o processo revolucionário brasileiro”, em 1963 — ocasião em que também afirmaram defender as reformas de base do governo João Goulart.

A cooptação das cúpulas eclesiásticas pelo regime militar resultou em profunda desmobilização dos crentes progressistas, vários deles, inclusive, exilados, presos, torturados e mortos pela ditadura. Quando alcançamos a redemocratização o quadro já era outro: em que pese a atuação do Comitê de Evangélicos Pró-Lula em 1989, a Associação Evangélica Brasileira (AEVB), a Vinde e o Movimento Evangélico Progressista (MEP) nos anos 1990, quem deu o tom do engajamento político desse segmento foram os da cepa golpista de 1964 e os emergentes (neo)pentecostais. Por quê? Possuíam majoritariamente o controle institucional de igrejas. Já na Constituinte estabeleceram uma “bancada evangélica” e de lá pra cá cresceram, apresaram meios de comunicação e máquinas partidárias, concentrando recursos. Vale lembrar que essa bancada compôs base parlamentar dos treze anos de governos petistas.

Mas foi também nos anos 2000 quando muito prosperou a “teologia da missão integral” — teologia progressista evangélico latino-americana originada nos anos 1960 — inspirando coalizões pró-direitos humanos como Rede Fale, RENAS, entre outras. Na segunda década, o impedimento de 2016 foi central: irromperam os evangélicos contra o golpe, primeiramente com a Frente de Evangélico pelo Estado de Direito. Com a radicalização dos fundamentalistas e sua posterior associação ao bolsonarismo, vários grupos evangélicos nasceram ou ganharam maior visibilidade em sua luta por desautorizar os pastores de direita a falarem em nome do povo evangélico. Além da Frente de Evangélicos, grupos por igualdade racial, de gênero, pelos direitos da população LGBTI+ e pela democracia se multiplicam: Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG), Frente Evangélica pela Legalização do Aborto (FELA), Movimento Negro Evangélico (MNE), Evangélicxs pela Diversidade entre outros. Um campo evangélico progressista.

Seu maior desafio? Mostrar a pluralidade política desse segmento religioso. Sua maior dificuldade? Acesso aos meios de visibilidade pública. Os pontos fortes de sua atuação? 1) socializar e organizar politicamente as parcelas religiosas descontentes com a direita evangélica; 2) denunciar o ativismo fundamentalista. Claro, não escapam do paradoxo da denúncia que é sempre o de, ao denunciar, lançar luz sobre mau testemunho dos seus irmãos, o que reitera as assimetrias de visibilidade e avoluma a hegemonia dos adversários. A grande tarefa por se fazer, e não compete apenas aos evangélicos progressistas, mas a toda a esquerda — e hoje eu diria que a todo campo democrático — é dissociar o protagonismo da direita evangélica de sua representatividade. É dizer que Malafaia, Feliciano, Magno Malta e companhia, embora mais visíveis, não representam todos os evangélicos. A denúncia talvez não seja a melhor estratégia para cumprir essa tarefa; é preciso o anúncio — tonar conhecido o trabalho desses grupos e lideranças de ativismo por justiça e enunciar o contraste.

Notas gerais de conclusão provisória

Os evangélicos tornaram-se mais mundanos. Reduziram seu ascetismo contracultural, dissociando seu particularismo ético de suas expressões estéticas, o que conferiu à sua mensagem e estilo maior plasticidade e capacidade de circulação. Basta “aceitar Jesus” e confessar-se evangélico. Você pode ser da Assembleia de Deus no interior do Pará, de uma paróquia luterana em alguma colônia alemã do Sul ou da “Bola de Neve Church”, entre tantas outras opções. Se for o caso, ainda pode se declarar evangélico sem vínculo institucional como fazem os chamados “desigrejados” — fenômeno crescente.

A transição demográfico-religiosa em curso se exprime por um crescimento evangélico absolutamente moderno e de estro antropofágico, apto a digerir particularidades culturais e adaptável a vários contextos. Incorporam mudando. Aos poucos vão retocando a tradicional carranca afro-católica brasileira, acrescentando ícones, senão ao panteão oficial, ao cotidiano popular: a senhora negra de saia e coque, a música gospel e o linguajar típico que se espalha, as orações na associação de trabalhadores rurais no norte de Minas ou entre os explorados do tráfico na Cidade de Deus; a igreja de garagem, entre os bares e pancadões, compondo a paisagem nas periferias. Deus ali no meio do redemoinho?

É certo que maldizê-lo não será politicamente produtivo. Há que se ultrapassar a imediatez das manchetes, o pessimismo do noticiário e o taticismo destilado de nossa impaciência histórica, em tudo rebocada pela velocidade e superficialidade da informação e dos clichês maniqueístas. Aí poderemos (re)conhecer.