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Cinco poemas de Maria-Mercè Marçal

Mariana Portela Echeverri. Eleva e afunda.

Maria-Mercè Marçal nasceu em 1952 na província de Barcelona, na região da Catalunha, Espanha. Além da poesia, dedicou-se ao jornalismo, à editoração, à tradução, à militância política e ao ensino do catalão.

Poeta incontornável, foi também um dos nomes mais importantes do feminismo e da causa queer em seu país.

Nos anos 1980, quando a Espanha se reconstituía de uma longa ditadura fascista e o catalão voltava a ser permitido, sua obra foi uma das protagonistas na cena literária catalã: Marçal foi a primeira a publicar poemas que tratavam do amor homoerótico e a direcionar seu trabalho de tradutora às obras escritas por mulheres. Traduziu do russo e do francês autoras como Colette, Marguerite Yourcenar, Anna Akhmátova e Marina Tsvetáieva.

Faleceu em 1998, aos 45 anos, vítima de câncer. Publicou sete livros de poesia e um romance.

Todos os cinco poemas traduzidos a seguir pertencem ao livro Raó del cos [Razão do corpo], lançado postumamente em 2000. Marcados pela morte e pela doença, foram escritos quando a autora lutava contra um câncer de mama. São evidenciados nesses textos uma obsessão do sujeito lírico por determinados símbolos, como a flor, as pedras, o corpo e a cor vermelha. A presente tradução preocupou-se em manter estes símbolos em evidência, tentando recriar o ritmo calmo e a musicalidade do original.

As ilustrações de Mariana Portela Echeverri fazem uma bela e atenta leitura destes textos, também destacando tais símbolos.

As leituras dos poemas ficaram a cargo de Jèssica Ferrer Escandell, professora de língua e de literatura catalãs aqui no Brasil.

Aos leitores que se interessarem, foram publicadas recentemente duas coletâneas de Marçal em nosso país: Antologia de Maria-Mercè Marçal, tradução de Ronald Polito (Lumme, 2017) e Degelo, tradução de Meritxell Hernando Marsal e Beatriz Regina Guimarães Barbosa (Urutau, 2019).


Furgant per les llivanyes i juntures
trobí el vell drac encara aferrissat

— Maria Antònia Salvà

Furgant per les llivanyes i juntures
d’aquesta paret seca; entre mac
i mac d’oblit; entre les pedres
dures de cega desmemòria que endures,
et sé. I saber-te em dóna terra, arrel.
Et sé i em sé, en el mirall fidel
del teu poema, aferrissadament
clivella pedra de silenci opac
— dona rèptil, dona monstre, dona drac,
com el cactus, com tu, supervivent.

Vasculhando pelas frestas e juntas
Encontrei o velho dragão ainda implacável

— Maria Antònia Salvà

Vasculhando pelas frestas e juntas
dessa parede seca; entre pedrisco
e pedrisco de esquecimento; entre as pedras duras
da cega desmemória que suportas,
te sei. E te saber me dá terra, raiz.
Te sei e me sei, no espelho fiel do teu poema, implacavelmente
trinca de pedra em silêncio opaco
— mulher réptil, mulher monstro, mulher dragão,
como o cacto, como tu, sobrevivente.


PÈRDUA

Com la florida
entre la neu, sobtada,
la sang, la taca:
el senyal de la pèrdua
desmentint la mort.

Mariana Portela Echeverri. Língua de pedra.

PERDA

Como a floração
entre a neve, súbito,
o sangue, a mancha:
a marca da perda
desmentindo a morte.


Morir: potser només
perdre forma i contorns
desfer-se, ser
xuclada endins
de l’úter viu,
matriu de déu
mare: desnéixer.

Morrer: talvez seja apenas
perder forma e contornos
desfazer-se, ser
sugada para dentro
do útero vivo,
matriz de deus
mãe: desnacer.


Per cada gest
que lleva fruit,
pròdiga
escampadissa
de flor vermella.
Vida, excés,
hemorràgia:
Imponderable
tresor
de la pèrdua.

Mariana Portela Echeverri. Sobre a água.

Para cada gesto
que arranca o fruto,
pródigo
esparramar
de flor vermelha.
Vida, excesso,
hemorragia:
Imponderável
tesouro
da perda.


Com la xiqueta que en encetar camí
s'omple de rocs la falda i les butxaques
i s'endinsa en el bosc i els va perdent
sense lliurar les batalles previstes
contra llops o gegants, ombres
va deixant un rastre
sembra
i ara li resta només dins del puny
crispat un còdol llis…

Como a menina que ao traçar o caminho
enche de pedras o colo e os bolsos
e se embrenha no bosque e as vai perdendo,
sem se render às batalhas previstas
contra lobos ou gigantes, sombras,
ela vai deixando um rastro
semeadura
e agora lhe resta somente no pulso
tenso um suave seixo…