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As mil e uma manhãs de Valéry

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Os cadernos de Paul Valéry (1871–1945), juntamente com “o livro” de Mallarmé, compõem um dos mitos mais enigmáticos do lugar da escrita na literatura do século XX. Mas, diferentemente do “livro”, que se mostrou um pequeno e complexo universo de notas teatrais para uma cena poética, os cadernos de Valéry explodiram com as suas quase 27 mil páginas “do que em um livro não poderia caber” e que só agora encontram, com a sua disponibilização digital, um espaço viável de existência.

De certa maneira, a história de sua escrita e de suas tentativas de publicação, isto é, a própria variação de suas possibilidades, tornou-se o seu aspecto mais interessante. Eles começaram após uma crise existencial de Valéry com a experiência poética e buscavam a construção de um sistema de todas as “tentações” (as possibilidades, os limites) do espírito, incialmente implicadas em tudo que estava em jogo no ato poético. Aos poucos, o interesse pelo processo, mais do que a obra, foi fazendo com que eles se dobrassem sobre si mesmos e por muitos anos Valéry se dedicou quase que exclusivamente a escrevê-los.

Entre a tentação de uma sistematização em obra daquilo que é possível pensar (como se os cadernos fossem a “grande obra” valeriana) e o próprio questionamento da noção de obra pelo processo de escrita, esses textos também se tornaram uma espécie de “exercício espiritual”, um estranho diário em que Valéry, ao longo de mais de cinquenta anos, anotava entre as cinco e as sete da manhã, entre o fim da noite e o começo do dia, entre o sonho e a vigília, tudo aquilo que lhe vinha como questão: a própria escrita, a poesia, as sensações, o pensamento, o imaginário (especialmente um imaginário científico que constituía nesse âmbito privado uma excitante forma de pensamento), o desenho, os números… e mesmo as anotações mais banais, as preocupações do dia a dia, o assombro diante da irrisão humana e da violência da história.

Como bem notou Augusto de Campos em A serpente e o pensar, primeira publicação de passagens dos cadernos no Brasil, a experiência de lidar com um volume tão grande de escrita como a dos cadernos — que se confundia com o problema da subjetividade, da deriva infinita do pensamento e da memória — amalgamava-se na imagem do Ouroboro, da serpente mordendo o próprio rabo, da cobra mesmo sem saber se aquilo que ela comia (via, lia) ainda era ela mesma.

De fato, um dos grandes dramas da vida de Valéry foi a tentativa de organizar essa massa de escritos: “falta-me um alemão para terminar as minhas ideias”, ele escreveria, sem perder de vista a relação com o país vizinho com quem dialogar era, apesar das guerras, a única possibilidade para uma política do pensamento europeu. Ainda que como reflexo dessa política do espírito, o fato é que mesmo abortada a ideia de um sistema e com ajuda de uma secretária a partir dos anos 1920, o que Valéry conseguiu em termos de organização foi um agrupamento temático e a publicação de alguns livros que recortavam parte dessa experiência: Mélange (Mistura), Tel quel (Tal qual) e Mauvaises Pensées et autres (Maus pensamentos e outros).

Após a morte de Valéry, o CNRS publicou uma edição fac-símile tão monumental quanto problemática do que parecia ser a íntegra dos cadernos, mas que, por sua extensão e preço, assim como pela ausência de transcrição, notas, critérios claros e contextualização, tornou-se uma bíblia para especialistas e raros leitores curiosos (é possível encontrá-la na Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo e na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro). Seguiu-se uma edição mais amigável em dois volumes, na coleção Pléiade da Gallimard, a qual, aproveitando as tentativas de organização dos cadernos pelo próprio Valéry, apresentava-os por tópicos temáticos (Ego, Bios, Gladiator etc.). Apesar do seu indiscutível interesse, esses tópicos podiam produzir a inexata impressão de uma escrita fragmentária sobre diversos temas apartados, com aforismos autocentrados ou cujo enunciado parcial se projetasse uma totalidade, como no fragmento romântico alemão.

Nos últimos anos, um conjunto de pesquisadores produziu, também para a Gallimard, uma edição de peso, crítica e muito bem balizada que recobre em vários tomos os cadernos escritos de 1894 a 1915. Hoje, no site da Biblioteca Nacional da França, Gallica, é possível acessar a íntegra dos cadernos, retomando a experiência da edição CNRS. Um maior aparato crítico e de transcrição que possa aprimorar esse acesso digital está sendo atualmente elaborado pelo Obvil (Observatoire de la vie littéraire) da Sorbonne, sob a supervisão de Michel Jarrety. No fundo, essa dificuldade de meios apenas revela o quanto o conjunto dos cadernos só existe e hesita na fricção entre a experiência do escrever e as condições em que ela se desdobra, colocando em xeque o que entendemos por escrita, por obra, por livro, por pensamento, por experiência.

Inícios, fins e a multiplicação dos meios

Se, como dissemos, Valéry praticamente não publicou ao longo de vinte anos, de 1897 a 1917, essa recusa, ao contrário do que possa parecer, articula os cadernos e as obras projetadas, escritas e publicadas em uma dinâmica que se transformou ao longo dos anos e assumiu diferentes modos de sobredeterminar e de manter em tensão mútua a escrita pública e a escrita privada, a ponto de essa articulação se tornar uma das questões mais complexas da fortuna crítica valeriana.

Inicialmente, entre 1894 e 1896, a escrita dos cadernos se confundia com um canteiro de obras cuja força performativa e a liberdade do âmbito privado permitiram a formulação de hipóteses ousadas que buscavam suas vias de existência no mundo público e, por outro lado, momentos absolutamente conjecturais de um ato de escritura sugado pelo seu próprio engendramento. Mas antes desse desdobramento mítico dos cadernos sobre si mesmos, aquela forma de escritura encontrou caminhos profícuos de articulação com outros projetos, seja pela construção de personagens (que encarnavam os dramas desses modos de escrita, como no “esboço como método” em Leonardo da Vinci, ou pela recusa da escrita em busca de uma pura consciência como em M. Teste), seja pela resolução de problemas formais da construção dos versos (à sua maneira “matemáticos”), ou ainda em poemas esparsos e em outros ensaios. No interior da trama conceitual dos próprios cadernos também se produziram planos de consistência a partir de operações conceituais como a recursividade, a diferença de potencial, a modulação, a mudança de fases e suas forças implícitas. Elas buscavam relacionar as múltiplas camadas da experiência com a heterogeneidade dos interesses dos próprios cadernos.

Se, por um lado, era visível o quanto Valéry buscava captar o fluxo dessa escrita privada por essas figuras (personagens, ritmos e conceitos), ficavam evidentes os limites dessa recursividade (a conceituação das operações e as próprias operações estão sempre aquém ou além do movimento que se tenta reter). Seria possível capturar o próprio fluxo, o modo de ser de um ritmo, as forças sob as formas? Ou se estaria sempre à mercê — em uma espécie de mil e uma manhãs — de um novo pensamento, de um novo verso ou acontecimento que ressignificaria todo o campo de experiência? Estaríamos face a um mundo simétrico onde cada parte seria um fragmento de um todo coeso ou estaríamos diante de um caos determinístico, como teorizava o físico, amigo de Valéry, Henri Poincaré?

Se havia toda uma atração da física e da matemática como possibilidade de solução desses dilemas — e mais tarde da biologia —, a verdade é que a força dos cadernos reside no fato de eles terem mantido tenso o arco dessas questões. Mesmo quando se volta para a poética, especialmente durante a Primeira Grande Guerra — que o impeliu a um retorno aos ritmos da poesia como forma de sobrevivência — a “hesitação prolongada”, a capacidade de variação, de infinitização do ato, as miríades de singularizações são mantidas como um traço marcante em processo.

Claro que nesse período de escrita de “A jovem parca” e dos poemas do livro Feitiços, aproximadamente entre 1913 e 1922, crescem nos cadernos as preocupações com a linguagem, com a própria poesia, com o gesto do poeta e um retorno àquele número infinito de questões que vinham da relação entre a potência da dualidade de Baudelaire e sua redução lógica por Edgar Allan Poe (Baudelaire estava para Poe assim como Faraday estava para Maxwell), entre o imaginário e o sonho em Rimbaud e o cálculo e o controle do acaso em Mallarmé. Contracenando com os horrores da guerra, a poesia ganhava um estatuto de recusa e resistência, possibilitando outros modos de existência pautados na evocação, na hesitação, na sutileza, na multiplicidade, naquele campo de possibilidades do espírito que se forma entre o corpo e o mundo.

Terminada a guerra, o sucesso de “A jovem parca” (publicado em 1917), a republicação de Uma noite com M. Teste e Introdução ao método de Leonardo da Vinci, e o reconhecimento de Feitiços conferem a Valéry um lugar público que projeta seus escritos como uma espécie de poeta oficial de largo alcance internacional. Mas como disse Borges — e a visão que ainda persiste de Valéry como um formalista comprova — “a fama é uma incompreensão e talvez a pior”. Os anos 1920, os horrores da guerra e a tentativa de reconstrução da Europa contra a violência fascista levarão ao maior momento de cisão entre o escritor público e a escrita dos cadernos, uma vida mundana algo burguesa e as complexas demandas de sua escrita. Claro que o exímio conferencista e ensaísta — como vemos em Variedades, Pièces sur l´art e os inúmeros diálogos — não deixa de ter relação com uma fina depuração da démarche dos cadernos, mas a relação entre a escrita pública e a privada nesse momento se torna mais simbólica, como se buscasse uma solução elegante para aqueles problemas dentro de um contexto muito próprio de enunciação.

Ao longo do período entreguerras, essa cisão entre os dois eixos da escrita valeriana se agudiza, à medida que o trabalho com os cadernos se intensifica e se avoluma cada vez mais, produzindo um efeito duplo: por um lado, eles reforçam a sua consistência própria e o contraste com as obras publicadas, confirmando-se como vetor de elaboração de uma poética toda outra, heterogênea àquela formalista pela qual Valéry era conhecido publicamente dentro do campo literário francês; por outro lado, nos últimos anos de vida do poeta, já durante a Segunda Guerra, essa intensificação dos experimentações matinais-sigilosas de escrita e pensamento transbordará mais explicitamente sobre as intervenções e os textos públicos, como o Meu Fausto ou o curso de poética dado pelo poeta no Collège de France entre 1937 e 1945.

Esse transbordamento dos cadernos na esfera pública implicará igualmente uma maior explicitação de questões políticas na produção poética valeriana. Afinal, é “sub hostium manu”, com Paris invadida pelos nazistas, que o poeta francês vai começar, no verão de 1940, a composição de suas peças fáusticas, desde o início dos anos 1930 anunciadas vez ou outra nos cadernos. Inacabadas, as duas partes do Meu Fausto — “Lust” e “Le Solitaire”, publicadas em 1941, farão parte de um ciclo mais amplo de peças dedicadas à dupla Fausto-Mefisto, retomada com o objetivo de pesar o que é a Europa, no momento em que ela expira “in media insanitate”.

Até a morte de Valéry, em 1945, esse conjunto de esboços será continuamente trabalhado em estreita vinculação com as experimentações e os problemas delineados tanto pelos cadernos quanto pelas anotações e notas escritas para as aulas do curso de poética. O arco final dessas cinco décadas de escrita privada se verá então envolvido na tarefa de pensar os dilemas da ciência moderna em aceleração cega (“entramos no futuro de costas”) e os dilemas da esgotada fidúcia das instituições políticas da Europa oitocentista, confrontando tais impasses com a hesitação poética prolongada, em seu esforço de escapar tanto às explícitas imposições fiduciárias quanto às tácitas coerções técnicas da modernidade. Trata-se então de repensar o mito fáustico (no campo literário, bem como as moedas e os pactos em vigor na comunidade europeia) que traz em seu bojo uma encenação das questões da escrita dos cadernos e é também um modo de encenar os limites de suas “tentações”.

Uma poética dupla: entre formalismo e voz, as publicações e os cadernos

Tudo somado, a relação densa e historicamente metamórfica entre a poética privada dos cadernos e a poética pública de Valéry desafia ainda a interpretação. Especialmente no período de maior reconhecimento de Valéry a partir dos anos 1920, vê-se, por um lado, o poeta que consagra aquilo que William Marx chamou de vulgata do formalismo em literatura: distinção, autonomia e autorregulação dos textos literários; de outro, o poeta que desde o início da escrita dos cadernos está em busca do corpo, da sensibilidade e de suas ressonâncias sobre o pensamento, dos contrastes do ser vivente e pensante, em busca, enfim, da “linguagem saída da voz”, mais do que a rarefação formal de uma “voz da própria linguagem”, num gesto cheio de reticências acerca de uma desaparição elocutória do poeta.

Nem totalmente separadas, nem amalgamadas ou interligadas como partes de um mesmo edifício teórico, as “duas poéticas de Paul Valéry”, como diz William Marx, ensejariam uma implicação emaranhada e equívoca, ou melhor, uma poética ao mesmo tempo dupla (formas e forças) e inacabada, pois continuamente mobilizada pela fricção de seus dois vetores heterogêneos. Vale notar o que significaria essa heterogeneidade: a poética dos cadernos não chegaria a negar a poética dos ensaios públicos — mesmo que para sintetizar uma concepção contraditória e depois uma reconciliação possível ou não entre elas — nem a complementá-la, como se fosse o caso de construir dimensões mais avançadas e esotéricas de uma mesma doutrina poética; se ela é heterogênea à segunda, é porque produz infinitas formas de articulação, aproximação e afastamento entre elas, ainda quando envolve trabalhar com os mesmos problemas e a partir de outros conceitos, outros graus de liberdade, outra preocupação com a comunicação, outro nível de precisão e, principalmente, com outras escalas de grandeza.

Essa relação intrincada da poética dupla nos remete novamente à dificuldade que o próprio Valéry enfrentou diante daquele oceano de folhas, cadernos e pensamentos, mareando-se nele ao tentar lhe criar balizas de orientação. Não seria diferente com a seção “Poïética” da edição Pléiade, que traduzimos e da qual apresentamos algumas passagens. Por um lado, ele se articula com as outras seções, dentro de um sistema de tópicos que teve muitas formas, combinações e sequências esboçadas pelo poeta ao longo do tempo. Naquela adotada por Judith Robinson-Valéry, organizadora dos dois volumes publicados pela Gallimard, a “Poïética” surge ao final de um arco dedicado à reflexão sobre todo ato criador e que passa pelas matemáticas, ciências, artes e estética, para então ser seguido de uma particularização, que levará essa reflexão primeiro ao campo específico da “poesia” — tópico seguinte — e, depois, às composições concretas esboçadas nas seções “poemas e pequenos poemas abstratos”, “temas” (sujets) e “homo”.

Por outro lado, como lembra a própria organizadora, muitos dos textos marcados com as letras π ou P e reservados, portanto, para a “Poïética”, tiveram posteriormente acrescida, por exemplo, a marca “Gl.”, de Gladiator, expondo assim a imbricação entre poética e condicionamento (dressage) do espírito. Esses e outros emaranhamentos indicariam que a escrita dos cadernos estabelece, no mínimo, uma tensa distância em relação à tradição literária do fragmento concebida sob o modelo do romantismo alemão: onde os textos fragmentados de Novalis e de Schlegel buscam se fechar sobre si mesmos e remeter a fragmentação de seu enunciado vernacular à totalidade na qual convergem, os cadernos de Valéry apresentam um gesto duplo: por um lado, seus fragmentos se reenviam uns aos outros, com termos e definições particulares e continuamente reformulados, em redes e ligações parciais que prolongam o inacabamento de uma enunciação anterior. Trata-se aí de uma infinitização que atinge o próprio ato enunciativo de cada fragmento, fazendo-se em contato direto com e contra o acaso e as múltiplas possibilidades de ressignificação da experiência. Por outro lado, em paralelo mais ou menos constante com esse modo de fragmentação, às vezes no mesmo caderno, às vezes em outros manuscritos e datiloscritos, entra em cena um gesto que procura tocar o nó desse campo heterogêneo de questões e dilemas buscando formular fragmentos mais breves e singularmente acertados. É como se, portanto, os próprios cadernos internalizassem e modalizassem nesse gesto duplo algo da relação tensa que eles entretecem com a obra publicada.

Por isso, visando trazer ao leitor a experiência dupla dessas passagens e conexões parciais entre práticas, saberes e experimentações heterogêneas do “ser vivente e pensante”, sem com isso abrir mão das balizas firmadas pela seleção da Pléiade, apresentamos alguns fragmentos da seção “Poïética” mais arrematados e centrípetos, na esteira daquele vetor de concentração e organização das tensões, junto com outros trechos poïéticos, que foram traduzidos junto de seus prolongamentos e questões afins na vizinhança dos manuscritos (complementos transcritos entre “{}” e consultados na edição fac-similar ou na plataforma gallica.fr). Um exemplo de como textos selecionados na edição Gallimard se articulam com esses escritos vizinhos e afins é dado logo no segundo fragmento que apresentamos aqui: “Escritor — é tomar posição em um ponto de onde se vê à direita toda a linguagem, à esquerda todas as coisas”. Por certo, nota-se logo que a tentação de tomar certas frases dos cadernos isoladamente realmente não foi pequena. Porém, o fragmento segue e diz que, tão logo dada experiência emerge do meio das coisas, uma palavra ou grupo de palavras é imediatamente destacado do conjunto da linguagem. O escritor deverá saber recursar essas expressões imediatas, que tendem a exprimir apenas as relações mais habituais e cômodas que temos com o mundo, a univocidade das crenças e convenções inconscientes. Com essa recusa, abre-se a possibilidade de experimentar uma infinidade de maneiras de acoplar a decupagem das coisas e a decupagem das palavras, de hesitar “na pluralidade dos signos ou das formas possíveis”.

Ora, na mesma página desse caderno, encontramos um fragmento sobre a relação entre a percepção e a memória, seu tempo de maturação até a nitidez, ali marcado pela diferença entre a velocidade de nosso próprio caminho de associações e o desenvolvimento interno da própria impressão. Não é difícil notar como os dois trechos se interligam, apesar de um tratar de poética, o outro de psicologia (mais um tópico da edição Pléiade). Aqui, eles são restituídos em sua transição silenciosa, gesto que repetimos em alguns outros poucos fragmentos, visando cumprir uma tarefa que reconhecíamos ser inteiramente aporética, definida por uma espera dupla, se não múltipla e contraditória: uma publicação que seja legível nas condições e contextos particulares do Brasil sem perder a força que tais textos retiram justamente da resistência a toda legibilidade, das fricções suscitadas na passagem para a esfera pública.

Uma arte das passagens

Esses dilemas poéticos, políticos e editoriais nos levaram a destacar alguns pontos-chave das passagens da seção “Poïética”, por meio de uma seleção dentro da seleção que compõe esse tópico da edição da Pléiade. Essas passagens são aqui ocasionalmente articuladas com textos vizinhos e afins dentro do fluxo de escrita dos cadernos. Elas dizem respeito ao ato de escrita, mas não apenas ao gesto de escrever, mas sim às condições de possibilidade daquilo entendemos por escrever. O mundo sensível, o modo de ser da linguagem, as experiências heterogêneas de escrita e leitura. Enfim, os modos de vida que transbordam desse exercício do espírito intrinsecamente ligado à sua prática. A experiência dos cadernos lembra aqui a figura de Leonardo da Vinci que, na visão de Valéry, era um filósofo, pois não separava o pensar do fazer.

Se, como vimos, ao longo dos anos se formula nos próprios cadernos um grande exercício de invenção conceitual, um dos interesses cruciais desses conceitos é que eles procuram dar conta das próprias transformações (das quais os próprios cadernos fazem parte!). Isto é, pensando os diferentes mundos sensíveis, as diferentes práticas, as diferentes fases, as diferentes escalas, Valéry procura pensar o modo de relação entre eles, a maneira como se combinam e como esses atravessamentos são o próprio modo de ser da linguagem e do pensamento.

Entre os conceitos que trabalham essa arte das passagens, chamamos a atenção nesta seleção para a modulação. Na reflexão e no fazer artístico de Valéry, essa palavra nomeia “o segredo mais fino da arte”, o enigma capaz de combinar ação e matéria, nó emaranhado cuja opacidade põe em movimento a escritura e o pensamento valeriano por todo o período de escrita dos cadernos. Modular, para Valéry, é efetuar passagens hesitantes e mais sutis entre diferentes maneiras de ver, não para sintetizá-las em algo inespecífico, nem para melhor isolá-las cada uma em sua especialização, mas para encontrar combinações “imprevistas, vivas e variáveis” entre elas, onde “‘potências’ tão heterogêneas quanto sound and sense etc.” se conjugam “com vistas à formação de um sistema transitório e completo dotado de existência estética”.

Longe de delimitarem o campo de uma área de competência específica e autônoma, som e sentido seriam modelos (“etc.”) de níveis heterogêneos da experiência que então se articulam e se sustentam em variação recíproca, na fricção entre ser e convenção, dado e construído, experiência que longe de se fundamentar num parti pris unívoco e soberano do qual se deveria exilar toda contradição lógico-discursiva, prolonga-se necessariamente em uma contradicção enunciativa (“não há contradicção sem dicção”) que refina a ligação entre soberanias heterogêneas, cada uma delas com seus próprios materiais, demandas e esperas: som, sentido, sintaxe, ritmo, rimas, afetos da voz etc. — o poeta como “político profundo” entre as potências mutuamente implicadas e reciprocamente irredutíveis do Corpo, do Espírito e do Mundo, cujas escalas e estruturas se sobredeterminam e se hetero-analisam. Nessa experiência, a linguagem seria pensada como um fazer, o pensamento, como uma poïésis e a poesia existiria “tão logo se acentuasse a [contra]dicção”, para modularmos a célebre frase de Mallarmé, ensejando os múltiplos procedimentos poéticos — escritos, orais, visuais, sonoros, em prosa, em verso, sintáticos, conceituais etc. inscritos no campo de atritos entre discurso e dicção, enunciado e enunciação.

Nesse sentido, para Valéry, “a poesia — e digamos: o pensamento — só é possível porque uma representação qualquer jamais pertence a um único e mesmo sistema” e a melhor maneira de pintá-los é restituir sua “multiplicidade fundamental”. O ato poético se coloca então à escuta da variação dessas combinações heteróclitas, que levam toda representação linguística a participar de mais de um sistema de valor e mais de uma rede de oposição: uma cadeira suscita uma fogueira por causa de sua matéria, uma escada por sua forma, um aríete por certa disposição e movimento possíveis; sua ideia pode sugerir coisas tão diferentes quanto construção, equilíbrio, alavanca.

Nessas variações combinatórias, a hesitação prolongada suscita anatomias microscópicas do contínuo, números mais sutis (N+S) que se desdobram da fusão dos heterogêneos, com suas escalas heterogêneas de grandeza. Contra o rigor quantitativo e estatístico promovido pelas novas ciências, saberes e técnicas que o poeta vê surgir no seu tempo e contra as coisas vagas sustentadas apenas sobre a fidúcia extorquida pelas instituições político-sociais da Europa oitocentista, Valéry persegue um rigor modular, quase-qualitativo, quase-quantitativo, prolongado na direção da decimal extrema. Trata-se de se equilibrar entre espírito de finesse e espírito de geometria, de ser rigoroso tanto com as qualidades quanto com as quantidades, hesitando sutilmente entre suas combinações virtuais, num campo vibratório onde os traços discretos de categorias linguísticas e conceituais hesitam em ressonância com pulsações onidirecionais dos diferentes planos qualitativos, as estrias do articulado deslizam sobre as palpitações do contínuo, revelando, num poema, os matizes de um sentido que variam com nuança do tom de uma meia-voz, ou, num quadro, os detalhes da experiência de um objeto latentes no jogo de luz e cor do qual participa.

Foi, portanto, em torno desses eixos que selecionamos, dentro do conjunto da “Poïética” da edição da Pléiade dos cadernos, os fragmentos para esta edição da Revista Rosa. Seja ao adentrar o fluxo de experimentações heterogêneas, recuperando certas transições entre práticas e saberes ao redor de um fragmento específico, seja ao retomar alguns momentos de elaboração mais contida e concentrada dos instrumentos conceituais que destacamos, o percurso de leitura por aqui delineado deve poder, de algum modo, trazer à tona algo do que impulsionava Valéry à escrita dos cadernos, como se aquelas mil e uma manhãs valerianas de certa forma se prolongassem agora na experiência interpretativa do leitor. Nesse percurso carregado de hesitações e modulações, entre fluxo e corte, as forças e as formas, o contínuo manuscrito e o texto editado, esperamos ter encontrado o afinamento que permitirá ao leitor se lançar, sem se marear ou se afogar, nesse “mar, mar sempre recomeçado”.


Valéry — Poïética (passagens escolhidas)

O verdadeiro escritor é um homem que não encontra suas palavras. Então, ele as procura. E, procurando, ele as encontra melhor.

(1902, II, 669)

{A memória perceptiva serve para amadurecer ou completar uma impressão e para levá-la de seu começo à sua nitidez por um caminho em nós, com uma velocidade nossa — em vez de esperar seu desenvolvimento próprio.

Toda sua utilidade vem de sua velocidade}

Escritor — é tomar posição em um ponto de onde se vê à direita toda a linguagem, à esquerda todas as coisas –

E se um assunto é dado — (um tema) tomado em meio a essas coisas, então vejo que esse dado desperta imediatamente certo grupo de palavras no conjunto completo das palavras.

Esse grupo é aquele em que qualquer um — retiraria, naturalmente e sem mesmo se aperceber disso, elementos para exprimir o dado.

Mas, escritor, você deve rejeitá-lo — e fazer o difícil. Você deve saber antes de tudo, ou pressentir — que tais palavras necessárias, em aparência e habitualmente, designam apenas uma subdivisão particular das coisas, um tratamento das impressões tomadas de um modo específico, e não as coisas mesmas.

Para que haja palavras é preciso uma fixação das coisas — mas é sempre possível fixá-las e decupá-las em um número ∞ de maneiras.

(1905–1906, III, 883)

Maré grande — Vista do Cassino de Granville.

Dança geral — atônita. Tola em suma — Você não irá mais longe. E em tal hora todos esses demônios vão deitar.

Mas sonho com a lição de literatura do eterno estudante descrevendo uma tempestade.

Todas as prováveis palavras e metáforas desencadeadas. O que seria apenas um desfile de frases. Mesmo um crescendo de um [Victor] Hugo — não valeria a pena.

No lugar de — minhas queridas equações e relações possíveis (invocadas), — escrever isso analiticamente — não impressões e retóricas combinadas — mas (por exemplo) justapor às verdadeiras impressões (— supressão do pensamento, sua substituição pelo movimento marinho atordoante e pelo vento frio e teso, os ouvidos entupidos e congelados, a dispersão por tantos acontecimentos impossíveis de serem seguidos; personalidades breves de ondas, desordem permanente; medo de que a maior onda já tenha passado e se quebrado — E as hipóteses: ser jogado lá dentro — e ali perecer)

justapor uma verdadeira construção — entendendo aí precisamente o contrário de uma série plana — mas: série aparente e realmente uma identidade —

{Todo espetáculo que vejo é como limitado de um certo lado por mim; balizado em algo pelo meu ser; interrompido em uma linha que me é fisicamente interior e essa fronteira varia como aquela do mar, entre limites —

E todo espetáculo que vejo é como provido, bordeado, acabado, completado por mim em atos hipotéticos, linhas traçadas, contatos estabelecidos, saltos e pulos de mim mesmo entre aquelas coisas; eu estou no fundo desse abismo e sobre esse cume, sobre a crista da onda, eu perco o pé, sou amigo, irmão desse desconhecido — eu sou ele —

— O que chamam de espaço é apenas um modo desse acabamento imaginário da vista — restrição de prolongamentos e prolongamentos}.

(1912. I’ 12, IV, 820)

A poesia — e digamos: o pensamento — só é possível porque uma representação qualquer jamais pertence a um único e mesmo sistema, salvo se ela for abstrata e então não se trata mais de representação. Tudo o que é visível e imaginável é, por isso mesmo, tudo menos uniforme.

De onde se segue que o melhor meio de pintar alguma coisa é restituir aquilo pelo qual ela é multiforme, essa multiplicidade fundamental de um objeto que admite tantas interpretações, respostas, “homens” recíprocos cada um a ela…

(1916, VI, 147)

O segredo da abundância de certos espíritos está na propriedade maravilhosa de utilizar qualquer coisa, qualquer incidente e de assimilá-lo de algum modo, de incliná-lo a seu objeto, por mais distante, por mais indiferente que ele pareça. Tal como tudo serve de arma para o homem que é atacado.

Esses espíritos parecem extrair inesgotavelmente de dentro deles mesmos, apesar de não serem mais do que um mercado de trocas infinitamente multiplicadas.

Um imbecil diz: A é A. Essa cadeira é uma cadeira. Mas ela é escada, fogueira, aparelho de ginástica, aríete, liteira — e a ideia de uma cadeira é construção, equilíbrio, alavanca, armação, escora; em tal poema, bastará pôr uma cadeira, no lugar e no momento necessário, para fazer imaginar a personagem; para dar um grande efeito…

A é A, a fórmula do tolo. Ela é somente uma relação lógica.

(1916, VI, 197)

Escritor — o violinista, o ouvido colado na madeira, e conduzindo seu amoroso arco, se faz um com o instrumento e com o próprio som. O instrumento de madeira se perde, se esquece, cria-se entre o som e o homem uma troca direta. Trata-se de um circuito fechado, um equilíbrio entre as forças dadas e as sensações recebidas. Ele recebe seus atos em seu ouvido. E o ciclo tem um sentido — desejo e ouvido. É um Narciso, esse violinista. Assim em todas as artes — a inspiração é o estado de troca entre energia… Ressonância do prazer.

(1920–1921. M, VII, 668)

Descrição — os espetáculos mais familiares são os mais estranhos caso se deixe passá-los aos seus olhos — e somente aos seus olhos. O que o olho vê único e estranho e de uma só vez, o espírito faz ordinário e conhecido — ou seja, metade invisível. —

O que o olho vê é de algum modo infinitamente particular.

(1924. Γάμμα, X, 170)

{Uma frase é uma espécie de ato onde há algo de convencional, de singular ou individual, de humano, de circunstancial. Esse ato é um movimento geral d}

Escrever, —

Resolver uma nebulosa interna

(1926, XI, 356)

O segredo ou a exigência da composição é cada elemento invariante estar unido aos outros por mais de um elo, pelo maior número possível de ligações de espécie diferente — e entre outros — a forma e o conteúdo, que são tão elementos quanto personagens ou temas — (nessa fase).

Pois, no âmbito mental do criador a atenção à forma e a atenção-personagem (por exemplo) são da mesma substância.

Em outras palavras, nesse âmbito de tempo vivo, há… equipartição da energia! — detalhe, conjunto, meios e fins, um eu e as ideias, palavras, raciocínios, matéria e atos —

tudo está em presença, em trocas mútuas e modificações recíprocas.

E é essa simultaneidade desordenada de coisas mentais, essas atenções cruzadas, esperas tensas e distensões que constituem o meio atual de onde provêm, vez ou outra, os elementos “perfeitos”, quero dizer, aqueles que se parecem com X — que é, ao mesmo tempo, seu Juiz e sua criação — devendo ser conservados e capazes de vida ou de utilidade ulterior.

Mas o fato mais notável observado nesse estado é essa identidade ou igualdade de geração e de tratamento ou manuseio que afeta imagens ou ideias — de escalas e de espécies as mais diferentes em sua ordem exterior de existência (e foi por isso que disse antes desordenada). Aqui, a parte é tão grande quanto o todo, o fim precede o começo, a conclusão se adianta sobre as premissas, a forma engendra a matéria, o silêncio e a ausência engendram seus contrários —

e a vista (percepção) se identifica (no instante) com a organizaçãoIntuição.

É tal fase que é o princípio supremo das combinações mais gerais, — a fusão dos heterogêneos — N + S.

— As ordens de grandezas são negligenciáveis nessa fase.

— Nessa fase as substituições atingem o máximo de generalidade. Por ex[emplo]: algumas conservarão apenas o valor energético por equivalência — ou talvez somente o valor de excitação-intervenção

{

O inacessível em razão de pequenez; e o inacessível em razão de imensidade explicam tudo.

O segundo permitiu formar leis simples}.

(1928, XIII, 273–274)

Distante, acabo de desenhar isto, iniciado por traços que figuraram as arestas de um cubo; depois um outro — e suas sombras. Esses cubos se tornaram blocos; esses blocos ofereciam (no mundo tangente à minha presença) a ponta de um porto — ou seja, mastros. E as faces iluminadas solicitavam o mar ao fundo; e os blocos, em sua veracidade, exigiam uma ponta de quebra-mar. E de exigências em exigências, significativas ou sensíveis, o sonho sobre o papel se fabricava. Mas sem o papel…

(1931. AP, XV, 249)

{A clareza de uma linguagem tem por medida o desvanecimento imediato das sensações — figuras ou sons — que a constituem fisicamente e a substituição delas por atos ou reflexos ou imagens e atitudes, nítidas.

Quanto mais prontidão, mais o resultado é nítido, “uniforme” — e mais clara é a linguagem. Ela não deixa resíduo.

Ora, toda a poesia reside no resíduo.

“Uma rosa de outono etc.”.

Isso não tem nenhum interesse… afirmação gratuita}

(1932. Sem título, XV, 794)

Diz-se (de Mall[armé] ou — de mim) — quantas indagações e obscuridades — e para envolver — o quê? — quase nada de pensamento. A noz é dura, seu conteúdo, um pouco de água. O cofre é quase inviolável — aço, fechadura tripla, e lá dentro — um botão de calça —

— E tudo isso é verdadeiro — na medida em que se é um espírito à moda moderna — para quem (consequência remota de Platão e do Xs [cristianismo]) espírito e corpo, fundo e forma, sentido e símbolo são coisas 1º opostas, 2º exclusivas umas às outras e 3º não equívocas — (quero dizer, sendo uma determinada, a outra também é. O corpo C tem somente um “espírito E”; o espírito E tem somente um corpo C. O sentido Σ tem somente uma forma φ, e a forma φ tem somente um só sentido Σ, como os dois extremos de um bastão).

Mas isso não foi sempre verdadeiro e não é verdadeiro no estado de geração. Assim, o trabalho mental não automático é hesitação na pluralidade das significações ou dos signos, das formas possíveis etc.

É uma crença, ou convenção inconsciente, a univocidade —

(1932. Sem título, XV, 799–800)

Arte — A operação do artista consiste em tentar encerrar um infinito. Um infinito potencial em um finito atual.

(1935, XVIII, 44)

Não suporto essa expressão de duas cabeças à qual a autoridade de seu autor deu tanto crédito: Espírito de geometria — Espírito de finesse — e que é detestável. Pois uma expressão que se cria é um instrumento, e não há razão para criar um novo que atrapalhe as mãos e nos obrigue a buscá-lo para nos servir, ao invés de nos servirmos dele prontamente em nossas pesquisas.

Opor finesse à geometria exige dar à primeira um sentido que não é o seu e que lhe seja inteiramente moldado pela intenção de opor qualquer coisa ao espírito de geometria (supostamente conhecido). O arbitrário intervém e P[ascal] teria zombado disso se o encontrasse em um jesuíta.

A geometria exige, pelo contrário, muita finesse — no sentido ordinário do termo, e toda a sutileza do mundo nela se exerce — P[or] ex[emplo], nas anatomias microscópicas do contínuo e nos problemas do cálculo de probabilidades.

Mas, enfim, sigamos o mau hábito de refletir sobre esse falso contraste — cuja raiz é a observação banal de que certas pessoas excelentes em geometria parecem inferiores nas letras ou na manipulação dos homens; e outras, que são grandes ou consumados poetas, não compreendem nada dos raciocínios mais simples da geometria. Essa divisão dos espíritos deve ter incomodado Pascal que, orgulhoso de suas faculdades matemáticas desde os 15 anos, viu-se mais tarde obrigado a reconhecer os méritos de quem estava fechado para a ciência das grandezas.

— Ora, o exame desses dois tipos mostra logo que, se Espírito é compreendido como modo de transformação de dados, o primeiro gênero — o Espírito de geometria — consiste na prática da transformação que conserva as significações das palavras, e que combina os signos sem alterá-las, com uma liberdade que depende de não se contestá-las ou retomá-las. Mas o zelo com essa separação, com essa conservação tão absoluta, reage sobre a liberdade da qual falava — interdita tanto quanto permite — pois é preciso ao final reencontrar intactas as definições convencionadas de início.

Além disso, antes de poder proceder desse modo e caso se queira fazer o mesmo com um novo problema, é necessário se ocupar com a criação dessas definições que serão conservadas —

Aqui reina o arbitrário. É aqui que se precisa de uma grande finesse para isolar noções muito veladas, fazer distinções etc. Isso é visto nos desenvolvimentos da fís[ica] matemática e, em suma, em t[odo]s os problemas nos quais é necessário inicialmente transformar representações antes aparentemente incompatíveis com o cálculo — etc. etc.

Ali, as comparações, os parti pris, as imaginações, analogias abundam.

Mais adiante, as substituições não dedutíveis dos problemas — mas que, uma vez encontradas, permitem resolvê-los — também solicitam um tipo de finesse, de previsão.

De tal modo que o contraste entre esp[írito] de geo[metria] e o de finesse parece real apenas a respeito de um arco da sequência mais geral de transformações do pensamento. Alguns só se movem entre A e F, outros entre B e O, mas a série vai de A a Z. É possível que esses arcos se excluam, e isso é até verdade, mas se excluam como as duas maneiras de ver do mesmo olho ou os dois atos da mesma mão.

A verdade é que uns ficam mais à vontade com esse ato, outros com aquele — um é mais forte, o outro é mais rápido — etc.

Mas o particular disso tudo é que, submetendo a mesma proposição a um e a outro, ocorre de cada um deles acionar e não acionar senão sua aptidão mais eficaz — e correr em disparada

(1936, XIX, 403–405)

Modenatura.

Passagens e modulações — O segredo mais fino da arte — e marca da arte primorosa.

Quem o ignora é uma besta — mesmo que poderosa. Pois tal segredo liga o dedo ou mão que passa à forma da luz-sombra.

A natureza vivente é invencível nisso. Ela sabe erguer uma haste, abrir um orifício, desdobrar as extremidades de um canal — prolongar um órgão externo, encravar uma esfera.

Transições.

Mas esse problema é profundo — pois não é outro que o da combinação entre ação e matéria (no sentido relativo de coisa que se conserva) ou o da oposição e combinação entre construção e formação (cf. signi[ficativo] e formal. Ainda não (depois de 44 anos) desembaracei esse nó).

(1937. Sem título, XIX, 824)

Poét.

O feitiço da arte reside p[ara] mim nas inúmeras maneiras de ver a mesma coisa e de conceber uma pluralidade de tratamentos possíveis.

Isso é verdadeiramente “filosófico” e, naturalmente, os filósofos fazem justamente o contrário, esforçando-se para encontrar uma expressão única e exclusiva! O que é bom p[ara] o médico por causa dos meios de ação — Mas o pensamento e a produção se afastam disso. “O erro”, os mitos estão entre seus bens e acréscimos legítimos.

(1937. Sem título, XX, 331)

{Æsthetica Mea (Grande Arte)

— Modulação. Essa ideia-imagem me deixou apaixonado — há 40 anos. Um modelo é a passagem de estação em estação.

Mas a verdadeira noção pertence à sensibilidade — passagem insensível por uma sucessão composta não contínua e não descontínua; mudança sensível depois que ela se produz.

Evitamento dos limiares. A voz. O galbo do corpo.

— Obras “intrínsecas” que têm seu […] nelas mesmas; não exigem nada senão de sua estrutura.

— Obras das quais um dos constituintes a priori é a duração de consumo.


π

Os estudos cultivados sobre a língua e a poesia são divididos entre fonética, gramática, estilística, linguística. — Tudo isso é perfeitamente inútil ou inutilizável (salvo a[lguns] resultados etimológicos —).

  1. Eles acreditaram que o objeto era divisível.

  2. E não postularam seus próprios problemas (O que é a regra em psicologia… e em filosofia. O que você quer?). Trata-se de análises vãs, estatísticas paralelas (e que jamais se articulam). Nada mais cômico do que a prosódia separada — e outros constituintes observáveis da obra, cada um por si [chacun son homme], quando o problema (se há um) é a combinação deles.

Problema que não poderia ser outro senão o como de “potências” tão heterogêneas quanto sound and sense etc. se conjugarem com vistas à formação de um sistema transitório e completo dotado de existência estética.

Eles acreditaram que era possível separar com fecundidade fatores que existem somente em combinação e por meio dela.

Não há nenhuma razão para não contar as letras — etc.

As obras de arte não têm outro interesse que 1º voluptuário (consumo) 2º técnico (produção). Mas, sob esses dois aspectos, elas são indivisíveis e, ademais, são também inseparáveis, de tal consumidor e de tal produtor.

O que se pode legitimamente tentar é sensibilizar o primeiro e fornecer armas e meios ao segundo.

O resto é falsa ciência — trabalho inútil.

Quanto à “crítica semântica”, ela é um tecido de hipóteses e de explicações imaginárias — posso vê-lo por minha experiência com meus poemas!

P[or] ex[emplo], com “Os Passos”, pequeno poema puramente sentimental ao qual se atribui um sentido intelectual, um símbolo da “inspiração”!

O vício dos explicadores é o seguinte: eles partem do poema feito — e supõem uma fabricação que partiria da ideia ou resumo feito por eles após a leitura da obra.

Essa então se traduz em um esquema intelectual — atribuído ao poeta, pessoa supostamente encarregada de traduzi-lo em versos, conservando-o da melhor forma possível — como se ele fizesse uma composição escolar — com um plano ou uma vontade de expressão fixa — ao passo que, na verdade, ele busca e deve buscar apenas o que lhe parece eficaz poeticamente em cada momento. —

Toda análise é vã. Além disso, é o instante que seria preciso considerar.

Mas seria necessário inicialmente apreendê-lo.

Quanto à parte musical, o simples projeto de considerar separadamente os ritmos e os sons que os constituem é insensato — (e mesmo os sentidos provocados por eles).

Ora é o primeiro, ora é o segundo desses constituintes que se faz o motor, o instigador, o excitante. A necessidade instantânea passa de um ao outro

{Tudo isso é confundir o produzir e o fazer que na fabricação da obra se sucedem, se entreajudam, se entrelesam a cada instante. O fazer corresponde muitas vezes a uma parada do produzir e se reduz muitas vezes a uma multiplicação de produzires diante do obstáculo ou diante do nada mental}.

(1944. Sem título, XXVIII, 426–428)