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As brechas entre a crise do neoliberalismo e a volta do Estado

um comentário sobre O interregno e a pandemia, de Fernando Rugitsky

Publicado no auge da pandemia, o ensaio de Rugitsky1 possui uma necessária ousadia, rara entre as contribuições recentes de economistas brasileiros. O texto não apenas enfrenta o tema do neoliberalismo — conceito intricado e comumente estigmatizado —, mas o faz a partir do reconhecimento de que o fenômeno se encontra em crise, sugerindo, não obstante, que sua superação é iminente. Diante do chacoalhar das estruturas econômicas produzido pelo impacto do coronavírus, Rugitsky propõe ser possível vislumbrar uma alternativa histórica: “esse novo pode mais uma vez assumir a forma de um capitalismo de Estado”.

Por um lado, é verdade que o argumento do “novo capitalismo de Estado” encontra uma razão de ser na experiência histórica recente. Como demonstrado por Rugitsky, após uma década de crise econômica e política, o impacto produzido pela pandemia fez ressurgir o papel do Estado enquanto instituição necessária à manutenção da acumulação de capital. Na contramão de uma agenda neoliberal, vários governos conduziram estatizações de empresas privadas, intervieram na estrutura produtiva, arcaram com os custos dos empresários e forneceram auxílio à classe trabalhadora. Mesmo que sob uma orientação política ainda em disputa, parece razoável assumir que, uma vez suposta a crise hegemônica do neoliberalismo, sua substituição possa ocorrer por meio de uma renovação da atuação do Estado no âmbito econômico.

Por outro lado, todavia, a hipótese do “novo capitalismo de Estado” está fundamentada em fortes premissas, as quais merecem um cuidado específico. Uma delas é a pressuposição da existência de uma crise hegemônica do neoliberalismo. Outra, pré-condição da anterior, é a definição latente do próprio fenômeno do neoliberalismo. Para que seja possível supor um “novo capitalismo de Estado”, é preciso não apenas que o neoliberalismo seja definido em termos capazes de refletir sua crise hegemônica, mas também que tal definição forneça sentido histórico à hipótese de que a sua superação passa por um fortalecimento do Estado. É com relação a esses pontos que o ensaio de Rugitsky merece ser retomado.

Sobre a definição de neoliberalismo, é certo que Rugitsky não endossa uma interpretação economicista do fenômeno, reconhecendo sua complexidade para além da “retórica do Estado mínimo”. A ênfase do argumento, entretanto, se direciona para uma descrição dos efeitos econômicos e políticos da crise de legitimação do neoliberalismo, o que acaba preterindo um tratamento mais minucioso do conceito. Embora tal descrição seja esclarecedora, ela não é capaz de livrar a interpretação da necessidade de uma conceituação: a depender da definição de neoliberalismo adotada, a hipótese de “um novo capitalismo de Estado” adquire maior ou menor plausibilidade. Supondo, por exemplo, que a definição latente de neoliberalismo restrinja o fenômeno às formas institucionais de gestão macroeconômica, Rugitsky tem um ponto ao conceber o capitalismo neoliberal em oposição histórica às “economias mistas do ‘consenso keynesiano’” do pós-guerra. Como decorrência da mesma lógica, é factível que a crise do neoliberalismo seja superada por meio de “um novo capitalismo de Estado”.

Entretanto, a mesma situação não parece vigorar quando considerada uma definição mais ampla de neoliberalismo, como é o caso daquela proposta por Dardot e Laval (2016).2 Para os autores, o neoliberalismo é mais do que um conjunto de políticas, de práticas ou de instituições. O conceito se refere a um fenômeno estruturante do capitalismo contemporâneo, que representa a racionalidade própria desse momento particular da acumulação de capital. Em termos macro, o neoliberalismo propõe uma forma-síntese entre mercado e Estado, em que o primeiro se encontra “em construção” por meio de regras e práticas instituídas pelo segundo (Dardot e Laval, 2016, p. 377). O fundamento dessa relação é a promoção e a garantia da concorrência, a qual também é introjetada no próprio Estado. Este assume para si as práticas corporativas e a ideia de eficiência própria do mercado, abrindo mão de seu caráter social. Em termos particulares, o neoliberalismo também afeta a subjetividade humana. A ethos da concorrência transforma os cidadãos em “indivíduos-empresa” e impõe como obrigação motivacional uma responsabilidade do trabalhador sobre a própria valorização de seu trabalho. No limite, o desejo do trabalhador é confundido com o desejo do empregador: é preciso “transformar-se continuamente, aprimorar-se, tornar-se sempre mais eficaz” (p. 333) para atingir o sucesso profissional, que é sinônimo de plena realização pessoal.

Sob essa ótica, o Estado não pode, ao contrário do que sugere Rugitsky, ser recuperado e reformulado com base em uma racionalidade previamente existente. Mesmo que esse ressurgimento do Estado não seja, nas palavras de Rugitsky, “simplesmente um retorno ao ativismo estatal, mas um novo redirecionamento dessa intervenção no sentido de restringir o âmbito da dinâmica concorrencial de mercado”, a definição de Dardot e Laval parece descartá-lo como possibilidade. Para eles, o neoliberalismo consiste em um fenômeno que “impõe a lógica do capital na economia, mas também na sociedade e no próprio Estado, ao ponto de torná-la a forma subjetiva e a norma da existência” (2019, Prefácio).3 É por essa razão, de importância histórica, que novas formas de reação ao neoliberalismo precisam ser pensadas para além do Estado (2017, p. 14–15):4

É ilusório esperar que o Estado nacional proteja a população dos mercados financeiros, das deslocalizações e da degradação do clima. Os movimentos sociais das últimas décadas tentaram salvar o que podiam em serviços públicos, proteção social e direito ao trabalho. Contudo, nota-se que o âmbito nacional e a alavanca estatal são insuficientes ou inadequados para enfrentar os retrocessos sociais e os riscos ambientais. […] . No fundo, paradoxalmente, foi o próprio neoliberalismo que impôs a virada do pensamento político para o comum, […], mostrando que é inútil esperar que o Estado ‘volte a encaixar’ a economia capitalista no direito republicano, na justiça social e mesmo na democracia liberal.

A definição de Dardot e Laval não apenas vai de encontro à possibilidade de “um novo capitalismo de Estado”, mas ainda permite outra interpretação para a crise hegemônica do neoliberalismo. Em seu trabalho mais recente, os autores sinalizam que a persistência da crise sistêmica não precisa representar um enfraquecimento do fenômeno. Ao contrário, propõem que o neoliberalismo se sustenta e se fortalece justamente por meio da crise (2019, Prefácio):

Se a austeridade gera déficits fiscais, uma dose suplementar dela é necessária. Se a competição destrói o tecido industrial ou arrasa regiões, mais dessa quantidade deve ser introduzida entre empresas, regiões e cidades. Se os serviços públicos não cumprem sua missão, esta deve ser esvaziada de seu significado e os primeiros devem ter seus recursos limitados. Se as reduções de tributos sobre os ricos ou sobre as empresas não produzirem os resultados esperados, elas devem ser ampliadas, e assim por diante.

Finalmente, a definição de neoliberalismo de Dardot e Laval (2016) também permite questionar a posição da subjetividade neoliberal em um contexto de crise hegemônica. Se esta corresponde, de fato, a uma faceta relevante do neoliberalismo, é razoável supor, como corolário, que a crise também a envolve. Surpreende que tal ponto não seja discutido por Rugitsky, especialmente dada a proximidade de sua interpretação à argumentação de Nancy Fraser, em Capitalismo em debate.5 No quarto capítulo do referido livro, Fraser e Jaeggi reconhecem a importância da subjetivação neoliberal, embora sob uma ótica diferente daquela adotada por Dardot e Laval, centrada no processo de mobilização social. Ao propor que o capitalismo contemporâneo tem suas fronteiras definidas a partir de três polos de pressão social (mercadorização, proteção social e emancipação), Fraser sugere que o capitalismo neoliberal tem sido marcado por uma aliança entre a mercadorização (aprofundamento da lógica de mercado) e a emancipação (superação de sistemas de dominação enraizados) em detrimento do polo da proteção social. Tal aliança, entretanto, teria orientado as correntes dominantes dos movimentos emancipatórios em direção à agenda liberal, em oposição à proteção social e, portanto, para longe das “pessoas que poderiam (e deveriam) estar entre os aliados mais importantes na elaboração de uma resposta à crise atual […]”: tais correntes hegemônicas “como o feminismo, antirracismo, multiculturalismo e direitos LGBTQ se tornaram aliadas (em alguns casos de forma consciente e deliberada e, em outros, não) — das forças neoliberais, que buscavam financeirizar a economia capitalista, em particular os setores mais dinâmicos, orientados ao futuro e globalizados do capital […]” (p. 219–220).

O paralelo entre tal caracterização e a dimensão da subjetividade neoliberal em Dardot e Laval não é difícil de identificar. Na prática, como a própria Fraser reconhece, a questão da hegemonização neoliberal das pautas de esquerda consiste em “um aspecto mais sombrio, que deveríamos ter coragem de explorar” (p. 218), que incide na dificuldade da esquerda em apresentar soluções capazes de cooptar os indivíduos para uma luta de superação do neoliberalismo. Nesse contexto, como ressalta Jaeggi, a extrema-direita parece estar sendo mais bem-sucedida em canalizar as insatisfações. Tal “neoliberalismo progressista” nas palavras de Fraser ou, de forma mais ampla, tal “liberalização cultural”, nas palavras de Jaeggi, não é um mero epifenômeno. Para Jaeggi, há uma relação entre essa ocorrência e as formas específicas de acumulação que dinamizam o capitalismo contemporâneo, como é possível sugerir, por exemplo, ao olhar para os setores do “capitalismo cognitivo” (p. 226):

O “setor criativo” e seu potencial de inovação extrai vitalidade do impacto criativo das novas e liberalizadas formas de vida, e vice-versa. As últimas também são possibilitadas em parte pelos novos arranjos sociais que se desenvolvem com uma nova economia, com seu foco nas habilidades comunicativas, de cooperação e outras dimensões da subjetivação neoliberal. Em outras palavras, o neoliberalismo progressista é uma tendência ‘no mundo’, gerada por condições materiais, e seria um erro reduzi-lo a um caso de juízos políticos equivocados ou alianças mal escolhidas.

Com essa ponderação, Jaeggi conecta, por meio de uma intervenção fortemente materialista, a subjetividade neoliberal e a racionalidade da acumulação de capital contemporânea. Por mais que nem Jaeggi, muito menos Fraser, ofereçam qualquer concordância com a hipótese de Dardot e Laval sobre o potencial fortalecimento do neoliberalismo por meio da situação de crise sistêmica, o debate parece reconhecer a subjetividade neoliberal como um fator central para a compreensão da crise hegemônica do neoliberalismo.

Retornando, enfim, ao argumento de Rugitsky, é possível então indicar três pontos passíveis de crítica. O primeiro é que a hipótese de superação do neoliberalismo via reestruturação do Estado não leva em consideração o peso que exerce a subjetividade neoliberal no modo de vida contemporâneo. Com isso, desconsidera-se não apenas um eventual enfraquecimento das potencialidades que o Estado apresenta no processo de reversão da hegemonia neoliberal, como destacam Dardot e Laval, mas também, e principalmente, o papel que os indivíduos cumprem nesse processo, seja com relação a sua posição no processo produtivo e de acumulação de capital, seja no que diz respeito à mobilização social e à luta política que historicamente permitem reviravoltas de tamanho significado. Ao menos no Brasil, a pandemia trouxe à tona alguns aspectos dessa questão, especialmente ilustrados na mobilização e na paralisação dos motoristas de aplicativos de entregas. Outra pauta relacionada é expressa pelo processo de consolidação do trabalho remoto em setores específicos, que não apenas fornece complexidade aos limites da divisão entre produção e reprodução social, mas também reflete e reforça características marcantes do conflito de classes no Brasil.

A segunda crítica refere-se à hipótese do “novo capitalismo de Estado”. Por mais que Rugitsky tenha razão quando comenta que a pandemia trouxe, a depender do local, um estímulo à proteção social, este parece ser mais uma exceção do que a regra. Considerando o esquema proposto por Fraser, é difícil aceitar que esse estímulo conjuntural à coletividade tenha sido forte o suficiente para superar a aliança entre a mercadorização e a emancipação. Uma reestruturação nesse sentido teria que fortalecer o polo da proteção social, o que exigiria uma alteração considerável na agenda do Estado contemporâneo. Ao menos no Brasil, isso parece uma realidade distante: em plena pandemia, não apenas o discurso da austeridade fiscal foi garantido — apesar das medidas emergenciais —, mas também uma série de reformas e regulamentações alinhadas à lógica neoliberal foram propostas (marco regulatório do saneamento e reforma administrativa, por exemplo). Não se pode desmerecer, todavia, os pontos positivos desse surto de coletividade. Como afirma Rugitsky, não é impossível que “as transformações engendradas no combate à pandemia poderão ser o impulso que faltava para uma redefinição dos termos dessa dominação”. O fortalecimento do debate sobre a renda básica universal, da discussão sobre a tributação sobre fortunas ou sobre a possibilidade de uma retomada econômica verde figuram como exemplos positivos. Ainda assim, isso não necessariamente representa um indício da superação do neoliberalismo, podendo ser apenas uma readequação do Estado neoliberal.

Finalmente, o terceiro ponto de crítica sugere que Rugitsky, na esteira do momento histórico, parece dar um passo largo demais em relação ao argumento de Fraser. O autor não esconde a similaridade de sua interpretação àquela proposta pela autora no que se refere à crise de legitimação do neoliberalismo: no interregno, as políticas neoliberais dominam, mas não são mais capazes de convencer. A insatisfação popular é resultado do fracasso dessas políticas, que ainda subsistem enquanto “o novo não pode nascer”. Em vários países, tal insatisfação foi direcionada a plataformas políticas que acomodaram os anseios derivados daquele fracasso. A diferença do argumento aparece, entretanto, quando Rugitsky propõe a possibilidade do fim do interregno no pós-pandemia. Para que tal argumento tenha força, o ressurgimento do Estado figura como aspecto central, uma vez que este encerra as políticas neoliberais e elimina a capacidade do neoliberalismo dominar sem convencer. Como foi discutido nos pontos anteriores, há toda uma faceta do neoliberalismo que torna a discussão sobre sua crise complexa o suficiente para enfraquecer a hipótese do “novo capitalismo de Estado”. Nesse sentido, o palpite sobre o fim da crise hegemônica parece apressado. Isso não significa afirmar que a crise em si não seja real. A questão, todavia, é que parece mais provável que ela esteja ainda em plena ocorrência. Por fim, mesmo supondo que o término do interregno é iminente, não parece que, considerando tanto os argumentos de Fraser e Jaeggi quanto os de Dardot e Laval, uma saída progressista esteja na ordem do dia, o que contraria o otimismo de Rugitsky. Essa saída só poderia ocorrer a partir da recuperação da coletividade enquanto síntese das diferenças, ou melhor, da superação do “aspecto mais sombrio” mencionado por Fraser.