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Amuseumterapia

Deixa como está

Um museu não é um prédio,

nem um depósito de objetos. Um museu é uma estrutura ativa, uma máquina de descontextualização. A operação museológica consiste em transportar coisas de um contexto para uma espécie de não contexto. A depender da perspectiva e do momento histórico, dizemos que essa mudança de contexto transforma objetos comuns em obras de arte, como diz Malraux: “Um crucifixo romanesco não era, para seus contemporâneos, uma escultura. Tampouco a Madonna de Cimabue era um quadro. Mesmo a Palas Athenea de Fídias não era, a princípio, uma estátua”. Esse mesmo deslocamento pode ser também descrito como a passagem da esfera da utilidade presente à função de testemunha do passado, quando uma determinada cultura é entendida como superada e, seus artefatos, obsoletos. Numa terceira perspectiva, a descontextualização promovida pelo museu extrai objetos em uso no presente dos seus corpos culturais pulsantes para criar, fora dali, quadros explicativos desse mesmo corpo dilapidado. Seja a partir do paradigma da “arte” ou do “artefato”, objetos aparecem num museu após serem selecionados e arrastados do mundo exterior para dentro de sua coleção e registro. O museu entende a si mesmo como um “não contexto” a partir de sua pulsão antientrópica: ali, objetos destacados de tempos e culturas diferentes convivem sem envelhecer. Por isso é que desde o seu surgimento os museus são associados a mausoléus — e os seus objetos, a cadáveres. Mas um cadáver é, por definição, algo com o qual não se pode ter uma relação vital. Muito diferente é um morto. Ao contrário do cadáver, o morto vive, como sabem e souberam todas as culturas, exceto uma: o secularismo moderno europeu buscou separar definitivamente os vivos dos mortos, como separou os humanos dos demais seres viventes. Achar que os mortos não vivem porque não têm corpo é o mesmo que entender que um animal não sofre porque não tem razão. Descrever um morto a partir de sua materialidade é, no mínimo, insuficiente. Nesse sentido, talvez o museu tenha sido inventado como um dos contextos em que a brutalidade de tal cisão é de algum modo compensada. Mais do que um depósito de cadáveres, o museu é a embaixada dos mortos (vivos) entre nós.

No filme Uma noite no museu,

Larry Daley (Ben Stiller) é um guarda no Museu de História Natural de Nova York. Durante o turno da noite ele percebe que, depois que o público vai embora, as figuras da coleção ganham vida e interagem. Nesse tempo fora do tempo, Faraós, esqueletos de dinossauros e militares de cera brincam, paqueram, guerreiam, transam, trocam de papéis etc., mostrando que não estão inteiramente mortos. Porém, tampouco são capazes de conviver tranquilamente entre os vivos. A luz do sol lhes faz mal, as formas vivas de iteração os confundem e irritam. Ainda assim, tentam escapar: como o filme nos mostra, o grande problema não está na bagunça promovida à noite, nos corredores: os problemas começam realmente quando os objetos do museu rompem as fronteiras do edifício e saem por aí a aterrorizar os vivos: esqueletos de tiranossauro e armaduras sem corpo vagando pelas ruas. O filme aponta com precisão a mais importante função do museu nas culturas ocidentalizadas: manter confinados os fragmentos mortos-vivos da realidade — não totalmente mortos, não desaparecem; não totalmente vivos, não podem nem devem andar à solta.

A partir dessa imagem, podemos entender por que foi necessário para o Estado moderno inventar o museu. No pior dos casos, um museu é a institucionalização de um olhar imperialista, depósito clandestino e testemunha de um processo de coerção e pilhagem. Afinal, Estado é, quase sempre, milícia, e suas coleções são o pagamento do gatonet cobrado pelo globo e acumulado em séculos. Por outro lado, podemos ver o museu como como a arena de uma prática de psicanálise coletiva, onde os fragmentos mortos-vivos do passado, testemunhas materiais da barbárie espalhada no tempo e no espaço são combinados e recombinados, narrados, repetidos, ensaiados. Assim como, para a psicanálise, o passado do sujeito é uma virtualidade metonímica que se atualiza, se incorpora e se contextualiza pluralmente a partir da fala, também o museu poderia servir como uma arena protegida, destinada ao confronto com os elementos traumáticos de uma cultura, as marcas da barbárie, a história das violências praticadas, das paúras, dos devoramentos dos monstros etc. No museu os objetos em relação acabam sendo capazes de produzir versões inesperadas do passado, e a partir desse exercício a comunidade elabora a partir de sua própria história. Na psicanálise, repetir e elaborar os nós traumáticos da vida psíquica são um modo de deixá-los para trás, de transformar o passado em passado, liberando o sujeito para a transformação, o devir, o futuro. Não é por acaso que o primeiro museu público (o Louvre) é criado pelo primeiro Estado republicano (a república francesa) a partir da transformação da propriedade do Rei em coleção pública. Construído sobre a morte da autoridade real e da incorporação de sua casa, esse novo sujeito — o Estado moderno — tem passado, complexos, traumas a elaborar. Numa situação revolucionária, esse processo visa liberar a sociedade para imaginar seu futuro.

Colonizandos, temos Estado e museus.
Índios, o recusamos com sutileza.

No Brasil, como em muitos contextos coloniais, temos uma relação desconfortável com museus. Estranhamos seu caráter institucional do mesmo modo como estranhamos a institucionalidade do Estado. Pierre Clastres, em A sociedade contra o Estado, mostra como a maior parte das formas políticas dos povos americanos originários partiu da intuição de que o Estado, como lugar do exercício do poder de coerção, era uma virtualidade monstruosa a ser evitada a todo custo. Entendem essas culturas que o poder é algo que vem de fora da cultura para destruí-la, e, portanto, a imaginação política deve estar a serviço da manutenção da chefia como uma posição impotente, separada da dinâmica da vida social, anulada em sua capacidade de coagir, ordenar ou legislar. O legado dessa perspicácia permanece contraditoriamente em nossas práticas políticas. Por um lado, o Brasil que se quer civilizado consolida um Estado altamente repressor e autoritário, consórcio de poucos contra muitos. Por isso mesmo, prevenir-se contra o Estado é essencial para preservação das trocas culturais, da imaginação e da criação. Mais do que isso, manter distância do Estado é uma questão de sobrevivência. Entendido como algo que está fora da cultura a ameaçá-la, o Estado, como a natureza1 ou o mundo dos mortos, é algo com que se convive com respeito temeroso. Vale o velho conselho indígena, cuja lucidez recomenda: “Se o Estado falar com você… não responda!”.2

A arte brasileira, em sua relação com a institucionalidade, está marcada pelo desconforto dessa dupla exclusão. Arthur Barrio, por exemplo, fez sua andança delirante de quatro dias e quatro noites, em 1970, tendo o Museu de Arte Moderna do Rio como eixo do percurso. Não bastando estar simplesmente “fora” do museu, era preciso estar “em relação” a ele. Ainda, a ação, deliberadamente não registrada em anotações, desenhos ou fotografias, foi ao mesmo tempo “transmitida” e, portanto, “registrada” pela exposição Information, que ocorria então no Moma, em Nova York.

Eu achava que esse trabalho o 4 dias 4 noites estava sendo captado pelo Moma (Information). Então todo o processo de trabalho, digamos assim, estaria sendotransmitido para essa exposição. E isso eu nunca comentei.

Outro episódio paradigmático dessa relação deliberadamente marginal com o museu talvez seja a primeira aparição pública dos Parangolés de Hélio Oiticica, na abertura da exposição Opinião 65, também no MAM do Rio de Janeiro. Hélio chega às portas do museu acompanhado de membros da Estação Primeira de Mangueira e outros artistas de vanguarda, todos vestindo e dançando os Parangolés. Os Parangolés, mais do que um exercício construtivo de formas, tecidos e cores, eram obras que continham um endereçamento específico: aprendendo com as culturas da adversidade, eram dedicados aos corpos que dela viviam. Eram esses que, junto com os parangolés, “incorporavam a revolta”, afrontando os modos burgueses de sociabilidade e afirmando uma a vitalidade de um contexto social marcado pela marginalização de suas formas de vida. Portanto, os Parangolés não são uma afirmação celebratória da alegria consensual de uma sociedade alegremente pluriétnica. Ao contrário, a primeira aparição dos Parangolés em Opinião 65 era uma encenação do conflito social no interior da sociedade brasileira. Hélio nunca poderia esperar que, naquele momento, o grupo performático fosse assimilado pelo museu. Tampouco bastava abandoná-lo. Era preciso existir na sua margem, na várzea da marquise. Como se a resposta da vanguarda brasileira ao museu fosse venerá-lo em sua impotência: nem dentro nem fora do museu, percebe-se que é preciso mantê-lo frágil, para poder existir perto e fora dela. Tal sutileza de convívio evoca a relação das culturas indígenas americanas com a chefia descrita por Clastres: o museu é o inimigo da criação, como o Estado é inimigo da cultura e da vida social. Não basta, porém, excluí-lo simplesmente, sob perigo de seu retorno monstruoso. É preciso dançá-lo, atiçando suas bordas.

Tacando fogo

os mortos-vivos da nossa história passeiam livremente por aí, sentam-se às mesas, tomam decisões

ou empurrando boi pra debaixo do tapete, a sociedade brasileira tem falhado em realizar o mínimo dever de memória da sua barbárie. Afinal, ao contrário do que o projeto da Anistia ingenuamente julgou possível, tortura e torturadores não simplesmente desaparecem por decreto, assim como a carne viva da escravidão não desapareceu em 1888, nem se acomodou nas narrativas mitológicas da democracia racial. A tentativa de esconder uma ferida sem tratá-la acabou infectando todo o corpo social. Entendendo que um museu não é um depósito, e sim um contexto em que uma comunidade promove e acolhe o trabalho de repetição, narração, recontação e elaboração dos seus traumas, podemos dizer que o presente monstruoso que vivemos resulta de uma negligência deliberada em “museificar” a história dos corpos escravizados, perseguidos, desaparecidos, torturados. Pois é a força dessa elaboração sobre a violência traumática que, como dissemos acima, pode manter confinados (em isolamento social, digamos) seus perpetradores mortos-vivos. Assim como no filme Uma noite no museu, podemos esperar que nos museus da história do autoritarismo brasileiro os fantasmas dos generais, dos torturadores, dos bandeirantes, das retroescavadeiras e correntões, dos censores, dos cães de guarda, das baratas e dos condores, todos eles vaguem livremente, caducando a cada noite, remexidos a cada dia. Se tal imagem parece grotesca, vejam o pesadelo que temos agora: porque nossas armadilhas museológicas são fracas, os mortos-vivos da nossa história passeiam livremente por aí, sentam-se às mesas, tomam decisões; o passado se encaracola sobre o presente num abraço de sucuri, e devora o futuro como Cronos a seus filhos. Os mortos-vivos nos pegam na esquina.