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A decantação da experiência

Marte em Câncer, 2019, Laís Amaral.

Se a etimologia da palavra experiência remete ao “ato de se aprender ou conhecer além das fronteiras”, decantação diz tanto de um refinamento gradual, gerando a separação entre sólidos e líquidos pela ação da gravidade, quanto da celebração de algo. Dois processos intrínsecos ao tipo de produção artística que nos interessa discutir ao longo deste texto. Criando relações entrelaçadas com seus contextos, mas ao mesmo tempo abertas à indeterminação e à pesquisa com as linguagens, Laís Amaral, Leandra Espírito Santo, Noah Purifoy e Bill Traylor, tão diversos em seus temas, procedimentos e mídias, operam em uma chave em que sujeito e coletivo, desejo e crítica, pensamento analítico e inventivo, tornam-se indissociáveis uns dos outros.

Relacionar em um mesmo texto artistas aparentemente tão díspares é um reconhecimento de nossos interesses dispersos por cada um, e de nossa resistência a narrativas totalizantes. O que pode conferir alguma unidade à análise é, primeiro, o desejo de tomar artistas e obras em suas singularidades, olhar caso a caso, evitando generalizações; segundo, observar como suas obras explicitam contingências e decantam contradições sociais de seu momento histórico.

Autoras como Susan Sontag, em Against Interpretation, ou Sônia Salzstein, em comentários dispersos ao longo de sua produção crítica, já descreveram como a experiência é elaborada no trabalho de arte a posteriori, criando, inclusive, um embaralhamento espaço-temporal. A obra não é apenas fruto de seu contexto, mas ação crítica e propositiva dentro e para além de seus lugares de origem, permitindo ver, retroativamente, uma série de signos sociais sedimentados nesse processo que estamos chamando de “decantação da experiência”.

Pensamos inicialmente em produzir uma reflexão que abordasse a pauta identitária como rubrica capaz de repor a antiga querela “autonomia × engajamento”. Um dos pontos de partida poderia vir do argumento de Theodor Adorno em favor da política de uma autonomia radical da obra de arte, pois esta não se dobraria à mera funcionalidade da linguagem trivial, capturada como está pela sociedade administrada do capitalismo. Autonomia que evitaria produzir a obra como simples suporte para uma anacrônica autoridade do autor e para um usufruto duvidoso e individual — patrimonialista, no pior dos casos — das finalidades supostamente engajadas. Autonomia que também não se confunde com o esquema superficial da “arte pela arte”, pois reconheceria na experiência social o seu motor propulsor, cujos emblemas e processos internos encontrariam terreno para um jogo ainda por se fazer, de adensamento da experiência, distante do positivismo consumista que anima a vida cotidiana. Autonomia, portanto, como crítica imanente.

Um outro ponto de partida, poderia ser a análise de Robert Kudielka sobre como as noções de identidade e diversidade tornaram-se uma “ficção” construída no bojo da globalização. Ou seja, fruto ideológico de um processo de negociação e apaziguamento das diferenças comandado pelos interesses do capital, com os riscos de que a diferença se torne, no fundo, indiferente, ou apenas cacoete, marca superficial, mera aparência, ou, ainda, ser tomada como algo fixo e inato. Refratário à ideia de um original cultural, o autor salienta a necessidade do atrito e de uma revisão, caso a caso, da relação entre o particular e o geral. Talvez amplificando a preocupação de Adorno, Kudielka parece perguntar-se como as noções de identidade e diferença, proximidade e distância, são assimiladas na própria constituição da obra de arte, em termos de linguagem.

Poderíamos partir, também, das reflexões de Adrian Piper. A artista e filósofa reconhece a importância de políticas de identidade que forcem o sistema artístico (leia-se hegemonia “euro-étnica”, para usar uma expressão sua) a um exercício de “autocrítica política e social”. A análise de Piper nos ajuda a reconhecer que, nesse sistema, a autocrítica tem um alcance limitado, uma vez que não desagrega significativamente a manutenção estrutural dos privilégios. O que a autora demanda, no entanto, é o deslocamento do interesse pela pessoa da artista para o seu trabalho, que inevitavelmente estará impregnado das marcas de uma experiência de mundo singular. A experiência da “autoexpressão” da qual a obra de arte é produto carrega os seus marcos culturais, individuais e contextuais e esses elementos devem ser tomados com rigor em sua singularidade, a fim de evitar generalizações e estereótipos. Piper denuncia, ainda, a falta de preparo do meio artístico para uma crítica mais profunda das dinâmicas classistas, produtivistas e competitivas que estão na base desse modo de circulação, sustentado pela mesma estrutura de privilégios, que replica a lógica capitalista nas relações mais capilarizadas desse campo.

Embora sejamos sensíveis aos problemas aí colocados, entendemos que tal perspectiva formaria mais falsas oposições, especialmente quando aplicadas ao nosso contexto mais imediato. O que parece urgente é uma revisão epistemológica e política –reversão e reparação já há muito adiadas —, de preferência de longo alcance e configuradas, idealmente, como políticas públicas. Os binômios descritos anteriormente já não operam de fato (ainda que tenham poder explicativo de algumas tensões internas do campo), na medida em que, ao longo da história, ficou claro que a obra de arte já se mostrou tão flexível a ponto de ter os seus parâmetros testados e reinventados a cada manifestação singular, com seus diferentes usos, manifestações de desejos, propostas e críticas.

Umidificar o deserto

Formigas afogadas no mel, 2020, Laís Amaral.

Em uma entrevista com a artista Laís Amaral, ela mesma descreveu sua prática de pintura como um processo de umidificação. O uso do termo parece preciso por sintetizar tanto alguns dos procedimentos da pintura e dos usos da tinta, suas manchas, diluições, escorrimentos e infiltrações, quanto dos interesses da artista. Referências a corpos d'água, lençóis freáticos, imagens da chuva, entre outros acontecimentos geológicos são descritos nas obras ao mesmo tempo em que são completamente abstratas. O rigor formal e compositivo em jogo em cada uma delas conecta visões aéreas, ou de cortes geológicos, a experiências subjetivas arrematadas pelos títulos que evocam signos astrológicos e outras narrativas individuais, em um trânsito entre escalas espaciais e temporais que se sedimentam umas nas outras.

As imagens do “úmido” aparecem no trabalho pelas linhas lânguidas, que parecem escorrer, admitem transparências, gotejamentos pela gravidade e registram oscilações na pressão e na carga dos materiais. As manchas, mais sólidas e ríspidas, se interpenetram em movimentos invasivos, e, se chegam a produzir estratos, fronteiras, é para serem desmanchados. Em Cimento e água 1/ Gamboa (2020) e Descansando a saudade (2020), ambas pinturas com formatos verticais, vemos uma divisão entre o topo e a base. No meio ocorre uma movimentação de formas que se lançam para cima e outras que parecem escorrer, mesclando aquelas áreas topograficamente tão distintas. Formigas afogadas no mel (2020) parece ser uma demonstração clara, no título e na imagem, de formas que parecem submergir ou emergir num campo alagado.

As imagens da artista também se relacionam com mapas — essas tentativas de propor códigos fixos para a instabilidade do território — e Amaral procura relacionar os processos históricos de desertificação territorial e de branqueamento da população brasileira, a formas de representação plana, ou em perfil. Não à toa o uso de miçangas, pedras e outros objetos que denotam experiências e imaginários sociais específicos e a escolha de uma “mídia” que força o movimento entre projeto e experimentação, ação e reflexão, proximidade e distância, em trânsito constante. A experiência da pintura rebate o processo rente de vivência do mundo, e os trabalhos estão impregnados de uma temporalidade da ação, da qual participamos como observadores.

Em 2017, Amaral iniciou, junto a outras artistas com quem dividia ateliê em Niterói, o Movimento Nacional Trovoa. Composto por artistas mulheres racializadas, cis e trans, de todo o país, o grupo promove projetos que garantem sua visibilidade e circulação, mantendo a autonomia individual de cada participante e de cada grupo regional da rede. Participou também de projetos da Galeria Hoa. Ambas iniciativas nas quais a desigualdade de gênero e de raça no meio artístico é ao mesmo tempo criticada e tomada como ponto de partida para ações coletivas que fortalecem os grupos e ampliam as possibilidades de construção de redes alternativas, com capacidade de interferir provocativamente no sistema hegemônico.

Automatização e erotismo

Detalhe de Sem título (Chão), 2019, Leandra Espírito Santo.

Em uma série de trabalhos, como Enxerto, PlasticomboPuxadinho, produzidos entre 2010 e 2011, Leandra Espírito Santo coleta diferentes embalagens plásticas, de papel ou de vidro, de alimentos, produtos de limpeza e bebidas, que encaixa, estrutura e modula umas nas outras. As embalagens são lavadas, tem os rótulos retirados, assim como as marcas de uso, e esses módulos de diferentes formas vão se expandindo em estruturas autoportantes. Quando o vidro é usado, produz-se um jogo de encaixes entre volumes côncavos, convexos e planos das tampas e dos fundos dos potes. Com as caixas de fósforo, a própria abertura das caixas parece determinar a expansão multidirecional, como um dominó.

O procedimento básico do trabalho é sempre visível. Funcionando por encaixe e adição, o resultado se mantém aberto, inconcluso. O trabalho tem o potencial de construir-se infinitamente, até colapsar sobre o seu próprio peso, ou, ainda, até atingir alguma limitação espacial. Embora compostos por objetos de refugo, a experiência pode aproximar-se de mostruários inorgânicos que buscam seduzir a atenção do observador — como dildos, esmaltes, maquiagens. Fetichismo que parece comentar a nossa relação com as superfícies cada vez mais reluzentes do mundo atual.

Positivo — série Gestos, 2019, Leandra Espírito Santo.

Algumas vezes, apresentam-se em pequenas unidades, das quais cabe destacar aquelas que têm uma embalagem dentro de outra, num processo de reiteração e deglutição. Orifícios, invaginações e formas fálicas vão se acoplando e se devorando. Uma espécie de descarga erótica parece ser promovida pelos objetos, intensificada pela manipulação aparentemente indireta dos volumes multiformes e coloridos. Esse caráter direto das operações formais e das alusões orgânicas e eróticas parece intensificar-se em trabalhos mais recentes da artista.

Desde 2016, Espírito Santo produz réplicas em gesso e resina de seu próprio rosto e de suas mãos. Texturas e relevos da pele e da anatomia são enfatizados e indiciam um corpo real com os seus acidentes únicos. As feições e gestos, no entanto, reproduzem as expressões codificadas pelos emojis. A partir daí se inicia um jogo agressivo de estranhamentos recíprocos entre corpo e imagem. Somos levados a duvidar da estabilidade tanto das noções de corpo, original e identidade, quanto daquelas de homogeneidade e de estereótipo. A noção de individualidade é desfeita pelo afastamento imposto pela reprodução serial, ainda que artesanal, e pelos materiais utilizados, que homogeneízam as diferenças e ameaçam mesmo desaparecer, tornando-se transparentes. O corpo é reduzido ao gesto codificado — mas não inteiramente, pois ainda registram-se pequenos desvios anatômicos —, enquanto a imagem virtual é colocada em confronto com a materialidade do gesso ou da resina, seus acidentes de desmoldagem e ruídos de superfície.

Desagregação, construção, instabilidade

No Contest (Bicycles), 1991, Noah Purifoy.

A atuação de Noah Purifoy como artista remonta à exposição 66 Signs of Neon, um esforço coletivo liderado por ele e Judson Powell, que, após a rebelião de Watts, na Califórnia, em 1965 — um dos conflitos raciais mais intensos dos Estados Unidos, nos anos 1960 — saíram pelas ruas repletas de escombros dos edifícios destruídos e coletaram quase três toneladas de detritos. Esse material foi o substrato de esculturas, desenhos e pinturas que foram exibidos nos primeiros meses do ano seguinte, num colégio local, durante um evento cultural.

É importante considerar as sínteses possibilitadas pela referência direta a um evento social devastador — motivado pela segregação racial — e à manipulação formal dos seus vestígios materiais, pois dada a proximidade temporal e espacial ao evento, a experiência social permanece impregnada nas obras. Os próprios materiais ostentam marcas como quebras, derretimentos, torções e carbonizações. O procedimento de montagem de elementos heterogêneos mantém as associações literais e figuradas em constante colisão interna, num espaço não apaziguado, em uma tensa dinâmica entre desagregação e construção. As peças parecem respostas diretas ao choque de uma guerra civil, por outro lado são repletas de latências, numa vontade de lidar com os escombros por meio de uma ética de reconstrução criativa, conduzida por um processo de rememoração e, consequentemente, criação de uma noção de comunidade.

Podemos dizer que a trajetória de Purifoy ocorreu de modo paralelo, porém com relativa independência, às correntes artísticas dos anos 1960 em diante, até o seu falecimento, em 2004. Para uma análise mais consistente da relação do artista com o sistema hegemônico das artes nos EUA, seria preciso uma investigação que procurasse entender resistências e iniciativas no processo de institucionalização de sua obra, considerando desde a segregação racial e econômica às escolhas de vida do artista. Sobre estas últimas, às quais temos um pouco mais de acesso, sabe-se que ele atuou como servidor social em hospitais, foi professor de artes visuais e ocupou cargos públicos voltados à área cultural. Aos quase 40 anos de idade, bacharelou-se em artes plásticas.

Em 1964, Purifoy envolve-se na fundação e na direção de uma organização com interesses culturais voltada para a comunidade local, o Watts Towers Arts Center, até hoje uma entidade que oferece um amplo programa educacional em artes. O próprio contexto das torres de Watts é formado a partir de um conjunto de esculturas em grande escala realizadas de forma totalmente independente por Sabato Simon Rodia, um artista sem estudos formais em arte ou arquitetura, tendo sido objeto de disputas sobre sua relevância ou irrelevância cultural. Durante a década de 1970, por um período de onze anos, Purifoy se dedicaria integralmente ao serviço público, ao que parece, afastando-se de sua prática de ateliê, instituindo programas educativos em arte, inclusive alguns voltados à população prisional.

Ode to Frank Gehry, 1999, Noah Purifoy.

Após aposentar-se, o artista estabelece residência em um trailer no deserto de Mojave. Ao longo de quinze anos, o Joshua Tree Outdoor Museum tornou-se um campo de experimentação tridimensional a céu aberto, em grandes dimensões, onde o artista explorou operações como empilhamento, serialização, criação de ambientes com interiores imersivos, fachadas autoportantes, muitas vezes com textos, movimentações sincopadas de superfícies que se expandem para relevos, volumes e estruturas com escala arquitetônica. Em seu conjunto, essas protoarquiteturas parecem produzir um comentário bem humorado sobre o urbanismo, com momentos agudos de crítica social e de generosidade, como um abrigo aberto.

Se a escala e o ambiente deserto poderiam sugerir uma relação com as noções canônicas da land art, talvez seja somente pelo que podem contrastar, mais do que aproximar-se. Purifoy utiliza materiais de refugo — objetos de vestuário, equipamentos utilitários, restos de automóveis, tapumes e arquiteturas, entre tantos outros — e trabalha sozinho, em uma escala um para um. Suas estruturas testemunham, por contraste, a associação muitas vezes positivista da land art produzida por aqueles artistas mainstream aos processos tecnológicos e científicos, e a um tipo de dinâmica da cultura como espetáculo. Seria o caso de se perguntar quais seriam os agentes institucionais responsáveis pela mobilização direta ou indireta de capital para a realização dos projetos megalomaníacos em áreas longínquas e quais práticas artísticas estavam lidando com o mesmo problema — a ação direta na paisagem — com outros recursos formais, econômicos e éticos.

A condição marginal de Purifoy não deve ser vista somente em seu registro evidentemente trágico. Pois enquanto a precariedade revela-se material não sublimado, escancarando para a experiência dos afetos e dos sentidos, a injustiça de sua marginalização também enseja uma resposta sem precedentes, altiva e complexa. Suas estruturas parecem produzir, a um só tempo, uma visão utópica e distópica, em sugestão latente de desequilíbrio e decaimento, desagregação e construção.

Crônica e imaginação

Yellow Chicken, 1939–40, Bill Traylor.

Apenas nos últimos dez anos de sua vida, entre o final dos anos 1930 e 40, no sul dos Estados Unidos, que Bill Traylor passou a desenhar, produzindo mais de 1.500 peças que registram os processos de modernização do país, bem como os resquícios da escravidão, suas consequentes desigualdades sociais e exclusões. Usando materiais como papel de pão, cartazes gastos, lápis de cor, grafite e, principalmente, guache, esses desenhos registram os pequenos acontecimentos da vida cotidiana daquele lugar, ao mesmo tempo descrevendo e inscrevendo visões de mundo, desejos individuais e críticas. Detalhe a detalhe, esse conjunto de imagens forma uma narrativa a contrapelo tanto do momento histórico, quanto da arte moderna em geral.

Os elementos formais de sua obra — as distorções simbólicas e narrativas nas escalas das figuras, a ocupação do plano que parece condensar a descrição de cenas com sua compreensão psíquica, subjetiva, assim como os contrastes entre os materiais precários e as formas e cores modernas — falam dessa experiência singular, na qual as potências e as tragédias de um contexto histórico estão condensadas. É um mundo visto pela visão do oprimido, que, no entanto, “transmuta” essa situação em um imaginário complexo e num vocabulário formal rigoroso, inventivo e em sintonia com a produção cultural de seu tempo.

Um dos trabalhos mais comentados de Traylor é o desenho Yellow Chicken (1939–40). A simplicidade da forma, dos procedimentos e do tema sintetizam uma série de problemas encadeados, da economia à subjetividade. De saída, chama a atenção o antropomorfismo daquela galinha — e a própria escolha de um tema ligado ao mundo rural —, como índice da contradição entre os campos de trabalho associados à escravidão e à cidade urbanizada. Ou ainda da identificação do seu autor com a condição instrumental e explorada do animal. Também é importante notar, mesmo que superficialmente, que o animal pode, também, ser um signo relativo a práticas espirituais. A precariedade do papel, refugo de alguma embalagem cotidiana, talvez possa falar da situação contingente do artista. A cor amarela luminosa do guache é o veículo para um contraste visual dinâmico, intenso. Pode ecoar os desenhos animados, que então começavam a se popularizar, mas é, principalmente, uma cor moderna, direta, aplicada de modo franco, sem artifícios naturalistas e com uma vibração própria dos materiais já industrializados. No desenho de Traylor, outras experiências também parecem entrar em jogo, da joalheria ao art nouveau que se via nas ruas à observação direta dos hábitos e figuras da vida cotidiana.

Sabe-se que Traylor foi escravizado até os 12 ou 13 anos de idade, e passou o restante de sua vida como meeiro, uma condição laboral na qual o agricultor divide os resultados de seu trabalho com o dono da terra, ou seja, um desdobramento mais brando da escravidão. As dinâmicas de poder e opressão entre pessoas e animais, pessoas letradas e iletradas, patrões e empregados também são recorrentes nessas narrativas, formando um corpo complexo de obras nas quais fato social e imaginação (sonho, espiritualidade, invenção e pesquisa com os materiais expressivos) referem-se um ao outro, em movimento circular que impede fixar a obra em apenas um dos polos.

A partir do caso de Traylor, fica evidente o quanto expressões como folk art, arte popular, artista autodidata, primitivo ou qualquer outra que fale sobre um processo de formação que não passou pelos códigos e instituições hegemônicos são carregadas de preconceito e de exclusão interessada. Esses termos também evidenciam o quanto os lugares sociais hegemônicos não reconhecem suas marcas sociais, tomando-se por neutros, enquanto as parcelas oprimidas (a maior parte, aliás), são, muitas vezes de modo determinista, reduzidas a seus marcadores de gênero, classe, raça etc. Se esses polos — hegemônico e oprimido, centro e periferia, etc. — fazem parte de uma mesma dinâmica de circulação e distribuição simbólica e de capital, resta saber quais especificidades de cada um podem lançar luz no todo, em experiências ainda não completamente codificadas, descritas ou devidamente analisadas.

A lógica capitalista que assegura a manutenção dos privilégios parece manifestar-se nas escolhas lexicais e na sua consequente inclusão ou segregação do debate público, amplificando ou silenciando a possibilidade de transformação dos rumos da produção artística. Também é evidente nas dinâmicas de visibilidade e de invisibilidade dos agentes do campo artístico. Se aqueles binômios que descrevemos anteriormente já demonstram seus limites quando aplicados à produção contemporânea, vale pensar quais outros estamos criando hoje, quais hierarquias e violências, no fundo, estão reproduzindo as mesmas injustiças históricas.