1

Pensando alto sobre narrativas eloquentes

A genialidade, por vezes, aparece em coisas pequenas, seja uma equação fenomenal ou um simples título de livro. O golpe de mestre de Branko Milanović foi justamente sintetizar em duas palavras sua crença na supremacia do capitalismo, indefectível há mais de quatro séculos.

Em Capitalism, Alone (Harvard University Press 2019), Milanović coteja dois modelos divergentes desse admirável capitalismo triunfante — Estados Unidos e China — para refletir sobre o futuro do primeiro sistema global que arrastou mentes e modos de vida para o que denomina de “hypercommercialized capitalism” (p. 128). E, conclui, no capítulo final, que não há como escapar da sina da mercantilização completa da vida. Atente-se para o fato de que esse assunto já foi ampla e originalmente tratado por um amplo espectro de autores desde Nancy Fraser (2012) quando cunha a ideia de “commodification all the way down”, ou, antes ainda pelo trabalho precursor de Randy Martin, em seu belo livro de 2002, intitulado “Financialization of Daily Life”.

Mas qual o propósito de Milanović? Soar o alarme? Ou a aquiescência de que a busca por emancipar-se de um sistema que tudo transforma em mercadoria, gerando exploração, destruição em massa — inclusive da base material de reprodução da vida —, concentração da riqueza, pobreza, discriminação e humilhação, é tarefa condenada ao fracasso porque inviável?

Entre o capitalismo liberal meritocrático americano e suas falhas e o capitalismo político tão performante do Estado autoritário chinês parece sobrar pouco espaço para que a cidadania conquiste alguma autonomia que permita disputar esse enredo. Pergunto-me o que pensam da argumentação contundente de Milanović os scholars que, por tanto tempo, se serviram do framework das “variedades de capitalismo” (Peter Hall e David Soskice, 2001) para entender e interpretar os meandros do agora exclusivo, porém ainda profundamente diverso, sistema capitalista global e suas instituições.

Haveria muito a dizer sobre esse capitalismo bipolar — na verdade, um método facilitador para montar sua narrativa. Primeiro, porque despreza o esforço da União Europeia em protagonizar uma trajetória distinta, forte de instituições democráticas que tenta preservar. Mas também porque exclui da sua análise parte da periferia global que não foi ainda cooptada pela China, e que tentou, reiteradamente, forjar um caminho genuíno para si na segunda metade do século 20, caso da América Latina.

O livro tem boas ideias, é finamente arrematado em sua retórica interna, mas é perpassado por, digamos, imprecisões que causam estranheza. A lista não é insignificante.

O que pensar quando Milanović afirma que o hiato de cobertura entre brancos e negros na Seguridade Social americana (p. 52) foi resultado de os negros (“the native population”) terem menos interesse em contribuir para o seguro social (“lack of affinity”???????), quando na verdade foi o racismo e a forma de inserção no mercado de trabalho dos indivíduos racializados que impediram o avanço na direção de uma cobertura universal?1 Basta ler Theda Sckopol, em seus tantos livros, para saber como a discriminação racial dinamitou todas as tentativas de criação de um sistema de saúde universal. Até Roosevelt recuou em 1935. Não vamos esquecer que Medicaid e Medicare, dois programas públicos, foram criados em 1965, após o levante da população negra pelos direitos civis, um ano antes. A população negra sobrerrepresentada entre os pobres é clientela prioritária no Medicaid, sistema público de saúde, de baixa qualidade e sujeito a controle de meios. Milanović, que passou a borracha na história, e se recusa a mirar o que se passa hoje nos US e a relevância e singularidade da campanha de Bernie Sanders na luta contra o racismo por meio da defesa de um sistema único e universal de saúde, reconhece, contudo, que “sometimes discrimination could indeed be a factor” (p. 52). Sometimes, only, enfatizo eu.

Levando mais longe essa interpretação, Milanović diz que

the gradual equalization of opportunity for people of different genders, sexual preferences, disabilities, and races, additionally makes it possible for members of these ‘formerly’2 disadvantaged groups to attain top positions. (…) these individuals do not carry over any stigma from their earlier disadvantaged position: once they have become rich, they are as good as anyone else” (p. 177).

Isso foi possível, na sua opinião, porque “money is a great equalizer” (p. 177). Por que será que os movimentos antirracismo e o feminismo não clamam por dinheiro e ativos e seguem levantando, de forma míope, bandeiras que poderiam ser consideradas ultrapassadas e obsoletas, por tratarem de valores sem tradução monetária?

Milanović interpreta as migrações internacionais ainda hoje como a atração que países com generosos programas assistenciais exercem sobre migrantes que podem ser otimistas ou pessimistas, segregados pelo autor segundo um comportamento-tipo. Os pessimistas são aqueles que migram em busca de benefícios assistenciais e tendem a ser menos qualificados e menos ambiciosos! São verdadeiros free-riders. Pelo visto, o autor desconhece haver hoje no mundo em desenvolvimento cerca de 2,5 bilhões de pessoas que recebem transferências de renda regulares, entendidas — excessivamente na minha opinião — como políticas inovadoras de distribuição (Lutz Leisering 2019) e reconhecimento (James Ferguson 2015). Ademais, as migrações acontecem majoritariamente, como indicam inúmeros relatórios internacionais, em razão das dramáticas consequências da crise climática e das guerras, que ceifam vidas e extinguem o futuro para quem vive na periferia do capitalismo.

Tem mais. Milanović afirma que, por serem sociedades homogêneas (racialmente?!), os países ocidentais lograram implementar um Estado do Bem-estar (p. 52), quando a causalidade é inversa: foi o gasto social ao crescer exponencialmente, assentado num regime tributário altamente progressivo e num gradual processo de universalização do acesso à educação, saúde e moradia, que promoveu um certo grau de homogeneização social, medida pela forte queda dos índices de desigualdade e baixas taxas de desemprego. Essa foi a base do contrato social do regime fordista que se apoiou numa complementariedade forte entre política econômica e política social.

Justamente, falemos de regimes do capitalismo, dimensão analítica e conceitual que o autor dispensa ao tratar do capitalismo liberal meritocrático. Ele praticamente não usa o termo “neoliberalismo”, senão “separatismo social”. Tampouco se refere ao capitalismo financerizado, estágio atual do regime de acumulação associado à globalização e ao neoliberalismo.

Passou batido no que significou o advento do capitalismo financeirizado ao falar da economia mais financeirizada do planeta. Não associa queda das taxas de crescimento nos países ocidentais (não apenas), graus crescentes de desindustrialização e o fato de que a renda do capital cresce proporcionalmente mais do que a renda do trabalho. Para ele, baixo crescimento, “is a systemic feature of liberal meritocratic capitalism because it results from the weakened bargaining power of labor” (p. 21). Logo, isso nada tem a ver com a dominância do capitalismo financerizado, drive da acumulação nos US e na UK, que provocou as transformações estruturais que destaca ao descrever as novas convenções ligadas à origem da renda e da riqueza.

Porém, Milanović, como dito acima, assinala o fato de que a renda do capital ganha prevalência sobre a renda do trabalho, favorecendo certos grupos, o que agrava a desigualdade no capitalismo liberal meritocrático. No seu entendimento, isso foi possível por razões não sistêmicas ou acidentais: o prêmio pago aos trabalhadores altamente qualificados (p. 21) aumentou, dada sua escassez; junto a isso, a tecnologia elevou a produtividade desse trabalho qualificado, jogando o prêmio ainda mais pra cima; finalmente, casamento entre iguais, o que é velho como o mundo, concentra riqueza. Milanović só não explicou como essa elite dos trabalhadores, ao trabalhar, não apenas fica mais rica, mas passa a acumular capital fictício e financeiro, sendo crescentemente remunerada por dividendos e ações que provêm de direitos de propriedade sobre capital. O que mudou no capitalismo para isso acontecer?

Algo deve ter mudado e profundamente, porque Milanović propõe que a política social mude também radicalmente. Sabemos que ela é tributária do regime de acumulação. Na sua visão, trata-se de remunerar trabalhadores com ações (stocks), embora ele siga omitindo o domínio do capitalismo financeirizado. A meta, aos seus olhos, consiste em avançar na direção de “an egalitarian capitalism based on approximately equal endowments of both capital and skills across the population” ( p. 46). A este fim, defende, entre outras coisas, a desconcentração da propriedade dos ativos. Ou seja, os direitos tenderiam, portanto, a ser expressos na forma financeira, via propriedade de ativos, pelo acesso e participação nos mercados financeiros. Senão, vejamos: esse horizonte é distópico ou utópico? Vai alcançar a massa de trabalhadores precários e informais que se tornariam, assim, também eles, capitalistas?

Milanović fala de monopolização da economia americana, mas insiste em não referenciar sua financerização exacerbada, ponto consensual hoje inclusive entre economistas ortodoxos.

Alguma tiradas são memoráveis: “Yes, inequality is greater where there is greater share of labor-rich capitalists, but isn’t it a good thing for people to be able to become rich by working?” (p. 20). Milanović celebra o fato de que os multimilionários de hoje trabalhem, ao contrário dos rentistas de ontem. Veio-me uma dúvida: desde quando alguém fica rico trabalhando? Aprendi com meu pai: trabalhando se pode ter uma vida digna e decente. Já ficar rico, sobretudo em tempos de dominância financeira, só se for ganhando na Sena, herdando um bom patrimônio, ou dando um jeitinho pouco católico ao que se faz.

De sofisma em sofisma, diria que Milanović, genial no título, ficou devendo no texto.