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O PT ficou obsoleto1

ilustração: Tom Vieira

O Partido dos Trabalhadores faz 40 anos na próxima segunda-feira e hoje começa uma grande festa no Rio de Janeiro. Mas eu não pretendo participar. Não me sinto identificado, hoje, com o tipo de visão que o PT construiu de si mesmo.

Acho que o partido fez transformações democráticas muito positivas na sociedade brasileira, em particular no governo do presidente Lula. Mas também acho que ele teve que fazer uma série de modulações na sua linha política que bloquearem a sua renovação.

Ao longo destes 40 anos ocorreram composições e renúncias que nunca ficaram esclarecidas. Não sei se algumas destas concessões não foram renúncias de princípios. A festa de aniversário é uma boa iniciativa e tenho certeza que nem vão dar grande importância para a minha ausência.

Já tive muitas responsabilidades na política. Fui vereador, vice-prefeito, prefeito, governador e ministro. Também fui presidente do PT. Assumi como interino na época em que o mensalão estava no auge [2005]. Eu tinha dois objetivos. Primeiro, concorrer nas eleições internas. Foi inclusive o que o pessoal do grupo hegemônico do partido me propôs. E também chamar o PED (Processo de Eleições Diretas), que seria fundamental para reestruturar o partido nos estados e na direção nacional.

Uma missão eu cumpri: o PED foi feito, mas a ideia de reformar as estruturas do partido não foi possível. Eu bati radicalmente com a maioria que, vamos dizer assim, controlava o partido e achava imprudente um processo de renovação/refundação.

Não foram ações individuais de qualquer dirigente que impediram a reestruturação. Na verdade, era o pacto hegemônico do partido que, naquele momento, não pretendia se renovar. E na minha opinião, não se renovou até hoje.

Isto aí me fez recuar de ser candidato. Organizei as eleições internas e voltei para Porto Alegre.

A “autocrítica” que eu defendi não significava transformar o partido em delegacia de polícia. Quadros do PT cometeram erros ao longo destes 40 anos e isso não é nenhuma novidade em qualquer partido de qualquer ideologia. A reestruturação que eu defendia e defendo vai bem além.

Nós temos um discurso e um programa ancorado na época em que o partido foi fundado e ainda agimos como se existisse uma classe trabalhadora nas fábricas que teria potencial hegemônico na sociedade. Operamos como se o nosso trabalho fosse organizar esta classe de pessoas para lutar por uma utopia. Isto mudou radicalmente.

Não adianta, por exemplo, o PT prometer se renovar e pregar a restauração da CLT. Os processos de trabalho foram fragmentados e hoje temos autônomos, horistas, PJs, precários, intermitentes… Trata-se, neste caso, de organizar um outro sistema público protetivo que envolva estes excluídos das legislações trabalhistas, que irão aumentar.

Acho que o partido não acompanhou estas mudanças. E, a esta nova organização do trabalho, soma-se a tensão social resultante de questões de gênero, cultura, preconceito racial e condição sexual. Precisamos absorver as suas demandas e oferecer propostas concretas.

Vou exemplificar usando a declaração de um amigo dirigente do Partido Socialista chileno sobre como eles foram atropelados pelas manifestações que assolaram aquele país: “Fomos pegos de surpresa, não sabemos o que ocorreu. Estamos fora. Queremos ficar dentro”.

Isto é o que está acontecendo conosco também. Mas não é só o PT que está fora. São mudanças que atingiram o mundo todo e levam toda esquerda a dificuldades. Estamos falando em vão, com formas discursivas que amplos setores da sociedade não prestam mais atenção.

Aqui no Brasil também existe a possibilidade de movimentos de rebeldia política e econômica. Eles não têm direção, um organizador, e podem ser aproveitados pelo fascismo, como a equipe “ideológica” em rede do [Jair] Bolsonaro está aproveitando até agora.

Temos que aprender urgentemente como falar com este mundo novo do trabalho nestes tempos de relações sociais em rede. A luta é pela hegemonia. E a luta da hegemonia se faz através de valores.

Nós, da esquerda, precisamos determinar nossos compromissos e buscar convergências com outros campos políticos. Avaliarmos as condições das alianças e decidirmos unir (ou não) forças sociais, dependendo de cada situação concreta.

Acho que a frente ampla do Uruguai é uma inspiração. É uma aliança composta por organizações sociais, partidos e personalidades. Os uruguaios, antes de nós, entenderam esta nova pluralidade, esta nova fragmentação da sociedade e constituíram uma forma de organização política que teve abrangência e princípios.

Eles perderam as eleições ano passado, mas a sua derrota não permitiu a ascensão do fascismo, que espreita sempre os momentos de crise. Eles aglutinarem mais setores sociais e por isso suas conquistas democráticas foram mantidas.

Para compor uma frente de esquerda o PT precisa trabalhar com a possibilidade de não indicar o candidato em uma chapa na eleição presidencial. E acho que se o PT não está preparado, tem que se preparar para isto. Eu defendo Lula ou [Fernando] Haddad como candidatos, mas nossa opinião tem que ser avalizada sinceramente por todas as forças convergentes.

Não é pelo fato de o PT ter o maior número de votos na esquerda, e ele tem de fato, que deve ter sempre as cabeças de chapas. O partido tem que conduzir o projeto de alianças pela questão programática e avaliar qual candidato tem mais chance de vencer a eleição. Não podemos ser hegemônicos pré-datados.

Esta revisão de procedimentos vale para as políticas partidárias internas também. O PT tem instâncias democráticas que funcionam, mas eu creio que existe uma hegemonia que paira sobre estas instâncias de como e “o quê” elas devem decidir. E esta capacidade de influenciar recai, principalmente, sobre o grupo paulista.

Nessas reflexões, o PT também precisa compreender que há diferença entre política partidária e políticas de governo. Até porque as responsabilidades são diferentes. Você pode pegar a sucessão do presidente Lula como exemplo.

O nome da companheira Dilma foi aprovado pelo partido através de uma proposta do presidente Lula, sem debate. Hoje, a opinião generalizada do PT é que ela teve uma enorme dificuldade de compreender de maneira adequada as diferenças internas que o partido tinha.

Ela não sofreu golpe exclusivamente por este motivo, mas como o partido não conseguiu dialogar com a Dilma, e nem a presidenta com o partido, não foi possível formar um núcleo político dirigente que processasse a resistência. O Fernando Haddad era prefeito de São Paulo, por exemplo, e ficou meses tentando marcar uma reunião com a Dilma. Sem sucesso.

Agora, você me pergunta se a presidenta Dilma é culpada? Eu não acho isso. Acho que ela é vítima dessa situação, que não foi enfrentada de maneira adequada pelo conjunto dos nossos dirigentes.

Na minha opinião, verei a reestruturação do PT se viver até uns 90 anos [Tarso tem 72 anos]. Acho que estamos numa fase de transição e formulação de uma nova esquerda num momento em que o próprio capitalismo não se reacomodou. As relações pessoais em rede, a fragmentação das relações de trabalho estão em curso. As mudanças continuarão em ritmo acelerado, e nós correndo atrás delas.

Acho que nos próximos 15 anos deveremos ter alguns governos mais ao centro, mais à direita e ameaças fascistas como o governo Bolsonaro. E acredito que o PT vai manter mais ou menos seu status e eleitorado, permanecendo atuante na sociedade brasileira.

Até pela força política do presidente Lula. Mas precisamos oferecer respostas mais consistentes sobre a questão democrática e a natureza da sociedade que desejamos.

E eu trabalho para buscar essas respostas. Continuo filiado ao partido, me orgulho disso, tenho contatos com companheiros da direção nacional, deputados e, eventualmente, com o próprio presidente Lula. E pretendo continuar ajudando com as relações que mantenho.

Mas, no momento, não tenho aspirações políticas que me seduzam a concorrer nas eleições. As pessoas ouvem que não vou mais concorrer e acham que estou “aposentado”. Continuo militante ativo e pensante.

Eu e um grupo de companheiros elaboramos documentos que submetemos aos partidos de esquerda. Sigo discutindo e escrevendo artigos. Pretendo ajudar, com meus limites, não somente ao PT, mas os companheiros de todos os partidos de esquerda que pensam numa renovação de paradigmas da esquerda.

Já fiz várias autocríticas nesta jornada de 58 anos de militância. Tenho meus arrependimentos. Quem não tem é porque não está na vida. O maior deles foi ter derrotado o então governador Olívio Dutra na prévia do PT em 2002. Impedi o Olívio de tentar a reeleição e perdi.

Resolvi concorrer naquela eleição porque a disputa interna no partido estava muito radicalizada. Foi um erro político de minha parte. O Olívio deveria ter sido candidato. Eu tratei de recuperar as nossas relações pessoais e políticas, mas é um período que eu guardo com uma lembrança amarga.

A minha decisão também causou um incômodo doméstico. A Luciana [Genro, filha de Tarso] deu uma declaração dizendo que achava que o Olívio deveria ter sido o candidato do PT. A partir disso, houve uma pequena rusga entre nós. Durou uns dois dias, mas foi transmitida pela mídia como se fosse uma “crise” de pai contra filha.

Eu e a Luciana temos uma relação extraordinária e amorosa. Até hoje eu brinco com a Luciana perguntando quando ela vai fazer campanha aqui em Porto Alegre. Quando ela volta de uma jornada eu pergunto: “Dos dez votos que tu ganhaste hoje, oito não foram porque és minha filha”? Ela ri e diz: “só metade”.

Este episódio com o Olívio foi o ponto baixo de uma trajetória que começou na década de 1960. Quando vivia com meus pais, eu tinha aquela energia que caracteriza alguns jovens. Minha mãe pedia para meu pai me levar nos compromissos do PTB. Ele era da ala janguista do partido, foi vereador, vice-prefeito. Eu acompanhava as discussões, os debates e fui tomando gosto.

Como aquele guri que vai com o pai ao futebol e se apaixona pelo esporte. Entrei no movimento estudantil com 14 anos, fui preso no congresso da UNE em Belo Horizonte em 1966, parei no Dops em Porto Alegre e acabei por me exilar dois anos no Uruguai. Recomecei depois minha carreira advogando nos sindicatos, já em Porto Alegre.

Tudo isso para nesta fase da vida ver um integrante do governo federal fazer um vídeo copiando um líder nazista! Sobre esse assunto tenho uma memória pessoal amarga porque minha família por parte de mãe descende de judeus alemães. Meu avô Herman Herz morou na nossa casa e sempre falava dos irmãos.

Um deles, o Carl Herz, era jurista, social-democrata e foi prefeito de um distrito de Berlim na época em que o Hitler tomou o poder. Precisou fugir para Inglaterra. Mas um filho dele não conseguiu escapar. Foi levado para Auschwitz [maior símbolo do holocausto] e morreu lá.

O outro irmão, o Jorge, ficou 60 anos sem conseguir ver meu avô. Então, aquele vídeo toca muito a gente e de uma maneira muito dolorosa. Tão triste, mas muito mais desconcertante, foi ver que num evento na Hebraica o Bolsonaro foi chamado de “Mito” pelo público. Mito é como o Hitler se apresentava na sociedade alemã.

Mas esses fatos só me dão mais impulsos para seguir na luta. Espero chegar aos 90 anos e ver que o PT, a esquerda e o Brasil estarão diferentes e melhores. Quem sabe até me animo, daí, a de participar da festa de aniversário do partido.