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O diagnóstico de Harvey

Em Política anticapitalista na época do COVID-19, curto artigo publicado no site A Terra É Redonda, David Harvey analisa os possíveis impactos da pandemia, a partir de sua visão sobre as contradições inerentes ao sistema capitalista.

Bloqueios e interrupções no fluxo de capital levam a recessões, diz ele, que, por sua vez, podem “sinalizar o início de crises”. Já se registrava, antes do coronavírus, uma crise de legitimidade nas economias neoliberais, expressa em protestos populares por toda parte, e relacionada com a insuficiência da quantidade de demanda efetiva necessária “para realizar a massa de valor que o capital é capaz de produzir”.

Inicialmente, os mercados subestimaram o impacto do coronavírus, imaginando-o localizado só numa região da China. A crise se tornou entretanto global, num momento em que políticas de austeridade implantadas por muitos governos privaram o sistema de saúde de recursos necessários.

A exposição de Harvey, até metade do artigo, é fatual e não se arrisca a grandes prognósticos.

Dois aspectos, porém, acendem meu sinal amarelo ao ler esse texto. O primeiro é a acusação de Harvey às grandes corporações farmacêuticas, que vai como segue.

As empresas que compõem a Big Pharma têm pouco ou nenhum interesse em pesquisas não remuneradas sobre doenças infecciosas (como toda a classe de coronavírus conhecida desde a década de 1960). A Big Pharma raramente investe em prevenção. Ela tem pouco interesse em investir na prevenção de crises de saúde pública. Ela adora desenhar curas. Quanto mais doentes estamos, mais eles ganham. A prevenção não contribui para o valor do acionista.

Será? A Sanofi é uma gigantesca produtora de vacinas. Compras governamentais são essenciais para o lucro dessas empresas. Um quinto das receitas da GlaxoSmith Kline vêm das vacinas. Uma vacina da Pfizer, a Prevnar 13, contra o pneumococo, irá garantir-lhe 5,7 bilhões de dólares até 2024.

Pode-se dizer que ele não está pensando só em vacinas quando fala em prevenção; certamente, campanhas para que todos lavem as mãos e investimentos em saneamento básico não trazem lucros às indústrias farmacêuticas, mas seria excessivo imaginar que o setor estabelece empecilhos a providências públicas dessa natureza.

O segundo aspecto que me traz desconfiança no artigo de Harvey é o que ele escreve sobre turismo.

O turismo internacional foi emblemático. As visitas internacionais aumentaram de 800 milhões para 1,4 bilhão entre 2010 e 2018. Essa forma de consumismo instantâneo exigiu investimentos maciços em infraestrutura, em aeroportos e companhias aéreas, hotéis e restaurantes, parques temáticos e eventos culturais, etc.

Esse locus de acumulação de capital está agora morto por afogamento, as companhias aéreas estão quase na bancarrota, os hotéis estão vazios e o desemprego em massa nos setor hoteleiro é iminente. Comer fora não é uma boa ideia e restaurantes e bares foram fechados em muitos lugares. Mesmo delivery parece arriscado. O vasto exército de trabalhadores que vivem de bicos ou outras formas de trabalho precário está sendo demitido sem meios visíveis de apoio. Eventos como festivais culturais, torneios de futebol e basquete, shows, convenções profissionais e de negócios e até reuniões políticas em torno das eleições são cancelados. Essas formas de consumismo experiencial “baseadas em eventos” foram encerradas. As receitas dos governos locais entraram em colapso. Universidades e escolas estão fechando.

Pura verdade. Mas seria possível tirar de uma situação conjuntural consequências para o futuro do capitalismo em geral? Aparentemente, Harvey acredita que sim.

Grande parte do modelo de vanguarda do consumismo capitalista contemporâneo é inoperável nas condições atuais. O esforço em direção ao que Andre Gorz descreve como “consumo compensatório” (no qual trabalhadores alienados deveriam recuperar o ânimo através de um pacote de férias em uma praia tropical) foi contido.

A mágica do texto está no termo “condições atuais”. Não sabemos o quanto irão durar: dois meses? Quatro? Seis? O prognóstico econômico varia muito enquanto não soubermos disso. Sem dúvida, quando se escreve “condições atuais” e não “no momento”, ou “na atual crise do coronavírus”, o quadro se torna mais grave, e por contaminação semântica pode ser lido como “nas condições atuais do capitalismo tardio”, ou qualquer fórmula equivalente. Harvey continua.

Mas as economias capitalistas contemporâneas são setenta ou oitenta por cento impulsionadas pelo consumo. A confiança e o sentimento do consumidor nos últimos quarenta anos se tornaram a chave para mobilizar a demanda efetiva, e o capital tornou-se cada vez mais orientado pelas demandas e necessidades. Essa fonte de energia econômica não foi sujeita a flutuações bruscas (com algumas exceções, como a erupção vulcânica da Islândia que bloqueou vôos transatlânticos por algumas semanas).

Mas o Covid-19 está sustentando não uma flutuação violenta, mas um colapso onipotente no coração da forma de consumo que predomina nos países mais ricos. A forma espiral de acumulação infinita de capital está entrando em colapso interior, de uma parte do mundo para outra. A única coisa que pode salvá-lo é um consumo em massa financiado pelo governo e conjurado do nada. Isso exigirá socializar toda a economia dos Estados Unidos, por exemplo, sem chamar isso de socialismo.

Por que seria um “colapso onipotente” e não uma “flutuação violenta”? Nova contaminação semântica, talvez, quando inconscientemente lemos “permanente” em vez de “onipotente”. E desde quando o financiamento (provisório) de consumo em massa pelo governo levaria a “socializar toda a economia dos Estados Unidos”? Concessões provisórias de perdão a dívidas pessoais, programas de renda mínima, financiamento público subsidiado de férias na Disney seriam sinônimos, a meu ver, de “socializar toda a economia dos Estados Unidos”?

Qual o impacto do coronavírus sobre gastos públicos, sistema de seguros, solidez dos bancos? Talvez possamos, no futuro, ver no momento atual o início de uma crise realmente grave no sistema. Mas, como sempre, impõe-se a meu ver alguma prudência ao extrapolar uma crise setorial e humana obviamente grave, mas circunscrita no tempo, para a dimensão do pós-capitalismo.