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Memórias

Ruy Fausto, ¾ de bolchevique

Uma das características da concepção dialética das significações — e, se poderia dizer, em geral, da dialética — é a ideia de um espaço de significações em que estão presentes zonas de sombra. Esse espaço contém um halo escuro, e não somente regiões claras, isto é, regiões que, em princípio, podem ser clarificadas, como supõem em geral as descrições não dialéticas. Longe de representar o limite, em sentido negativo, das significações, as zonas de sombra lhes são essenciais. Sem elas, o discurso não significa mais o que significa. Se não se introduz essa ideia de um halo de sombra, toda tentativa de apresentação rigorosa da dialética fracassa necessariamente.1

Uma vez certos de não estarmos à altura para realizar qualquer análise original do vasto trabalho de Ruy Fausto, gostaríamos somente de traçar um singelo perfil intelectual a partir de alguns de nossos episódios em sua companhia — um pouco como Hegel, que introduzia cada filósofo, em seus cursos de história da filosofia, com deliciosas anedotas que, ao mesmo tempo, já eram uma forma de entrada no próprio assunto. Pois quem sabe assim não conseguimos, com algumas mediações, jogar luz sobre certas sombras projetadas por sua obra. Como, por exemplo, poderíamos nos maravilhar com o fato de ele ter escapado de duas ditaduras (1964 no Brasil e 1973 no Chile) para poder também intuir o ímpeto filosófico que norteou a vida de Ruy — uma vida que, mesmo estando invariavelmente posta na fronteira e no fundamento dissoluto entre pesquisa acadêmica original, polêmica “atuação política” e intenso debate público, nunca deixou de conservar o lado humano, dócil e amistoso, até no mais intenso confronto de ideias dos quais ele tantas vezes participou.

Há cerca de três anos atrás, nos foi comissionado, pela revista de graduação Primeiros escritos, do Departamento de Filosofia da USP, entrevistar um professor emérito do departamento. Inicialmente, a ideia foi Oswaldo Porchat, mas após uma enérgica recusa (“não quero mais falar de filosofia”, disse ele ao telefone), nos tornamos para Ruy Fausto. Não o conhecíamos pessoalmente. No e-mail de apresentação, um deslize: escrevemos que gostaríamos de conversar com “um professor histórico”, a que Ruy respondeu na hora: “Vai aí uma resposta do professor ‘histórico’”. Conseguimos marcar a entrevista para um período em que Ruy estava no Brasil, ele que, como disse alguma vez Paulo Arantes, tinha essa curiosa característica de morar em Paris e escolher vir passar as férias na USP. Um fator importante, naquele momento, era que Ruy havia acabado de soltar, na revista Piauí, um longo artigo em que, à certa altura, fazia críticas políticas contundentes a muitos intelectuais da esquerda, incluindo Marilena Chauí, de modo que, em parte considerável do departamento, pairava sobre seu nome uma nuvem negra de desconfiança, senão até de certo “cancelamento” (como agora está em voga dizer). Porém, temos de confessar nossa “surpresa” ao mergulharmos de cabeça por alguns meses na obra teórica de Ruy como preparação para a entrevista e descobrirmos que, por detrás do artigo da Piauí havia um sólido trabalho teórico e histórico — dialéticas, Dardot e Laval, revisão histórica da “revolução” de fevereiro, socialistas menores, psicanálise, Adorno, todo seu arsenal.

Qual não foi nossa surpresa ao perceber que Ruy era uma pessoa diferente do que imaginávamos, ao menos para quem só o conhecia enquanto a voz de seus textos. Pois de toda aquela sobrepujante torrente filosófica e mordaz crítica política que caracterizavam sua escrita tirávamos a impressão de um sujeito muito mais seguro de si, confiante e impositivo do que o homem que encontramos diante de nós naquela tarde que o entrevistamos. Não que ele fosse inseguro ou indeciso, mas é preciso entender, como nós aos poucos fomos entendendo, que Ruy era sobretudo um homem frágil, e não apenas fisicamente como também ontogeneticamente — ele nos falava sempre de sua enorme dificuldade em escrever, questão que se unia ao seus traumas de roubo intelectual e “questões de família” (as quais ele nunca nos disse quais eram e não cabia a nós perguntarmos). E nesse sentido, seus textos eram uma luta contra essa fragilidade, e uma luta que ele travava no sentido da sobrecompensação — tratava-se sempre de submeter a extenuante escrutínio cada linha, cada passagem do argumento, cada texto de autor menor que fizesse parte da constelação examinada.

Para sua versão final de nossa entrevista, Ruy, evidentemente desconfiado, retirou uma série de coisas, inclusive uma passagem muito interessante em que delineava erros e acertos de Marx n’O Capital e como se deveria partir daí rumo a uma “nova crítica da economia política”, questão que era, segundo ele, tarefa de máxima urgência para a nova geração — e, obviamente, para tal tarefa não haveria melhor executor, em terras brasileiras e quiçá até no mundo, do que o próprio Ruy, apesar de sua modéstia não o permitir admiti-lo. Foi também nessa entrevista que Ruy se referiu ao que ele considerava ser “um de seus melhores livros”, que só havia visto a luz do dia na França, chamado Le Capital et la Logique de Hegel, publicado nos anos 1980. E essa referência foi o ponto de partida de uma nova empreitada nossa com ele, dessa vez mais duradoura, na qual acabamos por traduzir o tal “livrinho”, como ele carinhosamente o chamava, e que acabou por também ser revisado e atualizado e agora está alinhado para publicação pela editora da Unesp.

Algumas idas e vindas depois, em uma quarta-feira chuvosa, vai ficar em nossa memória um jantar em certa pizzaria em Perdizes, próxima ao local onde Ruy costumava ficar em suas estadas no Brasil. E não só pelo nosso espanto (filosófico com sinal contrário?) ao ver que a tal pizzaria tinha uma televisão para cada mesa, além de um imenso telão ao fundo, resultando em toda uma enorme sobreposição e embaralhamento de inúmeras imagens e sons. Ficou-nos marcado, sobretudo, porque nossa expectativa em discutir uma série de intrigantes tópicos filosóficos que Ruy já nos havia deixado escapar acabou completamente frustrada. Era notável como ele costumava se desvencilhar de “temas sérios” (como, por exemplo, de uma grande pergunta sobre um tema da Metafísica aristotélica, sobre a qual falamos até hoje) com argúcia algo desanimadora para um espectador filosófico, embora não menos interessante em seus próprios termos, por meio de um comentário sobre suas idas ao estádio do Pacaembu com seu irmão, uma ou outra deliciosa história de Bento Prado Júnior ou de algum causo ocorrido na França. Por outro lado, porém, aguardávamos sorrateiramente por lapsos imprevistos em sua autovigilância filosófica. Por exemplo, como, diante da visão caótica do mar de televisões e imagens, a indignação de Ruy (“barbárie, é a barbárie”), seguido do apelo enfático aos garçons para que desligassem tudo, nos tornou claro que em sua cabeça estavam frescos temas da Dialética negativa, que ele então andava lendo a torto e a direito. Aos poucos fomos percebendo: a maioria das pessoas ao nosso redor jamais consegue ser filosófica, mesmo quando fala de filosofia; com os grandes filósofos (e aqui com a perdão ao Ruy, que não apreciava inteiramente ser chamado de filósofo — “o filósofo, mesmo, era o Bento”, dizia ele), acontece o contrário: a filosofia aparece ali onde ninguém a solicita, e mesmo onde ela aparentemente não está, ela ali permanece, pressentida e pressuposta, como um halo escuro necessário e ao qual jamais se pode ser indiferente.

E foi também nesse mesmo restaurante de Perdizes, mais algumas idas e vindas depois, onde nos divertimos chamando-o de “¾ de bolchevique”, alcunha que, na verdade, ele dizia ter sido empregada para Kerenski, importante figura da “revolução” de fevereiro de 1917. Imaginamos, contudo, ter sido estranho para os ouvintes da mesa ao lado, visto ter esse assunto surgido entre outros em um almoço de domingo à 28 de outubro de 2018, dia do segundo turno das eleições daquele ano. O temor daquele momento, porém, vinha menos do ambiente inundado de camisas da seleção canarinho ou da leitura política de Ruy, que previa a calamidade que se avizinhava. Era, sobretudo, o fato de ter uma entrevista marcada na rádio às 20h daquele fatídico domingo que amedrontava nosso amigo — que nos perguntava, insistentemente, quais eram nossos planos para aquela noite, se não queríamos levá-lo até a rádio ou se achávamos que haveria algum risco de ser reconhecido por eleitores bolsonaristas. Diante disso, o própria Ruy se conformava: “bem, acho que pelo menos, antes de mim, eles vão atrás do Vladimir [Safatle], dá tempo de eu fugir de volta para a França”. Essa atitude intelectual diante do abismo nos faz hoje entender melhor que a política, com Ruy Fausto, gozava de um duplo estatuto — crítica original aos erros cometidos, normatividade definidora dos campos de ação da esquerda de modo geral — mas que também era aliada ao seu próprio horizonte de ação, no seu sentido cotidiano mais banal.

O último a encontrá-lo, de nós, foi Paulo, em um almoço longo e alegre, oriundo de mais um encontro inesperado nos corredores da FFLCH. Desta vez, além das inúmeras histórias do departamento francês e do de ultramar, um debate sobre conjuntura nacional e internacional que, com a presença de Vladimir Safatle, não poderia ter sido mais antitético. De um lado, o alarme de golpe militar e a certeza da vitória de Trump diante do fraco candidato do establishment, Joe Biden; de outro, a perspectiva de diminuição das bases bolsonaristas e da possível divisão das forças armadas, assim como uma ressalva à mobilização dos diversos prefeitos progressistas da Europa contra a escalada autoritária, entre outras divergências. Mas presenciar Ruy ponderando diagnósticos catastróficos nunca significou inocência. Sempre tivemos a impressão de operar aí, mais uma vez, um exigente pressuposto filosófico às escondidas diante da imediatidade das soluções e vislumbres trágicos.

Enfim, almoço seguido de café, sobremesa e cenas da vida cotidiana francesa e brasileira, tudo terminado com a impressão de que o halo escuro esteve sempre operando em cada debate, texto e pensamento de nosso amigo. Tal dialética de luz e escuridão — ou melhor, a dialética em seu sentido amplo — sempre iluminou o pensamento de Ruy, seja pelo ímpeto filosófico que dirigiu sua vida, seja pela sobrecompensação que se exprimia na potência crítica, política e filosófica de um homem frágil, seja pela presença filosófica ali onde ela não se expressava. Como se devêssemos pensar, nesse sentido, que a pessoa Ruy sempre carregava consigo uma espécie de tríade “vida-filosofia-política” inseparavelmente. Que esta fique como uma pequena memória à nossa enorme admiração (não apenas pressuposta, como exigiria um rigoroso tratamento dialético) pelo trabalho e pela tríade que era Ruy Fausto.