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Memórias

Ruy Fausto In Memoriam1

original en français

Ruy Fausto foi, sem dúvida, um dos mais importantes intelectuais brasileiros de nossa época. Ele foi um brilhante intérprete da obra de Marx, um autêntico “marxólogo”, para utilizar um termo proposto por Maximilien Rubel. Sua obra mais notável é, certamente, a coleção em vários volumes: Marx: lógica e política. Esse foi também o tema de sua tese de doutorado, sob a orientação de Jean Toussaint Desanti, defendida em Paris em 1988. Uma das contribuições específicas dessa pesquisa foi precisamente essa articulação entre a lógica dialética e a política de Marx, aspectos geralmente separados nos trabalhos sobre o autor de O Capital. Nessa vasta obra, cuja redação tomou dezenas de anos, ele abordou diversos outros problemas filosóficos debatidos na literatura marxista: humanismo e anti-humanismo, historicismo e anti-historicismo, antropologismo e crítica do antropologismo. Ele procurava se situar nessas controvérsias em uma perspectiva dialética para além dos dualismos rígidos. O Capital de Marx ocupa evidentemente um lugar central nessa reflexão, não em uma abordagem economicista, mas do ponto de vista da lógica dialética. Ao longo desse caminho, Ruy Fausto vai se afastar progressivamente do marxismo, mas não da dialética, que continua a inspirar sua metodologia.

Além dessa imensa obra “marxológica”, que não tem equivalente na literatura brasileira sobre Marx, Ruy Fausto publicou nos últimos anos diversos ensaios sobre o Brasil: trabalhos de historiografia como O ciclo do totalitarismo (2017) ou intervenções no debate politico como Caminhos da esquerda. Elementos para uma reconstrução (2017). Ele também participou da fundação de novas revistas políticas com jovens universitários: primeiro Fevereiro e, mais recentemente, Rosa. Ruy se definia como um intelectual de esquerda antitotalitário, especialista em Marx sem ser marxista.

Algumas observações mais pessoais

Com a morte de Ruy Fausto, perco um amigo muito próximo: conhecíamo-nos há mais de sessenta anos. Eu o encontrei pela primeira vez por volta de 1958, quando ele tentou me recrutar para o Partido Operário Revolucionário, o POR (trotskista), do qual ele era um dos principais dirigentes: ele quase conseguiu… (eu continuei “luxemburguista”). Em 1960, ele me convidou para acompanhá-lo em um encontro com Jean-Paul Sartre, então em visita ao Brasil, com Simone de Beauvoir, conosco estava também Olavo, um operário do POR. Eu não me lembro exatamente do tema da conversa, eu penso que era a revolução argelina, e, sem dúvida, a situação social do Brasil. Em suas memórias, Simone de Beauvoir descreveu assim esse encontro: “Sartre recebeu a visita de trotskistas. Estavam em três: a direção, a base e a dissidência…”.

Por volta dessa época, também nos encontramos no seminário de O Capital de Marx, com Fernando Henrique Cardoso e Paulo Singer. Durante os quatro anos seguintes (1961–64), fomos ambos bolsistas em Paris, estudando Marx. Nós éramos muito próximos, víamo-nos quase todos os dias, e compartilhávamos uma visão anti-stalinista do marxismo. Eu fiquei na Europa, mas Ruy voltou ao Brasil e se engajou na resistência ao regime militar. Quando a repressão policial se intensificou, em 1969, ele foi obrigado a se exilar — no Chile, como muitos outros intelectuais brasileiros de esquerda. Foi em Santiago que o golpe militar de Pinochet o surpreendeu em 1973, obrigando-o a tomar de novo o caminho do exílio, dessa vez para Paris. Eu o ajudei a encontrar um cargo de professor no departamento de filosofia da Universidade Paris 8 (Vincennes), que praticava nessa época uma política de acolhida aos refugiados do Chile. Infelizmente, essa universidade nunca o reconheceu como ele merecia, e não o promoveu a professor titular.

Nós continuamos a nos ver, mas com certa distância, resultado de seu afastamento do marxismo. Em 1986, apareceu seu primeiro livro importante, Marx: lógica e política. Investigações para a reconstituição do sentido da dialética (Publisud), com um prefácio de Jean-Toussaint Desanti. Publiquei na Quinzaine Littérair de 1 de junho de 1987 uma resenha do livro, essa foi uma das raras, senão a única, publicada na França. Aqui uma passagem de meu artigo:

O que mais se pode dizer sobre Marx, perguntam certos espíritos cansados. Isso é esquecer que Marx pertence (como Platão, Hegel ou Nietzsche) a essa espécie de pensadores inesgotáveis, que suscita, a cada época, a cada período histórico, politico ou cultural, novas interpretações, novas críticas ou refutações. A originalidade do livro de Fausto se manifesta em muitos níveis: de um lado, uma postura face ao marxismo que recusa as soluções habituais, ou seja, tanto a defesa de uma ortodoxia, quanto as falsas “ultrapassagens” — orientação que lhe permite mostrar (principalmente a partir dos escritos recentes de Castoriadis) que toda crítica do Capital que não leve a sério a dialética como discurso da contradição fica aquém de Marx. De outro lado, uma posição nova face ao debate entre partidários e adversários do humanismo teórico (antropologia), que esboça o fundamento — pela Aufhebung dos dois polos tradicionais — para uma outra leitura da obra de Marx (desde os escritos de juventude até O Capital) capaz de ultrapassar os limites do entedimento pré-dialético. Enfim, uma contribuição à “reconstrução da dialética”, em oposição polêmica às principais tendências da cena filosófica atual: neomoralismo, teorias da morte do Homem, filosofias da irresponsabilidade, positiviso tecnocrático.

Em 1988, participei da sua banca de tese, sobre lógica e política em O Capital de Marx, orientada por Desanti. Consultando minhas notas dessa defesa, achei a seguinte passagem de minha intervenção:

Ruy Fausto é obstinado. Desde que eu o conheço, ele estuda os escritos de Marx: são trinta anos de trabalho “pressupostos” nessa tese, em que elas são “negadas e conservadas” — aufgehoben… A primeira coisa que surpreende em sua tese é sua coerência, apesar da aparente dispersão dos temas e da redação em épocas diferentes. É também um trabalho que se distingue por sua originalidade, em relação aos debates do marxismo contemporâneo: nem humanista, nem anti-humanista, nem historicista, nem anti-historicista… Essa tese combina o conhecimento erudito dos textos, o rigor lógico da demonstração, e ao mesmo tempo uma abertura para as questões sociais e políticas mais atuais — dimensões que raramente andam juntas!

Claro que formulei também certo número de críticas: eu reprovo sobretudo uma visão excessivamente “objetivista” da dialética, que subestima a dimensão “prático-subjetiva”, e que portanto se inclina para o lado do anti-historicismo… Nós tivemos também uma pequena controvérsia a respeito da tradução do conceito hegelo-marxiano de Aufhebung: Ruy o traduzia por “supressão”, enquanto que eu defendia que ele significa ao mesmo tempo supressão, conservação e elevação a um nível superior. Não consegui convencê-lo…

Ao longo dos anos 1980, Ruy retomou seu cargo na Universidade de São Paulo e eu comecei a visitar regularmente o Brasil. Contudo, raramente nos encontrávamos em São Paulo; nossos encontros aconteceram principalmente em Paris, onde ele passava uma parte do ano. Ele me convidou para participar de sua revista Fevereiro, mas eu não estava realmente de acordo com o projeto, eu estava mais próximo da revista Outubro… Nossas divergências se relacionavam também à América Latina — eu não partilhava de sua alergia por Cuba ou por Hugo Chávez — e sobre o Brasil, especialmente sobre o MST, que eu defendia contra suas críticas.

Nosso último encontro aconteceu há alguns meses, nós trocamos nossos últimos livros e tivemos uma longa conversa sobre Rosa Luxemburgo — que ele admirava, mas com certa distância —, sobre o bolchevismo — que ele rejeitava em bloco — mas também sobre a crise da esquerda brasileira, o PT e a ascensão de Bolsonaro. Gostei muito de sua polêmica contra Olavo de Carvalho. Seu último e-mail, há algumas semanas, foi um convite para participar da revista Rosa. Eu respondi que iria estudar os documentos da revista, mas que estava decepcionado que no primeiro número não havia nada sobre… Rosa Luxemburgo.

Ruy era um intelectual brilhante, sutil, com uma imensa cultura filosófica e política, que defendia com ardor suas ideias políticas, sua opção por uma “esquerda antitotalitária”. Ele tinha muito humor, adorava contar piadas e anedotas. Ao mesmo tempo, ele era frágil, sempre ansioso, inquieto, reclamando de ser vítima de plágios. Seu último combate, contra o bolsonarismo, mostra que não lhe faltavam nem a coragem, nem a força da convicção. Sentiremos sua falta…