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Memórias

Ruy Fausto, o maior especialista em Dr. Burdin1

Escrever sobre um grande homem, por ocasião da sua morte, contando conversas e os contatos que tivemos com ele, é um exercício perigoso. O narcisismo espreita. O narrador fala mais de si mesmo — em geral, bem — do que do homenageado. Não vou escapar à regra, porque a derrapagem narcisista parece fazer parte do gênero. Mais do que isso: vou abusar do gênero. O que vem aí é uma miniautobiografia, recortada pela narrativa de encontros com Candido e Gilda. De qualquer modo, não vou me furtar ao exercício. O leitor fará o devido desconto. De resto, os testemunhos serão muitos, e o Antonio Candido “de verdade” — para utilizar uma expressão que ele explicitamente apreciava, em substituição ao pedante “histórico” — há de surgir da multiplicidade dos perfis egocentrados.1

A passagem acima, uma das mais belas e inteligentes maneiras de iniciar uma homenagem a alguém que acaba de falecer, foi escrita por Ruy Fausto, meu homenageado de agora, em memória de Antonio Candido, recém-falecido, no agora já longínquo ano de 2017. O texto de que provém o excerto me foi enviado, no dia da morte de Ruy Fausto, por um amigo muito querido que nele identificara, de maneira quase cifrada, uma anedota — da qual tratarei mais adiante — que de certa forma me unia afetivamente ao Ruy. Talvez, por essa razão, o texto e a referida passagem tenham me marcado tanto, assim como me marcou a própria notícia do falecimento de Ruy Fausto naquele dia.

Para além de seu conteúdo afetivo, admito que o excerto acima possui também para mim um valor bastante prático. Reproduzo-o aqui, no caput deste artigo, menos com o intuito de fazer dele um espelho, uma espécie de modelo a ser seguido, e mais com a intenção de utilizá-lo como um salvo-conduto — para as “derrapagens” que eu mesmo vier a cometer a partir de agora. Assim como Ruy, abusarei do gênero. Naturalmente, não pela via da autobiografia — ainda que munido de meu salvo-conduto, há certos limites protocolares que convém observar. Mais do que a observância ao protocolo, há também uma imposição dos fatos: meu contato com Ruy Fausto foi breve — limitado a esses últimos quatro anos — e bastante pontual — restrito a poucas ocasiões, de algumas das quais falarei em detalhes logo a seguir. Entretanto, apesar de breve e pontual, esse contato deixou em mim marcas profundas, impressões bastante vívidas, às quais penso recorrer com frequência seja para pensar a política, a filosofia ou a universidade — ou (por que não dizer?) a própria vida, em sentido mais amplo.

Ao me dispor a escrever em sua homenagem, apesar daquilo que há de genuíno no gesto, vejo-me, entretanto, em profundo embaraço. Em primeiro lugar, não sou conhecedor da obra de Ruy Fausto, apesar de ser capaz de reconhecer, com rigor e sem afetação, o seu lugar e sua importância na história do pensamento brasileiro. Pequena confissão: desde que me comprometi com a escrita deste artigo, pus-me a ler, de maneira um pouco azafamada, alguns dos textos clássicos de Ruy — apesar de tê-los na minha estante, em sua maioria, estiveram lá todos estes anos (por razão que desconheço) praticamente intocados. É verdade que os li agora com grande entusiasmo e até certa disciplina. Não a disciplina de quem pretende efetivamente preencher lacunas de conhecimento em curto espaço de tempo, mas mais de quem tem consciência de que irá delinquir e ambiciona escapar impune — “tentar não dizer nenhuma bobagem”, foi um pouco esse o espírito que me moveu.

Apesar de não ter — definitivamente — me tornado um especialista no corpus faustiano, meu intensivo foi importante para me convencer de algumas coisas: em primeiro lugar, que era preciso escrever sobre o Ruy; em segundo lugar, por que era preciso fazê-lo — ao menos, do ponto de vista das minhas próprias convicções. Ruy Fausto era representante, no meu entendimento, de certa atitude — teórica e prática — sem par na esquerda brasileira. Sua morte, num certo sentido, nos deixa órfão de uma figura que tentava, quase sozinho, abrir um buraco, ou ocupar um espaço, numa região consideravelmente inóspita do espectro ideológico — ou antes, talvez nem mesmo reconhecida enquanto região, mas apenas como um distrito limítrofe, no interior do qual diversas línguas são faladas (sem que haja compreensão mútua) e por onde circulam, um pouco caoticamente, pessoas, ideias, hábitos e mercadorias absolutamente heterogêneos entre si.

Ruy era, naturalmente, um cara de esquerda. Ex-trotskista, dedicou a vida toda ao estudo de algo que, aparentemente, desejava destruir — apenas aparentemente. Já não se dizia marxista, pelo que ouvi dizer, há mais de vinte anos, embora conservasse do marxismo (corrijam-me se eu estiver errado) a crítica da economia política — e, consequentemente, a luta anticapitalista — e o modo de pensar dialético — essa sim, a dialética, sua grande obsessão. O curioso é que não parecia haver no Ruy nem sombra de ressentimento. Explico-me: a história do século XX é pródiga em exemplos de jovens militantes de esquerda — e normalmente trotskistas, o que é curioso — que ao, digamos, percorrer o “arco da maturidade”, passam por um processo de feroz desencantamento, acabando por se tornarem grandes e azedos reacionários. Não havia nada disso no Ruy, pelo contrário.

Parecia haver no Ruy a convicção de que, no interior da tradição marxista, ele encontrara, afinal, uma ferramenta de análise extraordinária — a dialética — sem a qual, tudo leva a crer, a esquerda não poderia mais seguir adiante. Tendo se convencido disso, e não conseguindo mais olhar para o mundo de forma não dialética — quase como uma maldição que o acompanhasse —, Ruy se viu forçado a voltar a dialética contra a própria história da esquerda e consequentemente contra a própria história do marxismo, um de seus momentos privilegiados. Ruy não é o único, naturalmente, a fazer a crítica do marxismo, mas desconheço alguém que a tenha feito tão dialeticamente. Se o afastamento com relação às crenças de juventude — o marxismo e o trotskismo — não se dera pela via do ressentimento, desilusão, tampouco se dera no sentido de uma guinada liberal. “se a esquerda tem muito a repensar, não creio que os liberais tenham muita lição a dar”2, diz Ruy Fausto em uma de suas muitas entrevistas — o que não quer dizer, me parece, que o liberalismo devesse, aos olhos de Ruy, ser recusado dogmaticamente pela esquerda, mas que seria necessário indicar nele também suas grandes contradições, como, por exemplo, o acoplamento quase natural entre liberalismo político e liberalismo econômico, presente, de maneira explícita ou implícita (penso que o Ruy preferisse dizer “posta ou suposta”), em boa parte dos autores canônicos da tradição liberal.

Mas antes que eu me perca em elucubrações, de caráter mais geral, a respeito do sentido da reflexão teórica e política de Ruy Fausto (ou de interpretações minhas a seu respeito), é preciso que eu narre brevemente alguns episódios de ordem mais pessoal, do pouco convívio que tive com Ruy, que me comovem agora a escrever este pequeno texto em sua homenagem.


Conheci Ruy Fausto em 2016. Vivíamos então a ressaca do golpe e começávamos a nos articular em torno do Fora Temer. À época, eu fazia parte de um coletivo uspiano, chamado Em Defesa dos Direitos Conquistados, que, embora se dissesse (tentou ser no começo, com esforço genuíno) suprapartidário, era na verdade essencialmente petista — o que, para mim, nunca foi visto como um problema, pelo contrário, uma vez que congregava, na minha opinião, algumas das cabeças mais lúcidas da esquerda brasileira. Logo depois de consumado o golpe, e diante da prostração em que nos víamos, tive eu a “brilhante” ideia de propor ao coletivo que produzíssemos um vídeo-manifesto dos intelectuais pelo Fora Temer — “grande ideia!”, “apoiado!”, eles disseram… Vi-me obrigado a levar a cabo, então, a proposta que fizera. Com o intuito de viabilizá-la e de facilitar o meu trabalho, pensei, de início, em propor aos convidados que filmassem seus próprios depoimentos e nos enviassem depois pela internet — movidos por um espírito colaborativo, terminaríamos assim mais rápido aquela tarefa. Apenas um deles, entretanto, conseguiu fazê-lo, numa lista de uns trinta nomes — a falta de intimidade dos convidados com a tecnologia forçou-me a improvisar um plano cuja realização estava claramente fora das minhas possibilidades.

Cercando-me de pessoas que, talvez, topassem aquela “roubada”, tomei uma câmera emprestada de meu pai e pus-me a visitar os intelectuais em suas casas. Ao fim e ao cabo, devo dizer que a aventura foi muito interessante — e recompensadora. Foi numa dessas visitas que conheci o Ruy. Ele nos recebeu em sua casa, um apartamento, salvo engano, localizado no bairro de Perdizes. Apesar de morar em Paris, Ruy Fausto tinha esse apartamento em São Paulo, mas o mantinha normalmente alugado e costumava ficar em um flat nas visitas que fazia regularmente ao país. Nessa ocasião, contudo, o apartamento estava vago e Ruy achou que seria melhor ficar por ali mesmo a ter de pagar as diárias do flat. Devo dizer que a cena era encantadoramente pitoresca: um dos maiores intelectuais do país vivendo num apartamento praticamente vazio, com o luxo de um faquir. À exceção de uma mesa em “L” e de um sofá-cama, recém-adquiridos, não havia móveis na casa. Sobre a escrivaninha, um laptop e pilhas de papéis e livros — lembro-me, em especial, dos três volumes do Getúlio de Lira Neto, que Ruy andara lendo para fundamentar suas críticas ao “populismo” de Lula e do PT (depois, me parece, ele reviu sua posição e passou a falar mais em termos de “patrimonialismo” e não tanto de “populismo”).

Gravamos a primeira tomada ainda um pouco tímidos. Lá pelo fim, o Ruy se animou. Disse a ele que ainda dispúnhamos de memória para mais algum tempo. Ele foi, então, à cozinha e voltou com uma garrafa de vinho do Porto e potes de geleia improvisados como copos. Bebemos — eram umas 11 horas da manhã — e gravamos o restante da conversa. Depois de finalizada a gravação, ficamos ainda um bom tempo batendo papo. O Ruy era um legítimo causeur — falava sobre qualquer assunto com grande desenvoltura e com verdadeiro interesse por seu interlocutor. Lembro-me de ele ter perguntado sobre nossas pesquisas, nos ter dado alguns conselhos — e ter pedido insistentemente (mas sem nenhuma afetação) para que não o chamássemos de “senhor” e sim de “você”.

Depois dessa visita, não me lembro de termos mais nos encontrado pessoalmente antes de maio de 2017 (mas é possível que sim, minha memória é péssima para essas coisas) — o episódio da gravação narrado acima se dera por volta de setembro ou outubro de 2016. Desta vez, nos encontramos em Paris. Eu havia recebido um prêmio, por conta da minha pesquisa, e havia conseguido da faculdade que me pagasse ao menos a passagem aérea para ir à Paris participar da cerimônia de premiação e, naturalmente, conhecer as dependências da instituição que havia me premiado — a Maison d’Auguste Comte, antiga residência do filósofo e atualmente um importante museu e centro de documentação para os estudos do positivismo.

Passei, ao todo, uns quinze dias em Paris. Antes de ir, escrevi ao Ruy — ele estava por lá e combinamos de nos encontrar. Por acaso, ele sugeriu de nos encontrarmos na Praça da Sorbonne, aos pés da estátua de Augusto Comte.3 Assim que nos encontramos, ele me disse, gozador: “mas que ingenuidade a minha, não? Perguntar logo ao ambassadeur sur terre de Augusto Comte se ele sabia onde ficava a estátua em homenagem ao mestre?”. Dali, fomos caminhando a um restaurante que o Ruy costumava frequentar. No caminho, ele me contou a anedota que dá título a este artigo. Ruy era muito amigo de uma das maiores estudiosas de Augusto Comte na França, Juliette Grange, professora da Universidade de Tours e uma das editoras das obras completas de Saint-Simon — a quem vim a conhecer, dias depois, por intermédio dele. Certo dia, conta o Ruy, fez saber à Juliette que conhecia um tal de Dr. Burdin, personagem obscuro do entorno de Saint-Simon — e, consequentemente, também, de Augusto Comte. “A amiga estranhou: mas como, diabo, você ouviu falar desse sujeito? Era memória das aulas de [Antonio] Candido”.4 Rimos bastante da historieta — visto que eu também já havia ouvido falar no Dr. Burdin, por intermédio dos textos de Henri Gouhier, de onde, suspeito, o próprio Antonio Candido deve ter também aprendido, em primeiro lugar — e, depois disso, passei, de brincadeira, a utilizar o aposto “o maior especialista em Dr. Burdin” sempre que podia, ao referir-me ao Ruy — ele se divertia.

Depois do jantar, lembro de termos passado ainda longas horas conversando no restaurante, sobre basicamente tudo — desde a conjuntura política (de Brasil e França) até os bastidores da vida universitária. Ruy tinha essa incrível habilidade de fazer seu interlocutor se sentir extremamente à vontade numa conversa, ainda que houvesse entre os dois (como era o caso) uma assimetria gigantesca de repertório e de referências. Recusava, diligentemente e nos pequenos gestos, o respeito reverente e sempre que se procurava (até de forma involuntária) colocá-lo numa posição de autoridade ele se esquivava, tratando de restaurar certa horizontalidade no plano do diálogo. Penso que havia nisso não apenas genuína polidez, mas também o compromisso, cotidianamente firmado, com certa atitude política radicalmente democrática — afinal, a iconoclastia só não é diversionismo juvenil se for em primeiro lugar auto-iconoclasta.

Penso que, ao longo dessa minha estadia em Paris, devo ter encontrado com o Ruy quase todos os dias, e isso por uma razão bastante simples: Ruy era viciado — penso que essa seja a palavra correta — em biblioteca. Lembro-me de ele ter contado, por exemplo, que já havia ocorrido de desembarcar em Paris, de volta de uma viagem ao Brasil, e, antes mesmo de ir para casa, ir direto para a biblioteca. Para mim era fascinante ver tamanha disciplina e dedicação com o trabalho em um sujeito daquela idade. Como disseram recentemente, numa belíssima homenagem, Pierre Dardot e Christian Laval, Ruy Fausto fazia da BNF (Bibliotèque Nationale Française) seu quartel general em Paris. “A Bibliothèque Nationale não era para ele um abrigo longe dos furores e tumultos, mas um posto de observação do mundo, um arsenal de armas políticas e certamente um lugar para continuar a aprender. A sala K (da filosofia) não será mais a mesma sem ele5. E não será mesmo.

Esses encontros quase diários que tive com o Ruy fizeram dessa minha quinzena em Paris uma experiência ainda mais solar. Conversávamos muito nas pausas para o café; no meu caso, também para o cigarro — vício que, ele me alertava, ainda podia me matar. Dizia eu, em resposta, que, além de ter começado tarde (e planejar parar cedo), era preciso, afinal, ter algum vício — ao que ele rebatia, sem discordar da premissa, “que se tenha então um menos letal… isso aí mata!”. O Ruy era também assumidamente hipocondríaco — e desses dedicados. Parece que sempre teve a saúde um pouco frágil — “problemas pulmonares na juventude”, lembro de ele ter mencionado —, o que deve ter contribuído ainda mais para sua dedicação. Rápida anedota: essa preocupação do Ruy com a saúde era tão grande que o fazia ter hábitos muito particulares, ao menos durante certos períodos da vida. Lembro-me de ter ouvido a história (contarei o milagre, mas não direi o santo) de alguém que, estando em Paris, foi recebido pelo Ruy. Caminhando pela cidade, em sua companhia, notou a pessoa que, ao deslocar-se de um ponto a outro, Ruy tomava sempre o caminho mais longo, sinuoso e cheio de ziguezagues. “Ruy, mas por que ir por aqui se podemos, simplesmente, ir por ali, fazendo o caminho mais curto?”, protestara a pessoa. Ao que Ruy teria respondido: “eu tenho o mapa eólico de Paris na cabeça! É preciso evitar os courants d’aire…”. Fim da anedota.

Por fim, o último encontro com Ruy que narrarei neste artigo penso ter sido, de fato, a última vez que nos encontramos pessoalmente (posso, de novo, estar equivocado). Era véspera do segundo turno das eleições presidenciais de 2018. A esquerda tentava trazer todo o “campo democrático” — que a essa altura já não era mais tão democrático assim, uma vez que havia nele gente que, rasgando de vez sua biografia, apoiara o recente golpe contra Dilma e a prisão de Lula, por isso as aspas — para o lado de Haddad, tentado evitar a tragédia que seria (e foi e está sendo) a eleição de Bolsonaro, mas já antevendo, talvez, que isso fosse mesmo impossível àquela altura. Estava eu novamente metido com um grupo essencialmente petista — as mesmas considerações que fiz no caso do coletivo mencionado acima valem também, rigorosamente, para esse grupo. Tentava-se ali organizar um ato em defesa da candidatura de Haddad — e contra o fascismo de Bolsonaro — que congregasse pessoas de posições políticas muito diversas, de um espectro amplo, desde desafetos mais à esquerda do PT até gente como, por exemplo, Fernando Henrique Cardoso. Um dos nomes da lista era justamente Ruy Fausto — a quem fui rapidamente consultar para ver se estava no Brasil ou na França.

Ao consultá-lo, respondeu-me que estava no Brasil e entusiasmou-se de imediato com nossa ideia — sobretudo com a perspectiva de poder contribuir para ela numa possível concertação com Fernando Henrique, via seu sobrinho, Sérgio Fausto, presidente do Instituto FHC. Ruy acabou participando de nossa reunião, tamanha era sua vontade em contribuir para o esforço de ampliação do arco — no fim, as coisas não deram muito certo, os topetes talvez fossem mesmo muito altos ou os ressentimentos muito profundos, e o ato que vínhamos planejando acabou reduzido a um manifesto (ainda assim, penso, importante) que, embora tenha chegado a nomes como Giannotti, não conseguiu chegar, por fim, a FHC. Após a reunião, realizada na FEA (Faculdade de Economia e Administração da USP) fomos caminhando, eu e Ruy, em direção à FFLCH (Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP).

Lá, outro plano para tentar barrar Bolsonaro estava sendo articulado. No espaço da vivência estudantil — popularmente chamado Espaço Verde —, um grupo, liderado por Vladimir Safatle, havia convocado uma reunião aberta para organizar o que se chamou (um pouco ingenuamente, penso eu) de “trabalho de base” nas periferias. A ideia era basicamente convocar um mutirão para virar votos — o que, me parece, era absolutamente vital naquele momento, ainda que o espírito difusamente naródniki que animava as ações do grupo não fosse o mais adequado (mas isso para mim pouco importava). Chegamos já no finzinho da reunião. O Espaço Verde estava completamente abarrotado de gente — os estudantes, em sua maioria, haviam respondido de imediato ao chamado de Safatle. Ficamos uns vinte minutos, espremidos e de pé no fundo do salão, escutando as últimas falas de uma reunião que já se encaminhava para o fim. Aflito para fumar e também por ver o Ruy ali de pé por tanto tempo — afinal, era um senhor de mais de oitenta anos —, convidei-o para sair do Espaço Verde. Sentamo-nos nos desconfortáveis bancos-balanço do jardim da faculdade e pusemo-nos a conversar sobre nossas impressões da conjuntura política e das reuniões de que havíamos acabado de participar. Essa conversa se estendeu pelo almoço e só se encerrou pelo fim da tarde, quando ajudei o Ruy a pedir um Uber e voltar para a casa.

Narro aqui essas histórias não apenas para cumprir minha promessa com relação às “derrapagens narcisistas” anunciadas no começo do artigo, mas também para dar conta de retratar com acuidade algo que havia no Ruy e que para mim sempre fora notável: seu espírito radicalmente democrático; sua disciplina e dedicação para com o trabalho intelectual; e sua incansável militância pelas boas lutas.


Do primeiro contato que tive com o Ruy, na gravação em seu apartamento vazio, recordo-me do espanto em ouvir, de maneira tão desabrida, algumas opiniões acerbas a respeito da esquerda — e ditas, no entanto, por um homem de esquerda. O espanto não parecia tanto provir das ideias elas mesmas, que em si não eram novas, mas da maneira como estavam articuladas; da firmeza com que eram proferidas (indicando que havia longa meditação e exame por trás); e dos objetivos últimos aos quais visavam: não a destruição da esquerda e seu ideário (como o fazem boa parte de seus adversários), mas justamente o seu fortalecimento e avanço. Lembro-me de o Ruy ter dito — e isso muito me espantar — sem pestanejar: a esquerda precisa se desembaraçar de todos esses “ismos”: leninismo, trotskismo e, naturalmente, o stalinismo. Não há mais como jogar esse jogo, nosso objetivo é a sociedade democrática e não alguma outra forma de sociedade transparente, visada outrora pelo comunismo.

Lembro-me de tê-lo interpelado, sem necessariamente discordar de suas premissas: mas Ruy, você ainda vê esses “ismos” desempenhando papel relevante na esquerda atual (referia-me à esquerda como um todo, mas pensava especificamente na esquerda brasileira)? Quero dizer, se tomamos os programas dos partidos de esquerda no Brasil, como PT e PSOL, e principalmente se consideramos o que foram os governos Lula e Dilma, com seu “reformismo fraco”, não me parece que seja possível dizer que ainda temos aqui ecos daquele ideal de sociedade reconciliada do comunismo. Concordando em parte comigo, Ruy respondeu: de fato, nos programas de partidos ou de governos isto não aparece; mas não quer dizer que no interior dos partidos ou no interior da esquerda essas ideias não tenham ainda relevância — lembro-me agora da recente polêmica envolvendo o stalinismo no interior da esquerda brasileira e penso que o Ruy talvez tivesse razão.

Parece-me que, por conhecer tão intimamente o funcionamento da dialética (e suas dinâmicas de “interversão”), Ruy enxergava perigo em coisas que o restante da esquerda parecia dar de barato. “Além do fato de que existem ainda poderes totalitários, ou pelo menos semitotalitários, ele [o totalitarismo] deixou marcas visíveis na mentalidade da gente de esquerda (para o melhor, como para o pior: o pior é a inconsciência da dimensão totalitária).”6 Eu confesso que achava exagerado o acento que Ruy Fausto conferia à questão do totalitarismo. Não, naturalmente, no plano da crítica dos regimes totalitários, mas no que diz respeito ao pente-fino que ele buscava passar no pensamento da esquerda contemporânea (as críticas que dirigiu, por exemplo, a Žižek, Badiou e Safatle). Tendo hoje, no entanto, a conceder-lhe razão: ao não fazer explicitamente a crítica daquilo que deve ser criticado na história da esquerda — ainda que se diga, com um pouco de desfaçatez: “ah sim, mas isso é claramente condenável!” —, a esquerda mantém-se ainda de alguma forma ligada (não em ato, mas talvez em potência) àquilo de que diz ter já se desvencilhado. O ideal da Revolução, por exemplo, vê-se ainda reaparecer, aqui e ali, mesmo na boca das pessoas mais lúcidas e razoáveis da esquerda.

“Recalque o totalitarismo igualitarista, ele volta a galope. E no cavalo da direita, senão do da extrema-direita”,7 dizia Ruy Fausto, de maneira quase profética, ainda em outubro de 2012. Ruy insistia em que, ao não se livrar dessa “mochila pesada” do totalitarismo, a esquerda não apenas retardava seus passos — na direção da construção de um socialismo democrático — como também fornecia munição para os ataques provenientes da direita. Teoria e prática, portanto, pareciam estar intimamente ligadas na reflexão política de Ruy Fausto. Mantermo-nos unidos, uma certa esquerda democrática ou republicana, por uma espécie de “semelhança de família”, a gente que ainda flerta com ideias de um ciclo histórico encerrado, pelo simples fato de que taticamente estaremos juntos — como, por exemplo, na luta anticapitalista —, parecia a Ruy Fausto um tremendo erro do ponto de vista teórico e prático. A crítica do capitalismo não pode abraçar todas as formas de luta anticapitalista. Ser de esquerda, em seu sentido forte, não quer dizer apenas ser anticapitalista, mas quer dizer também ser antitotalitário, antiprodutivista, antiviolência, etc.

Ruy não era o único, naturalmente, a dar centralidade à ideia de democracia no interior da esquerda. Mas eu diria que foi um dos poucos, sobretudo no Brasil, que realmente se dispôs a levá-la a sério — até suas últimas consequências. Explico-me — uma vez que não quero sugerir com isso que o pensamento democrático no Brasil seja ingênuo ou inconsequente; ao contrário, é vigoroso e de uma sofisticação notável. Entretanto, penso que há certas questões teóricas que sempre permaneceram na sombra — não sem importantes consequências práticas para nós. Ruy talvez fosse, sem exagero, aquilo que se poderia chamar de um partidário da democracia radical — se bem entendemos o que isso quer dizer no detalhe, sobretudo o “radical”, que não pode ser aqui confundido com “extremista”. Ruy Fausto parecia disposto, em seus textos e intervenções políticas, a verdadeiramente radicalizar a ideia da democracia. Mas parecia fazê-lo numa direção inusual, qual seja, a da interrogação, a fundo — e de modo dialético, como não poderia deixar de ser —, a respeito das possibilidades de coexistência entre democracia e socialismo — em especial, entre democracia e marxismo.

O que é que sobra do marxismo quando se o submete rigorosamente às exigências da vida democrática? Muito pouco, ou mesmo nada, diria um liberal. Ruy Fausto discordaria: sobra, ao menos, a dialética (e não sobra só isso, mas isso já é mais do que o que tem a nos oferecer toda a tradição liberal). Por outro lado, o que é que sobra das nossas democracias liberais, com todas as suas imperfeições e intromissões sofridas pela convivência esfalfante com o capitalismo contemporâneo, quando submetidas às aspirações do socialismo? Muito pouco, ou quase nada, diria não apenas um stalinista, leninista ou trotskista, mas também boa parte das pessoas ditas “de esquerda”. Penso que, aí também, o Ruy discordaria. Entre a adesão ao status quo e a saída revolucionária, de horizonte violento e totalitário, parecia haver para Ruy um mar de possibilidades positivas — e não apenas um deserto de frustração e pessimismo. “Entre esses dois abismos, há o projeto de uma democracia socialista, a partir do que existe hoje como democracia, mas por meio de uma mutação fundamental que é futura, mas deve ser pensada desde o presente”.8

Penso que o Ruy — e aqui falo num registro ainda mais pessoal — me encantava, do ponto de vista de sua reflexão política, porque, em primeiro lugar, não cedia aos infantilismos e ingenuidades de uma esquerda que se poderia dizer — parodiando o título de seu próprio livro — uma “esquerda fácil”, uma esquerda heroica ou ainda romântica. Por outro lado, dentre os que reconheceram a absurda complexidade do mundo (em especial, da política) e tanto a impossibilidade de transformá-lo por um golpe de força como a dificuldade de submetê-lo a uma análise racional consequente, Ruy me parecia se destacar novamente: seja porque não adotava o caminho do pessimismo apocalíptico (que, no limite, nos recomendaria a inação, “já que vamos morrer, melhor morrer onde estamos”); seja porque, ao decidir-se por agir sobre um mundo assumidamente complexo e atravessado de ambiguidades, sem tomar essa decisão como sinônimo de capitulação ou desonroso rebaixamento de expectativas, Ruy parecia redobrar — e não descurar — a atenção com as armadilhas de interversão surgidas pelo caminho. Se “a via possível para um socialismo democrático” é, segundo afirmava Ruy Fausto, “uma via estreita e escarpada”,9 penso que sua obra e seu exemplo pessoal tenham contribuído, como um farol, para que ela não se perdesse na escuridão.