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Memórias

Pequeno, veloz e agitado, Ruy Fausto era acessível e não perdia o bom humor1

Ouvi falar de Ruy Fausto pela primeira vez aí por 1980, quando eu assistia como ouvinte a algumas aulas no departamento de filosofia da USP. O professor Paulo Arantes comentava as famosas dificuldades do pensamento de Hegel, lembrando-se de ter tido Ruy Fausto como mestre naquele assunto. As exposições dele, disse Paulo Arantes, chegavam “por momentos” a ser “geniais”.

Em vez de diminuir o elogio, aquele “por momentos” mostrava a seriedade com que Arantes empregava o termo “geniais”. Se Paulo Arantes, naquelas aulas, demonstrava uma sofisticação de pensamento e uma elegância verbal absolutamente intimidadoras, fiquei imaginando como seria ter Ruy Fausto como professor. Mas ele estava na Universidade de Paris.

O filósofo Ruy Fausto, em junho de 2017.

O filósofo Ruy Fausto, em junho de 2017. Folhapress.

Ele apareceu na USP um ano depois. Era pequeno, veloz, agitado, e acessível como poucos. Seu curso criticava as interpretações de Marx feitas pelo estruturalismo e buscava aprofundar as alternativas da esquerda democrática apresentadas por Claude Lefort e Cornelius Castoriadis na revista Socialismo ou barbárie.

Ninguém se sentia esmagado por seu conhecimento. Também nisso Ruy Fausto era realmente democrático, dando atenção, aceitando ou questionando a opinião de todos. Bem na tradição da USP, fazíamos uma leitura minuciosa de textos, enquanto Ruy Fausto expressava com clareza as implicações e as exigências do que seria um pensamento autenticamente dialético.

Foi com essas exigências em mente que, num daqueles dias, ele resolveu debater com o próprio Cornelius Castoriadis. O filósofo francês, de origem grega, surgiu na USP com aura de celebridade e cara de poucos amigos; sua palestra, juntando mais de cem interessados, seria sobre um livro que ele acabava de lançar, o ultracrítico e ultradialético A instituição imaginária da sociedade.

Ruy Fausto questionou um ponto da exposição. Em sua resposta, Castoriadis apenas repetiu o que dissera antes. Ruy Fausto me cutucou, “ele não respondeu, vou perguntar de novo”. Parecia um menino. “Professor Castoriadis, eu insisto, j’insiste!

Com sua careca formidável e físico de lutador de luta livre, Castoriadis levantou a voz e deu um tapão na mesa. “Pas possible, inadmissible, inacceptable”, alguma coisa assim. Era a arrogância parisiense em estado próximo da barbárie.

Mas Ruy Fausto não perdia o bom humor. Perdeu sim, uma vez, o boné que gostava de usar. Tinha o dom de estabelecer uma intimidade amigável com as pessoas; em vez de ficar só falando de Hegel, expunha para os outros as preocupações de cada momento. Naquele dia, o problema era saber onde tinha deixado o seu boné. Revelou-se que seus dois sobrinhos, Sérgio e Carlos Fausto — estudantes de ciências sociais naquela época —, tinham resolvido dar sumiço no boné, recuperado algumas horas depois.

Era, assim, uma sensação de familiaridade o que mais emanava da pessoa de Ruy Fausto, enquanto aos poucos as ideias hegelianas de contradição, posição e negação iam sendo explicadas sem mistifório em suas aulas.

Perdi contato com ele por muitos anos, até o aparecimento de seu livro Caminhos da esquerda — Elementos para uma reconstrução, em 2017. Ruy Fausto foi um dos raros intelectuais de esquerda interessados em criticar radicalmente as práticas fisiológicas do PT, assim como os namoros da militância com Cuba e Venezuela.

Foi nesse espírito que nasceu a Revista Rosa, para a qual, num feliz mal-entendido, ele terminou me convidando. Nestes poucos meses é que pude estar em contato frequente com Ruy Fausto, trocando e-mails e textos. Reencontrei-o, nos encontros de computador, como o conhecera em 1980: alerta, vibrátil, esperançoso, feliz. Aos 85 anos, Ruy Fausto parecia ter todo o futuro pela frente.