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Memórias

Lições de ética e de amizade

Fomos apresentados em uma das cafeterias do rez-de-chaussée naquela biblioteca onde compartilhávamos a rotina como se fosse uma segunda casa. A apresentação se deu na fila de uma máquina distribuidora de café, quando um amigo em comum, um alemão notável que estudava o Musil em sua tese de doutorado, e que formava conosco a fila, virou e nos disse “Vocês são brasileiros, precisam se conhecer”. E depois disso não tivemos mais contato com o amigo alemão, que entregou a tese, voltou ao seu país de origem, casou-se, teve filhos, e se perdeu de vista ao sair das redes sociais.

Enquanto isso, nós dois, os brasileiros em questão, mantivemos os encontros regulares no café da biblioteca, e, logo, dali pra diante, rumo a estes longos últimos anos. Além da biblioteca, ainda tínhamos a sorte de termos como plano de fundo, ao fim do expediente sempre às 19h, a vista para o Sena, cujas cores e humores acompanhavam a estação. A cidade daquela época continua marcada como um mistério que, como são os bons mistérios, se incrustam em nossas vidas e nos presenteiam com inesperados retoques. As pausas que fazíamos para os cafés eram cada vez mais insuficientes, pois tínhamos muito trabalho a fazer e não podíamos “perder tempo” (isto, no meu caso, porque o Ruy tirava de letra os momentos de desconcentração e os cultivava), e se completavam em e-mails diários, conversas de toda ordem, e, mais pra frente, projetos cada vez maiores e que sobreviveriam a diferentes adversidades — a maior delas, portanto, a que me traz a este texto.

Em alguma ocasião, passamos a nos confiar poemas, e, admiradores dessa arte, o fazíamos quase como que em segredo. Mostrei para o Ruy os únicos poemas em que me arrisquei e que não passavam de investigações de um modo de narrar. “Que beleza, Marcela!”, Ruy dizia, como sempre muito generoso, e me respondia com seus textos “mais de teor literário”. Assim, a partir desse material, organizamos juntos, selecionando, alterando, descartando, o que futuramente se tornaria o seu segundo livro de poemas e breves contos, Lições de ética, publicado em 2012. Todos os textos que discutimos foram pretexto para conversarmos sobre a origem deles, ou seja, para falarmos dos causos, sempre passíveis de fantasia. Além das histórias que aí se teciam, eu ia descobrindo aos poucos, nos encontros que se davam em uma pracinha das redondezas da biblioteca, o meu novo amigo em seus atributos, fragilidades, medos, alegrias e suspeições. Saquei aí o seu sorriso maroto, quase infantil, que se iluminava junto com os olhos diante de alguma memória longínqua ou relato das frequentes inabilidades cotidianas.

As cidades são o que são, mas mais tarde descobrimos que elas são principalmente as lembranças que montamos delas. Foi um privilégio conhecer um pouco daquelas ruas desta forma, e o Ruy acrescentou charme a esse tipo de referência. Os endereços que sugeria para encontros, mesmo que mencionados, nunca eram suficientes, porque lhes faltavam a graça da descrição. Então, por exemplo, ao marcar com amigos em sua casa, Ruy acrescentava aos descritivos da localização:

Entra na rue de Billancourt, sem atravessar nenhuma rua. Depois de uns duzentos metros de caminhada, a rua acompanha um jardim, do outro lado (na mesma rua). Quando vocês chegarem numa esquina, onde tem um café, atravessem para o jardim. Tem um caminho calçado e um menor de terra. O menor de terra, que atravessa o jardim pelo meio vai dar diretamente no prédio.

Anos mais tarde, enquanto passava os seus meses regulares no Brasil, Ruy me emprestou o apartamento na banlieue parisina para os estudos que eu fazia na época. Passei 3 meses aí convivendo com suas partituras, jornais, revistas e livros que não mais cabiam na cave, nem nas prateleiras do corredor e da sala, nem nos cantos do chão da sala, nem nas pilhas que se formavam em cadeiras, sofás, pianos e mesa. O studio do Ruy era a própria biblioteca, de modo que sua solidão não existia. Na tentativa de me situar pelo bairro, Ruy me escrevia e-mails com sugestões de restaurantes e cafés da região, de modo que eu dava voltas por aqueles cantos em busca da referência em questão, cujos logradouros jamais eram citados:

Quando não tomo café em casa, tomo numa brasserie, que fica perto da entrada do metrô (digo a entrada que fica perto de um pórtico). O dono é um autodidata muito falante, que faz reuniões de teologia no estabelecimento, e gosta de ler romances. Converso com ele e com a mulher. São um pouco careiros, entretanto. Se quiser um café bem barato, faça a volta do prédio atravessando o jardim (atrás do prédio tem uma padariazinha de uma japonesa. Dá para tomar café da manhã lá, é bem barato, e é ao lado).

Seus e-mails eram sempre um pretexto para conversas que variavam entre assuntos sérios e banais — estes, sempre levados muito a sério. Bastava uma simples pergunta, puxando assunto “Ruy, como você está?”, para o papo desembocar em matérias diversas, em longas trocas que duravam dias, semanas, e provavelmente nunca se interrompiam. Era real a sua inclinação para escrita, e, em comum, talvez tivéssemos, além do afeto, o maior prazer de nos entregarmos à prosa, e àquela prosa, em específico.

No início de nossa amizade, Ruy me convidou para integrar o comitê editorial da revista Fevereiro, a partir da sua segunda edição. As discussões positivas que aconteciam nas reuniões e nas correspondências da revista nos ensinou, muito no embalo do Ruy, que não devemos nos deixar sondar pela trégua. As discussões negativas, por outro lado, provocavam em Ruy comportamentos que se alternavam entre teimosia, zanga e obstinação. Com o fim das publicações da Fevereiro, movendo-se energicamente, participando de modo ativo de todas as instâncias de decisões, Ruy transferiu sua intensidade para a Rosa, revista esta em que ele nos reuniu em sinal de esperança.

“Que beleza está ficando a revista, Marcela, tem tanta gente boa pra gente convidar… Vai ser uma coisa muito boa…”, Ruy repetia em nosso último almoço, quando nos aproximávamos do lançamento da Rosa. Nunca poderíamos ter previsto este desfecho para o nosso amigo, meu velho “old friend”, que, após tantas lições de ética e de amizade, nos passou a bola, pura saudade e diligência.