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Memórias

Vogando o piano de Ruy Fausto

Hoje o Vasa ancora em cima do meu piano. Gosto de ver seu porte de barco seiscentista. O outro dia, sumiu a placa de metal, Vasa, 1628. Teria sido engolida pelo aspirador. Que pena! (…) Partituras velhas, anúncios, contas vencidas, cartas de amores mortos, botões, moedas que não circulam mais, tudo impregnado pela poeira do tempo e do piano. — Que vogue o Vasa!

— Ruy Fausto, “O Vasa em cima do meu piano”, Lições de ética, novembro, 2010.

ilustração: Marcela Vieira

Conheci Ruy há muitos anos, em Paris, no início da década de 1980. Eu era jovem, ele cerca de uns 20 anos mais velho, já com uma carreira nas costas e às voltas em entregar seu doutorado (‘d’État’) para Desanti, na Sorbonne (Paris I). Frequentávamos um mesmo grupo de brasileiros, entre eles Olgária (Mattos), Leda (Tenório), Serginho (Cardoso), Nelson (Brissac), Gal (Eliana Souza), Waltinho e outros. Passava tardes conversando com ele nos cafés, em volta da antiga Biblioteca Nacional, sala Richelieu, talvez querendo adiar a volta para o trabalho e a leitura. Ruy sempre foi bom de papo e as conversas se alongavam em temas diversos. Depois passei alguns anos sem vê-lo, com contatos esporádicos. Voltamos a nos encontrar com regularidade noutra estadia em Paris, em 2000/2001, nas tardes e manhãs da Biblioteca Nacional, agora num novo e imponente edifício. Não havia mais cafés em volta, nem o “zum-zum-zum” da cidade nos esperando fora do silêncio da sala. Grandes espaços, com gigantescas escadas rolantes, levavam a salas subterrâneas lembrando os seres reificados caminhando para o trabalho na Metrópolis, de Fritz Lang. Assim mesmo, teimávamos ficar nos corredores, buscando o sol que se movia, com a mesma disposição para conversa e os livros nos esperando. Ele na sala K (filosofia) e eu na sala P (audiovisual), na outra ponta do grande espaço retangular com o jardim no meio. Em vez dos simpáticos cafés da Richelieu, máquinas frias e automáticas nos serviam e abasteciam a conversa. Muitas vezes, depois do trabalho, saíamos para ir ao cinema ou jantar. Me lembro de ter visto, a partir de convite seu, todo um ciclo Straub/Huillet, diretores que sempre o impressionaram. Noutra estadia em Paris, em 2010/2011, passei o réveillon em sua casa, com minha família. Recordo-me dele tocando piano, cercado por jovens estudantes que traziam, em discussões animadas, o clima intenso que se vivia na política brasileira.

Nos vimos ainda diversas vezes em suas vindas periódicas ao Brasil. Em 2012 o levei à Unicamp para palestra intitulada O que é ser de esquerda no século XXI promovida por meio do antigo CEAV (Centro de Estudos Avançados). Desenvolveu um dos temas recorrentes, aquele que realmente o estimulava: os desafios complexos de uma nova esquerda na contemporaneidade. Estava bem na vida, naquele momento, entre Paris e São Paulo, ocupando uma sala no Departamento de Filosofia da USP e morando num pequeno apartamento atrás da Cidade Universitária. A última vez que estive com ele presencialmente foi em 2018, ainda em Paris, a caminho dos Estados Unidos. Marcamos de nos encontrar na Place de la Sorbonne, próximo de onde ficava meu hotel, e fomos jantar num restaurante do Quartier Latin. Me pareceu um pouco chateado, com reclamações habituais sobre a saúde, desanimado com o fim da Fevereiro que, segundo ele, havia sido cooptada para uma posição política de esquerda mais tradicional, mas falando de uma nova publicação (certamente Rosa) que já estaria se encaminhando. Retomou diversas vezes na conversa suas antigas pendengas com Gianotti, um assunto que parecia remoer com mais intensidade no final da vida, assim como a rocambolesca história na qual uma parte do núcleo da tese de sua livre-docência teria sido subtraída, em conversas sorrateiras, por um colega cúmplice nos corredores da Biblioteca Nacional. Chegou a enviar um e-mail sobre o tema para amigos e amigas, pedindo opinião. Voltamos a trocar e-mails num ritmo mais intenso em seus últimos meses de vida e o tom sombrio parecia distante, animado com a perspectiva da nova publicação que veio a se efetivar. O vi pela última vez, com o rosto leve e sorridente, na live de lançamento da Rosa, onde discorreu com a agilidade de sempre sobre temas que o estimulavam: a posição crítica da “verdade” numa esquerda aberta à atualidade. Uma esquerda que gostaria, antes de tudo, democrática, distante do que chamava “totalitarismo igualitário”. Que conseguisse se sustentar numa alternância real de poder, anticapitalista e cooperativista, atenta ao social, ecologista e antinuclear (um tema que sempre o preocupou), feminista, ligada ao planejamento familiar e a favor do aborto, com uma política racional para drogas leves e incorporando os direitos das minorias étnicas e sexuais.

Podemos distinguir no pensamento de Ruy Fausto dois momentos: um mais carregado, dentro da tradição filosófica, marcado pelos seminários de leitura conceitual de Marx dos anos 1960; e outro, com preocupações políticas pragmáticas e um discurso mais solto na superfície. Ele mesmo, na introdução de Sentido da dialética (2015), designa esta formatação, dividindo seu trabalho num “polo dialético-formal” e no que chama de “nossos estudos políticos”, no qual “privilegia-se propriamente o conteúdo, e onde as considerações lógico-dialéticas só estão presentes en passant”. O primeiro polo correspondeu, cronologicamente, a seus trabalhos mais jovens, derivados de sua tese Marx: Logique et Politique, ampliados na livre-docência Marx, Lógica, História, defendida em 1989. O segundo momento, aquele dos escritos sobre política, publicados já no século XXI, tiveram como acompanhamento duas coletâneas explorando sua veia lírica.

As ideias principais da primeira fase estão de modo geral presentes em sua tese Marx: Logique et Politique e seriam desenvolvidas com acréscimos e modificações nas décadas seguintes. Em seu núcleo, busca-se injetar, ou descobrir, mais dialética nas formulações da economia política marxiana. Fausto quer salvar a dialética marxista, abandonada no último quarto do século XX, usando a hélice da lógica hegeliana para fazer girar a contradição, em movimento, nas categorias — movimento de contradição pela supressão, “descontinuidade de outra ordem”, autoconsciência da negação que chama de “interversão”. Destrinchando esse sopro dialético que encontra nas obras de Marx, inclusive de juventude (como os Grundrisse), busca esgarçar o idealismo. Aponta para um materialismo já profundamente dialético que essa “lógica” permite resgatar. Descola-se assim, pelo fio da navalha, de certa tradição que denomina antropológica, e do corte epistemológico althusseriano que se ancorou no estruturalismo como caminho de saída para o mesmo dilema. Ou seja, de um modo todo seu, marxista hegeliano, esgarça a capa do idealismo que sobrou em Marx, evitando simultaneamente os pilares do estruturalismo epistemológico de Althusser e a negação humanista que tomou o viés da genealogia das “épistémès” — em Foucault e seus colegas de geração. A discussão com Althusser, que também foi aluno de seu orientador de tese, é recorrente. A volta anti-antropológica do althusserianismo não o convence pois, ao fazer seu círculo, abandona o hegelianismo e a radical Aufhebung (negação/supressão) na qual Fausto, mantém sempre os pés (e também a cabeça), para respirar na defesa de certo humanismo. A dificuldade de seguir seu pensamento no pós-1968 deve-se ao marxismo particular que desenvolve, longe das modas e tendências. Negando a vulgata, bebe num denso hegelianismo, reciclado em sua “lógica”, distanciando-se ao mesmo tempo da crítica estrutural-objetivista althusseriana e da predominante tradição do pós-estruturalismo francês (Derrida, Foucault, Deleuze), que bebe na valoração desconstrutiva do homem e, fora da dialética, busca na inspiração nietzschiana combustível para o “ser” afirmativo da potência.

Mas esta é a metade mais reclusa e obscura de sua obra. A determinada altura, tenho a impressão que Ruy resolveu sair dela e começar a falar. Pois seus escritos de maturidade têm algo do jorro de uma fala. Principalmente, a partir do início do segundo milênio, irá abrir asas para algo que vejo presente em sua personalidade, mas que, com a idade, tomou um eixo mais central. Ele sempre foi bom polemista e, mesmo com os amigos, gostava das posições provocadoras. Mas existia nelas um lado franco, que mantém a guarda baixa e pede o contragolpe. Em suas discussões públicas, e não foram poucas, sempre consegue se descortinar este tom dialógico, buscando a troca produtiva de argumentos, junto com a curiosidade sincera pelo ponto de vista alheio.

Em sua obra polemista de maturidade, talvez os maiores embates tenham sido em torno do que chamou “patologias da esquerda”, espécie de trindade estrutural em seu pensamento político. Os mergulhos conceituais, em seus últimos livros, são breves, uma espécie de ponta do iceberg que lhes sustenta. A ideia das três patologias, pois são uma ideia, acabou mobilizando uma mídia mais ampla em torno de suas colocações. Trouxe para si uma projeção que antes não possuía, provocando a ira em alguns — paixão que parecia ter sabor em detonar quando instigado. A provocação das “patologias” designa três eixos no campo político, que devem ser articulados sem perder o norte da dialética: o do neototalitarismo e, particularmente, do “totalitarismo igualitário” (sua pièce de résistance no final, e que costumava irar a esquerda histórica); o do “reformismo adesista” (conceito com o qual esgrimia à vontade na centro-direita e com certa social-democracia); e por último (but not least), “as diferentes modalidades de populismo”, no qual incluía, além do culto carismático, o que apelidou de “laxismo” ético, desafiando as recaídas na lide com a coisa pública.

Seus conceitos podiam ser amplos, às vezes muito largos, como foi acusado, mas Fausto sabia atravessá-los com uma formação teórica segura, de modo que mantivessem a operacionalidade, sem virar como porcas soltas. No final da vida as pinceladas são grossas, os saltos largos e o universal concreto delineia-se com mais pressa sobre o particular. Os quadros compõem-se de modo tão cristalino que a mediação parece ser dispensada. Quando iniciada, multiplica-se imediatamente como bonecas russas, tornando-se infinita para o fôlego (daí suas notas amplas, às vezes mais capitais que o próprio texto). O que faz girar o movimento da “trindade patológica” é o núcleo do “totalitarismo”, certamente o mais desenvolvido em sua obra tardia. É junto a ele que ecoa, modulando-o na supressão contraditória, o questionamento crítico das formações sociais do capitalismo.

Fausto herdou a crítica ao “totalitarismo igualitário” de sua vivência da reflexão, de origem francesa, que criticou a experiência histórica comunista desde os trabalhos de Lefort, Castoriadis, Debord, Lyotard e outros, já na década de 1950, no grupo Socialismo ou Barbárie. Trata-se de uma tradição, de corte marxista, depois dispersa em carreiras pessoais diversas, mas que em Claude Lefort (caro ao Brasil em função de sua passagem pela USP, no início da carreira) mantém a marca da dialética humanista que atravessa o pensamento de Ruy. Esta crítica à esquerda das formações totalitárias, ampliada em outros horizontes, é presente de modo bastante agressivo no campo socialista europeu, atravessando com fôlego as décadas de 1980 e 1990, inclusive na mídia que veio da tradição soixante-huitard (Libération, por exemplo). Tradição libertária que realça, sem peias, os grandes desastres humanitários provocados pelo totalitarismo comunista do século XX — algo ausente da ideologia política dominante na esquerda latino-americana. Daí a surpresa, e certa intensidade argumentativa, contra seus escritos de denúncia das formações totalitárias do stalinismo, do maoísmo e do castrismo, que declinam também o bolchevismo leninista e a tradição jacobina, particularmente em sua exaltação da violência.

É, com efeito, surpreendente, que sua voz seja a única a desenvolver, dentro do campo da esquerda no Brasil, neste modo mais agudo, a perna autoritária da trindade patológica. As outras duas modalidades (a do adesismo e a do populismo-carismático/laxista) parecem conseguir ser percorridas por autores mais diversos. De toda maneira, a crítica radical leva-o a tomar como realidade, como “verdade”, a herança mais macabra do totalitarismo igualitário e o desastre das aflorações genocidas. Ao mesmo tempo, o lado socialista das convicções de Ruy, inerentes à tradição marxiana, faz com que a contundência da demanda democrática seja baseada num forte pilar crítico ao capitalismo e ao império da mercadoria, embasando a “trindade”. Este substrato gira o movimento supressivo das formações da trindade, não permitindo que seja cooptada pelo perigoso discurso anticomunista à direita que, numa raiz fascista renovada (Ruy o chamaria de “neofascista”, no modo dos prefixos que cultivava), emerge hoje ressuscitado das catacumbas, na nova realidade política brasileira.

Contas feitas, é deste ponto que devemos pensar a obra que Ruy deixa para trás, em sua demanda contra as formações que nos tolhem. Entre a dialética radical que busca escapar das armadilhas de uma lógica que lhe rebate como motor — e a valorização da negação, que desfaz ativamente o solo da afirmação para contraditoriamente resgatá-lo. Assim consegue elevá-lo, em potência e não predicado do sujeito, a um giro da história que impeça os destroços do passado reificado desabarem, como céu, sobre a cabeça de quem os vive.