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Capitalismo realmente existente

Estas breves notas a respeito de Capitalism, alone: the future of the system that rules the world, que o economista Branko Milanović lançou em 2019 pela Harvard University Press, foram redigidas para seminário a respeito do livro organizado de forma virtual pelo Grupo de Pesquisa Pensamento e Política no Brasil (CNPq), associado ao Cenedic (Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania — FFLCH/USP), no dia 16 de junho de 2020. Não pretendem, portanto, fazer uma resenha do livro. São simples apontamentos com vistas a um roteiro de leituras em torno do desenvolvimento capitalista após o crash de 2008. Uma apreciação crítica do volume requereria outro tratamento.

Como se sabe, os desdobramentos da crise financeira de 2008 levaram o sociólogo Wofgang Streeck (2016), o primeiro a ser examinado no referido programa de estudos, a prever o fim do capitalismo como ordem social. Embora Streeck não conste da bibliografia utilizada por Milanović, a leitura de Capitalism, alone leva a crer que o autor de origem sérvia encontra-se no outro extremo, sugerindo, ao contrário, estarmos em um período de consolidação do capitalismo, agora elevado à condição de único sistema socioeconômico mundial.

O otimismo de Milanović a respeito do futuro do capitalismo, em meio a tantos prognósticos de queda, poderia criar uma tensão útil ao debate. Mas à medida que os argumentos vão sendo apresentados nas páginas de Capitalism, alone, fica-se com a impressão de que, no fundo, eles se aproximam de formulações contidas no raciocínio oposto e que Milanović apenas inverte os sinais.

O autor assinala, por exemplo, que, no capitalismo liberal-meritocrático (aquele que vigora no ocidente), a desigualdade tem crescido de maneira contínua. Em consequência, forma-se uma classe dominante quase permanente e impenetrável, a qual tende, inclusive, a casar-se cada vez mais entre si, numa interessante sacada do pesquisador. Sistemas de educação e saúde ultracaros separam a casta dos ricos do resto da população, oligarquizando as democracias, um diagnóstico também presente em Streeck. A diferença é que para Milanović isso não coloca o capitalismo em risco.

Além da desigualdade, da mercantilização e da oligarquização que vigoram no tipo liberal-meritocrático, Milanović identifica a onipresença da corrupção, por meio da qual a oligarquia compra a classe política, garantindo que as decisões do Estado não a desfavoreçam. Outra vez, apesar de usar cores fortes para compor a imagem do capitalismo atual no ocidente, o economista considera errado associá-las a uma crise. Afirma que as pessoas introjetaram o valor de ganhar dinheiro como prioridade existencial e, apesar dos problemas expostos, podem continuar a fazê-lo (ou ao menos ter a esperança de fazê-lo) em que pese o aumento do índice de Gini, que mede a separação entre ricos e pobres, e as tendências oligárquicas em curso. A mercantilização, por seu turno, pode até expandir as chances de acumulação.

Da escolha pela ganância, decorre o amplo espaço adquirido pela segunda variante capitalista na cena mundial, que Milanović chama de “capitalismo político”. Como é fácil adivinhar, trata-se do modelo chinês. Para o autor, o comunismo teria sido o modo pelo qual sociedades atrasadas orientais transitaram do feudalismo para o capitalismo. Um equivalente funcional da ascensão burguesa no ocidente.

Diga-se de passagem que os parágrafos dedicados à teoria da dependência, no contexto do debate sobre o destino do capitalismo na periferia, revelam uma compreensão limitada da mesma. Ao menos no que diz respeito à vertente uspiana do pensamento dependentista, o autor não incorpora a percepção de que a América Latina esteve desde sempre vinculada ao movimento dos países capitalistas centrais. Em consequência, não caberia falar de transição do feudalismo (que nunca existiu nestas bandas) para o capitalismo, e tampouco de dualismo, mas sim de configurações marcadas por formações sociais específicas e características singulares a partir das quais o capitalismo latino-americano tomou rumos próprios (e obviamente pouco integradores da massa trabalhadora).

No que se refere à modalidade do capitalismo político, o abre-alas está no crescimento econômico recente da China, o qual é nomeado por Milanović como o maior da história humana. Além da extraordinária multiplicação do PIB, a capacidade chinesa de gerenciar a macroeconomia e construir infraestrutura pública; a atuação em favor de uma ordem internacional estável; a existência de uma camada tecnocrática bem treinada e eficiente; são todas qualidades que testemunham a favor do capitalismo político.

Os principais problemas existentes na modalidade oriental são a ausência de liberdade, a corrupção endêmica e, de novo, a crescente desigualdade. Considerando-se que estas últimas existem, igualmente, no tipo ocidental, resta a fragilidade do Estado de direito como a diferença de fundo entre os dois casos. Mas, diante dela, Milanović raciocina, como antes, de maneira pragmática. Pode ser que desinteressados da política — e talvez da própria liberdade —, os cidadãos prefiram a saída oriental. Oligarquia por oligarquia, talvez seja melhor ter uma que garanta a continuidade do crescimento, situação na qual se pode usufruir do consumo, pensariam, quiçá, os desencantados cidadãos ocidentais.

Tendo em vista o quadro exposto, como avaliar a situação do capitalismo global, isto é, aquele que soma as partes ocidentais e orientais? Sem rivais ou alternativas (conclusão a que também chega Streeck), o mundo todo iria se tornando hipercomercializado, numa inclinação já percebida por autores de extração bem distinta como Pierre Dardot e Christian Laval. Mas se a mercantilização exacerbada destrói áreas de contato humano, abre inúmeras chances de empreendedorismo, o que Milanović não parece ver com maus olhos.

Além da aceitação pragmática das circunstâncias dadas, Milanović rejeita previsões catastróficas, como a destruição do meio ambiente ou o desemprego em massa em virtude da robotização, e atribui à ascensão oriental a virtude de diminuir a desigualdade inter-regiões a níveis nunca alcançados. Se bem admite a possibilidade de que as tensões decorrentes desta nova distribuição da riqueza mundial resultem em guerra, acredita na capacidade dissuasória do equilíbrio de poderes entre os competidores.

Somente no que diz respeito à democracia o tom de Milanović fica menos conformado. Perto da conclusão, o economista reconhece que uma passagem para o capitalismo político é compatível com os interesses da oligarquia que está sendo formada sob o capitalismo liberal-meritocrático. A fórmula autoritária ganharia impulso se os jovens ocidentais acreditarem que os partidos são incapazes de produzir mudanças redistributivas. Em outras palavras, caso medidas para aumentar a desconcentração do capital, a igualdade e a mobilidade intergeracional não forem adotadas no ocidente, a via oriental de capitalismo político pode conquistar corações e mentes.

A leitura termina deixando no ar a sensação de que o capitalismo realmente existente terá vida longa porque a sua variante política está preparada para assumir o comando caso a fórmula liberal-meritocrática continue a padecer de problemas até agora insolúveis. Não chega a ser um passo adiante.