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A pedra viva de Mandelstam

Os poemas traduzidos por Jorge Sallum para a Revista Rosa foram retirados da antologia Pedra (Kámen), que Óssip Mandelstam (1891–1938) começou a escrever depois de concluir a Escola Tiênichev, em São Petersburgo, e de ter sido enviado pelos pais, preocupados com as ideias revolucionáriаs do filho, a uma temporada de estudos na Alemanha (Universidade de Heidelberg) e na França (Sorbonne/Collège de France), onde o jovem frequentou as aulas de H. Bergson. Pedra foi o primeiro livro de Mandelstam e marcou também a primeira fase de sua poética se pensarmos na edição de 1913, que, com 23 poemas escritos entre 1909 e 1913, saiu em São Petersburgo pela editora Akme, com tiragem de 300 exemplares. A segunda edição, com mil exemplares, foi lançada em 1915 (embora na capa apareça 1916), com 67 poemas (ed. Guiperborei). Ambas contaram com os escassos recursos do autor, que vivia à custa de traduções (os negócios da família faliram em 1911). Em 1922, ano em que casou com Nadiejda Kházina (1899–1980), publicou a antologia poética Tristia e, um ano mais tarde, começou a escrever O rumor do tempo (obra em prosa) e lançou a terceira edição de Pedra, com 3 mil exemplares, pela Gosizdat (Moscou) na série “Biblioteca da literatura contemporânea”, trazendo 76 poemas e capa de Aleksandr Ródtchenko.

Kámen (Pedra). Editora Gosizdat (1923). Capa: A. Ródtchenko.

A imagem da pedra em Mandelstam estabelece diálogo tanto com Fiódor Tiútchev (1803–1873) como com Vladímir Solovióv (1853–1900), mas, se para esses a pedra simboliza a “imutabilidade” e a “eternidade da existência”, para o jovem poeta ela vem dotada de caracterizações mais dinâmicas, ligadas ao “desenrolar da existência”, como explica Tatiana Bréieva (p. 19). O nada, o não existir, é também motivo recorrente em seus poemas, mas dele desperta a vida.

A presença de Tiútchev, poeta oitocentista apreciado por simbolistas, e do filósofo simbolista por excelência Solovióv denota uma fase da criação de Óssip Mandelstam em que se revelam traços simbolistas ao mesmo tempo que se anunciam elementos do acmeísmo. Entre 1909 e 1912 esses alfabetos poéticos visivelmente convivem nos versos do jovem Mandelstam.

O simbolismo na Rússia não foi apenas uma tendência estética, mas um movimento cultural amplo que durou mais de duas décadas e arregimentou poetas, pintores, músicos, encenadores, filósofos. Graças ao simbolismo a poesia russa, que andava um pouco sem forças, recobrou o fôlego, tornando-se a vedete entre as artes. É também no simbolismo que surge a figura do artista que se pensa e se traduz para o mundo. Andrei Biély (1880–1934) e Viatchesláv Ivánov (1866–1949) — cujas aulas Mandelstam frequentou — não pouco refletiram e escreveram sobre o símbolo e o simbolismo russo, que conheceu seu ápice no primeiro decênio do século 20 (praticamente meio século depois do francês). Justamente no ocaso do simbolismo (enquanto movimento), no início dos anos 1910, surgiu a corrente acmeísta, que durou alguns anos e reuniu seis poetas (embora os três primeiros formassem um grupo mais coeso): além do próprio Mandelstam, Anna Akhmátova (1889–1966), Nikolai Gumilióv (1866–1921), Mikhail Zenkiévitch (1886–1973), Serguei Gorodiétski (1884–1967), Vladímir Nábrut (1888–1938).

Em 1913 Gumilióv escreveu O legado do simbolismo e do acmeísmo, uma espécie de manifesto em que demarcou o declínio do primeiro e as características do segundo:

Para o leitor atento é visível que o simbolismo finalizou o ciclo de seu desenvolvimento e agora declina. (…) No lugar do simbolismo vem uma nova tendência, não importa se chamada acmeísmo (de akte — o ponto mais alto de algo, florada, época de floração) ou adamismo (um olhar claro e corajosamente inabalável sobre a vida), uma tendência que exige mais equilíbrio de forças e um conhecimento mais preciso da relação entre sujeito e objeto do que havia no simbolismo.

(tradução nossa)

Se no simbolismo as fronteiras entre obra e criador eram fluidas, no acmeísmo e em muitos poemas de Mandelstam há uma busca pela generalização, concretizada pelo tom impessoal em que é o “‘eu’ desnecessário”. “Não por acaso o primeiro livro de O. Mandelstam não incluiu nada de sua lírica amorosa”, observou Bréieva (p. 24).

(…)
Oh, largo vento Orfeu,
Corre para a beira do mar
E acalenta o incriado mundo
Esqueci o “eu” desnecessário

(1911, trad. J. Sallum)

Sobretudo a partir de 1912 outros elementos não tradicionais passam a ser encontrados em seus poemas, como o silêncio em oposição à música simbolista (“Por que tão pouca música / E tanto silêncio?”) e mesmo notas de ironia:

Odeio a luz
As estrelas uniformes
Saudações, longo delírio
Sobe a torre arqueada

(1912, trad. J. Sallum)

No universo poético de Mandelstam o mundo ganha concretude (por isso a arquitetura se sobrepõe à música): embora não negue o incognoscível, o poeta não busca decifrá-lo (Bréieva): o mundo é real e apenas um. “Mandelstam de fato colocou em dúvida o princípio essencial do simbolismo — a ideia de um mundo dual e de sua religiosidade, seu caráter ‘litúrgico’. Esse era o senso geral da nova tendência. Ela tentava libertar-se ao mesmo tempo do místico e do simbólico”, nota Ígor Sukhikh (p. 14, tradução nossa).

Os acmeístas buscavam fugir do caráter metafórico e alusivo da palavra simbolista, de seu sistema de correspondências. Valorizavam a coisa em si. Em ensaio de 1922, Sobre a natureza da palavra, Mandelstam assim se explicou:

Peguemos, por exemplo, uma rosa e o sol, uma pomba e uma menina. Para um simbolista nenhuma dessas imagens em si interessa, mas a rosa se parece com o sol, o sol com a rosa, a pomba com a menina, e a menina com a pomba. As imagens são desentranhadas, como um objeto empalhado, e preenchidas com conteúdo alheio. (…) Nem uma palavra clara, apenas alusões, reticências. A rosa acena à menina, a menina à rosa. Ninguém quer ser a si próprio.

(tradução nossa)

Ou ainda: “A = A: que tema poético formidável”, como o escritor pontuou ironicamente alguns anos antes em A manhã do acmeísmo, ensaio que reflete o acmeísmo em relação tanto ao simbolismo como ao futurismo, que nessa época também entrava em ebulição na Rússia: “E, se para os futuristas a palavra como tal ainda está engatinhando, no acmeísmo ela pela primeira vez assume uma posição vertical mais digna e ingressa na idade de pedra de sua existência” (tradução e grifo nossos). Aqui uma referência ao manifesto A palavra como tal (1913) em que Velimir Khlébnikov (1885–1922) e Aleksei Krutchónykh (1886–1968) clamaram pelo direito do artista de criar palavras e sons, “numa língua sem um significado determinado”. Seja como for, o acmeísmo está mais próximo do simbolismo que do (cubo)futurismo: enquanto a rosa simbolista alude a outras esferas da realidade e a rosa acmeísta é feita de espinhos e de pétalas, a rosa futurista deixa de existir: é libertada de seu nome convencional e é por outro chamada.

Não se trata de reduzirmos poéticas tão distintas e complexas a oposições esquemáticas e a “ismos”, mas de entrarmos em contato com essas polêmicas tão saborosas para se acentuarem particularidades, conscientes de estarem todas elas inseridas em um período inigualável da história da arte russa, a era de prata ou “a Renascença russa”, nas palavras de Nikolai Berdiáiev, um momento que reuniu o simbolismo, o acmeísmo, futurismos e um sem-número de correntes e artistas de várias áreas que cobriram a Rússia de manifestos, conceitos, obras e utopias arrojadas por cerca de três décadas.

Parte desse caldo de cultura e história, Óssip Mandelstam, nascido em Varsóvia numa família judia, soube representar esse momento como ninguém. “Em outras palavras, a literatura russa do fim do século 19 e início do 20 ocorre sob insígnia da ideia do universalismo cultural. A poesia de O. Mandelstam como nenhuma outra descortina essa faceta da arte da ‘era de prata’. A cultura surgiu como um fundamento invariável de sua criação”, conclui Bréieva (p. 6, tradução nossa). Não à toa Joseph Brodsky se sentia tão atraído pela poesia de Óssip Mandelstam.

Em 1928 Mandelstam publicou sua última antologia poética, Poemas — os versos escritos depois foram conservados por Nadiejda. De 1933 a 1937 o poeta ficou exilado em Tcherdyn e em Vorónej, por ter lido um epigrama dirigido a Stálin. Do exílio ele, sempre acompanhado por sua esposa, regressou para Moscou, mas, em 1938, foi condenado por “atividades contrarrevolucionárias” e mandado a um campo de prisioneiros no Extremo Oriente. No mesmo ano, em uma prisão de trânsito em Vladivostok, o poeta morreu de inanição e em meio a uma crise nervosa, segundo alguns testemunhos.

Anos depois, foi ressuscitado por Varlam Chalámov, que manteve longa correspondência com Nadiejda. No conto A ressurreição do lariço (1966), Chalámov nos fala de um ramo de lariço — a dura árvore de Kolimá — que o poeta enviara do Norte à esposa e que, reunindo todas as forças, reviveu na “água clorada” de Moscou, dentro de uma “lata de conserva”:

Ao enviar o ramo, o homem não sabia, não imaginava que o galho voltaria a viver em Moscou, que, ressuscitado, o lariço teria cheiro de Kolimá, que desabrocharia numa rua moscovita, que mostraria sua força, sua imortalidade (seus seiscentos anos de vida são praticamente a eternidade para o homem), que outros tocariam aquele ramo rugoso, despretensioso e firme, que veriam suas agulhas verdes ofuscantes, seu renascer, sua ressurreição, que respirariam seu odor não como a memória do passado, mas como uma vida viva.

(Ed. 34, 2016)